TRAMBOLHÃO

Tomei um tombo. Estava com vergonha de contar, pois quando a gente cai machuca muito o amor-próprio. Se tiver plateia então, é um vexame. Acho que o constrangimento dói mais que os machucados.

Com a humilhação diminuída pelo tempo que transcorreu, resolvi agora revelar. Foi na entrada da cozinha, em minha própria casa. Uma cozinha que tratei com tanto carinho, para a qual comprei bons armários, instalei luzes, equipei com eletrodomésticos e me fez uma esparrela dessas.

Vivo dizendo a todos que passam dos 60 anos para tomarem cuidado com quedas, pois um tombo pode mudar uma vida, para pior. No sentido figurado, os tombos que a vida dá podem nos levantar, fortalecer, amadurecer. Mas no sentido real, os tombos são mais perigosos com a idade, quando já não temos reflexos apurados, músculos fortes e ossos resistentes. Neste caso, melhor que levantar depois de um tombo é não cair…

Vamos ao trambolhão.

Era plena Copa do Mundo de 2022. O jogo Brasil e Suíça pela televisão apresentou um primeiro tempo monótono e sem gols. Desanimado, comecei a almoçar no intervalo do jogo e estendi-me por mais uns 15 minutos do segundo tempo, igualmente enfastioso. Ao terminar, fui levar o prato na traiçoeira cozinha e colocar umas coisas na geladeira, outra farsante, fria e impassível.

Foi quando ouvi uma gritaria de gol. Alguns vizinhos recebem o sinal de televisão um pouco antecipado em relação ao da minha casa e comemoravam a abertura do placar. Larguei o que tinha nas mãos e disparei em direção à sala na expectativa de assistir o gol ao vivo, alguns segundos depois.

Ocorre que as sandálias havaianas que eu usava se recusaram a me acompanhar. A do pé esquerdo dobrou-se, plantou a sola onde estava e não respeitou meu desejo de desembestar — palavra muito exata para aplicar aqui…

Pois bem, tropecei em mim mesmo, corri só com a perna direita tal qual um saci e desabei no chão, ficando meio corpo na cozinha e a outra metade já no corredor de acesso à sala. Bati com a testa na quina da porta e abri uma fenda próxima ao supercílio, por onde um chafariz de sangue jorrava.

Minha mulher logo me socorreu, ficando apavorada com a quantidade de sangue. Claro, a primeira impressão deve ter sido mesmo assustadora.

Poupo o leitor de mais detalhes, pois tombo é coisa íntima. Digo apenas que foi um pequeno, mas espalhafatoso ferimento, que levou uns 3 ou 4 dias para fechar. Até hoje está estampado na minha testa como um carimbo para lembrar a asneira cometida.

Por que correr para ver um gol na televisão? Ele é repetido à exaustão, passa em câmera lenta, repassa nas resenhas. Enfim, é analisado, dissecado e pode ser visto até que não se aguente mais.

O gol poderia ser assistido centenas de vezes, mas o sujeito, no caso eu mesmo, saiu desatinado, a catar cavacos — catar aí também é bem aplicado, pois foi o local da Copa — para ver na hora, algo que poderia fartar-se de ver alguns segundos depois.

Aprendi na escola que o homem é um animal racional. Isto é uma simplificação! O tombo me fez lembrar que a nossa racionalidade é limitada, às vezes muito limitada. Um amigo costumava dizer que todos nós temos 15 minutos de palermice todos os dias. Sei lá se com a idade este tempo também cresce…

Mas é óbvio que a raiz do tombo foi a emoção. Na presença dela, a razão fica tímida, encolhe, se ausenta. Claro, temos a capacidade de raciocinar, mas ela não é absoluta e não prevalece o tempo todo.

Talvez seja mais próprio dizer que somos seres que vivem oscilando entre a razão e a emoção. Só não sei se somos animais racionais que às vezes agem emocionalmente ou se somos animais emocionais que às vezes agem racionalmente…

Termino a história tornando meu tombo ainda mais ridículo. O tal gol, tão bem comemorado por todos, exceto pelo pé esquerdo da minha sandália havaiana, foi anulado pelo juiz.

Não vi um gol que não existiu…

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “TRAMBOLHÃO”

  1. Bom dia meu amigo, afinal, já é domingo. Estou eu aqui, ainda acordada e, admirando a obra prima de uma netinha que Papai do Céu nos presenteou (admirando o soninho dela), ou seja, admirando uma obra de Deus, quando vejo chegar uma mensagem sua, apesar do sono, resolvi ler, e comecei a sorrir, lembrando de alguns acontecimentos, afinal como vc disse: “…tombo é coisa íntima.” Nesse momento, ri pela segunