SEU QUEIROZ

Uma história boa, mal contada, torna-se ruim.

Eu tinha um amigo que estragava qualquer piada, por melhor que fosse. Impressionante. Ele usava a entonação errada, confundia nomes, esquecia partes importantes e contava o desfecho antes da hora. Depois, diante da perplexidade e da ausência de risos, piorava a situação, dedicando-se a esclarecimentos complementares. Ora, uma piada que precisa de explicação nunca será engraçada.

Não resisti. Um dia lhe disse a verdade e aconselhei que deixasse as piadas em paz. Dizem que a gente perde o amigo, mas não perde a piada: pois bem, eu perdi ambos…

Mas o inverso também é verdade: uma história ruim, bem contada, torna-se boa.

Meu avô materno era um exímio contador de histórias, talvez o melhor que já conheci. Chamava-se Clemente. Tinha descendência italiana, o que por si só já tornava agradável seus gestos, trejeitos e modo de falar. Era um homem de muitas histórias e adorava contá-las. Vivia emoldurado num bom humor inabalável, que o acompanhava onde quer que fosse.

Outra coisa marcante era o seu cuidado com a aparência. Era magro e alto, olhos azuis e estava sempre com roupas claras, muito limpas, barba feita e exalando um bom perfume. Sua presença me atraía.

Recordo que uma vez por ano íamos à sua casa de praia, que possuía uma agradável varanda na frente, onde a família se reunia para ouvir seu inesgotável estoque de histórias. O showman postava-se de pé, enquanto nós todos sentados como uma plateia bem comportada, mergulhávamos em seus enredos e nos deixávamos levar pelo balanço de seus casos.

Aqui e ali as gargalhadas nos sacudiam e meu avô, com pleno domínio de seu talento, esticava a história, criava suspense, repetia partes e fazia com que a gente não quisesse que a história acabasse. Momentos inesquecíveis da minha infância.

Como uma homenagem a ele, vou me arriscar a contar por escrito uma de suas histórias, mesmo sabendo que nem de longe terá o brilho conseguido por aquele homem engraçado e criativo.

“Seu Queiroz foi viajar com a família. Carro revisado, as crianças bem acomodadas no banco de trás e a esposa muito animada ao seu lado. Lançaram-se à estrada logo cedo, em um belo dia de sol.

A viagem seguia tranquila, uma boa música tocando e Seu Queiroz estava muito feliz.

Ao aproximar-se de um posto da polícia rodoviária viu, ainda longe, um guarda acenando com a mão, indicando que deveria parar. Reduziu logo a velocidade e dirigiu-se ao acostamento no local indicado. O guarda aproximou-se e pediu seus documentos.”

A esta altura meu avô fazia cara de guarda, reproduzia seus movimentos, franzia a testa examinando os documentos e dava uma volta em torno do veículo imaginário olhando tudo atentamente. A seguir, abaixava o tronco e cruzava os braços como se estivesse apoiado na janela do motorista e iniciava a conversa:

“— Seu Queiroz! — exclamava, alegremente. — Viajando com a família, não é?

— Bom dia. Sim. Estamos em viagem de férias.

— Que beleza! O senhor com a família toda, aproveitando a vida, passeando. Isso é muito bom.”

O showman então encenava o Seu Queiroz olhando para o guarda e esboçando um sorriso amarelo, sem entender bem aquela conversa. Era a nossa primeira risada, ainda discreta.

“— Pois é — continuava o guarda. — O senhor viajando, tranquilo, animado para desfrutar da praia com a família. E nós aqui, trabalhando duro desde cedo, enfrentando o calor forte para cumprir a nossa obrigação.

Seu Queiroz aguardava, já desconfiado.

— Pena que um dos pneus do seu carro não está em boas condições e, pelo certo, eu não posso deixar o senhor prosseguir.

— Mas os pneus estão novos — contestava Seu Queiroz.

— Não para os nossos padrões. Como nós vamos resolver isso, Seu Queiroz? O senhor me ajuda que eu lhe ajudo…”

Nosso artista então encenava o gesto de colocar a mão no bolso, tirar a carteira e adquirir a solução daquele pneu que sequer tinha um problema. Representava a seguir o sorriso do guarda, a liberação de Seu Queiroz e o desejo de uma boa viagem.

“Prossegue a viagem. Cerca de meia hora depois, já quase não se lembrando do ocorrido, aproximam-se de um novo posto policial e lá na frente, um guarda sinalizando a necessidade de parar.

Seu Queiroz custa a acreditar que terá que parar novamente.

Estaciona e entrega os documentos. A cena se repete, o guarda examina tudo, debruça em sua janela e exclama:

— Seu Queiroz. Viajando com a família, não é?

— Sim. Algum problema?

— Não. Nenhum. O senhor aí desfrutando enquanto nós estamos aqui trabalhando duro. Deus me livre interromper sua viagem, mas a borracha do limpador de para-brisas do seu carro está muito desgastada.

— O quê? Não é possível. O limpador está ótimo.

— Não para os nossos padrões. Mas eu não quero atrapalhar a sua viagem. Sabe como é Seu Queiroz: uma mão lava a outra…”

E assim seguia a história. Quanto mais a gente ria, mais o pobre do Seu Queiroz parava em postos policiais e a história alongava-se deliciosamente. A cada vez, meu avô inventava irrelevâncias maiores para o carro do Seu Queiroz: ora uma pequena trinca no espelho retrovisor, ora o paralamas traseiro com ligeira folga ou um vidro de farol um tanto ou quanto opaco.

Quando chegava ao ponto certo, o artista então arrematava a epopeia do Seu Queiroz.

Mais uma vez foi parado no posto policial. O guarda requisita os documentos, esquadrinha tudo atentamente, dá a voltinha no carro, debruça na janela e exclama:

— Seu Queiroz. Bom dia. Viajando de férias, hein? — saudou o simpático guarda.

— Ora, vá para o inferno!”

Ficávamos rindo ainda por um bom tempo, não só do final, mas do todo, da performance, dos tons de voz, da criatividade, do gestual. Momentos memoráveis que meu avô imprimiu em minha memória.

Recordo que Chico Anysio certa vez comentou que a piada é muito mais ingrata que a música. Enquanto a piada só pode ser contada uma vez para cada pessoa, a repetição da música é desejada vezes sucessivas e até exigida.

Pois meu avô o desmentiu.

Todo ano, ao chegarmos para uma nova temporada, eu logo pedia:

— Vô, conta a do Seu Queiroz!

Antonio Carlos Sarmento

31 comentários em “SEU QUEIROZ

  1. Que bom começar o Domingo com bom humor, com essa história do Sr.Queiroz…
    E obviamente traz ótimas lembranças de outras histórias, lembro que minha avó contava a história do ratinho italiano chamado : Sapóporo.
    Ele havia perdido o rabinho por estar roubando leite, e o dono da leiteira deu-lhe o castigo arrancando seu rabinho, mas Sapóporo precisava do rabinho, pois ia se casar… bem, ele vai em busca da solução para devolver a o leite e ter de novo o rabinho e poder casar…. A história toda vou te contar no almoço … nós podíamos sempre para minha vó contá-la.
    E com sua crônica, vou recomeçar essa mesma história para os meus netos.
    Quem sabe eles pediram Bis?

    Obrigado Cacau!
    Crônica deliciosa, sabor vovô !

    Parabéns!
    Bjs

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    1. Chico,
      E ótimo que a crônica tenha te despertado lembranças da infância. E ainda o desejo de contar a história do Sapóporo para seus netos. Com certeza irão pedir bis!!
      Fico contente que tenha gostado da crônica sabor vovô.
      Beijos no Pedrão e na Helen e uma ótima semana para vocês!

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  2. Que fantástico! Adorei ler esta crônica. Muito boa kkkkk

    Me senti viajando com o seu Queiroz, e o mesmo tempo sentado na varanda ao seu lado me borbulhando de risos ouvindo seu avô. Kkkk

    Parabéns, amigo!

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    1. Rodrigo,
      Que comentário delicioso!
      Parece que você acabou de ler e logo deixou sua espontaneidade revelar o que sentiu.
      E viajar com Seu Queiroz estando ao mesmo tempo sentado na varanda foi sensacional.
      Muito obrigado por um retorno tão gratificante!
      Grande abraço, meu amigo. Beijos nas meninas!

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  3. Muito bom lembrar a história do seu Queiroz e melhor ainda lembrar do Vô Clemente. Assim esperamos que nosso netinho não se esqueça de nós, Forte abraço no Gui!

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  4. Prezado Antonio Carlos:

    Quando li o título de sua bem redigida crônica, fiquei preocupado que estivesse propondo alguma inusitada homenagem a um certo “Queiroz”, ultimamente frequentador das manchetes político-policiais.

    Mas, ainda bem que foi só um susto. Na verdade, trata-se de um personagem de uma história contada por seu dileto avô.

    Sds, do seu amigo,

    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Nem lembrei que havia um certo “Queiroz”… Desculpe o susto! hahahaha
      Muito obrigado por continuar sempre lendo e comentando, meu fiel e infalível leitor e amigo!
      Um grande abraço e recomendações à Leila, Carla e seu netinho!
      Saúde!

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  5. A avaliação de um contador de piada é radical. Ou ele é ótimo ou ele é péssimo. Deve ser por isso que os atores dizem que é muito mais difícil fazer rir do que chorar… Como sempre sua crônica aos Domingos quase sempre me reporta a fatos familiares ou a amigos queridos que já partiram e que deixaram um legado de lembranças. É o caso de hoje. São recordações de um concunhado que adorava contar piadas mas era péssimo. As suas piadas tinham que ter palavrões e obscenidades e o pior , em várias ocasiões ele esquecia o epílogo… Era o caos… Estou me alongando e envio um saudoso abraço e vou te ligar pra falar da minha viagem. Abrs.

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    1. Amigo Nei,
      Muito bom saber que as crônicas te trazem boas lembranças de familiares e amigos.
      Este seu concunhado é como o amigo que descrevi logo no início: uma coisa é gostar de piada, outra é saber contar…
      Aguardo sua ligação para saber desta viagem!
      Uma ótima semana, meu amigo e manda um beijo para a querida Jaciara!

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  6. Sarmento mais uma vez sua crônica alegra meu domingo. Papai era desses que no meio da piada, simplesmente esquecia a continuação e para não deixa-MAIS sem graça, mudávamos de assunto, e íamos em frente. Mas era exatamente isso que mos arrancava gargalhadas imensas. Todos esperávamos o momento em que ele com sorriso amarelo começava a gaguejar e mamãe dizia coisas tipo: Pronto acabou… ou então: Hoje até que ele foi longe… kkkk
    Que Deus te devolva em dobro a alegria que sentimos em ler suas crônicas. Bom domingo.

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    1. Querido amigo Luigi,
      Interessante que seu pai arrancava risadas por contar mal as piadas. É um enfoque que não me ocorreu na crônica.
      O importante é que ele se faz lembrar pelas histórias e bom humor.
      Fico contente de trazer à tona estas suas boas lembranças.
      Uma ótima semana para vocês e um grande abraço!

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  7. Como é bom ter um avô contador de histórias! Até hoje lembro do meu e de suas incríveis narrativas: uma citratiz operatória virava consequencia de luta contra um javali feroz nas selvas africanas…
    Também gosto de contar histórias para meus netos já adultos, mas de fatos pitorescos da história do Brasil guardados nos livros de genealogia, tão pouco divulgados!
    Obrigada, amigo, por tornar meu domingo especial e por reavivar lembranças preciosas.
    Aguardar seus escritos faz bem, sempre somos presenteados com surpresas.
    Um grande abraço.

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    1. Querida amiga Helena,
      Suas histórias devem deliciar seus netos pela sua forma de contar e pelo conteúdo.
      Fico muito feliz de tornar o seu domingo um pouquinho melhor trazendo estas preciosas lembranças.
      Um afetuoso abraço e desejo uma semana de paz e alegrias!

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  8. Hahahahahaha… que fofo! Queria tê-lo conhecido e ouvido suas histórias. Adorei a descrição de roupas claras e cheiroso. Vovó tb era assim.

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  9. Saudades de vovô Clemente
    sempre tão gentil e bem humorado!!Nossa mãe adorava ele e tinha uma relação muito próxima, tendo herdado esse lado “gente boa e simpático ”
    Obrigada por essa doce lembrança meu irmão!!

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  10. Nem toda história vira crônica. Sorte a do Gui de ter esse avô contador de histórias. Que a memória do Seu Clemente seja sempre lembrada assim como será a do Seu Cacau.

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  11. Meu Caro Amigo Sarmento, Muito bom dia. Independente da emoção de alegria que o seu Avô transmitia a você e a seus familiares, para mim, é significativa a sua sensibilidade em recordar esse ente querido, com tanto carinho e riqueza de detalhes, parabéns, mais uma vez. Recomendações à Sônia e demais familliares.

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  12. Querido Cacau,
    O Senhor Clemente deixou um discípulo muito valioso. Enquanto o menino Cacau ouvia as histórias, armazenava a criatividade, o mistério, a ternura e, hoje, nós somos os privilegiados da empolgação que o vovô despertava em nosso cronista.
    Meu pai também era um ótimo contador de histórias reais. Era muito agradável ouvi- lo. Para mim, representou uma forma eficaz de assimilar, não só conhecimento, mas também valores.
    E esse prazer de ouvir histórias não é restrito às crianças. Haja vista o sucesso do filme Forrest Gump que, na década de noventa , comoveu o mundo e foi o grande premiado do cinema .
    Conta mais histórias, meu primo- sua arte também nos faz esperar, não a próxima temporada, mas o próximo domingo.
    Conta muitas outras!!
    Beijo

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    1. Querida prima Gena,
      Adorei seu comentário!
      É verdade: como gostamos de histórias em todas as idades. Vejo o pequeno Guilherme já pedindo histórias todas as noites e querendo ler os “livrinhos”…
      Deve ser o mesmo com o João e Samuel, não é?
      Nem sei explicar como armazenei estas histórias e recordações. É a mágica da nossa mente, fabulosa criação de Deus.
      Obrigado pelo constante incentivo, minha prima.
      Fique com Deus e tenha uma maravilhosa semana!

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  13. Ótima crônica querido amigo!
    Me fez lembrar minha querida e saudosa mamãe que gostava de contar piadas para nós, crianças, próximo da hora de dormir.
    Que maravilha de lembrança!
    Obrigado e ótima semana!
    Abraços.

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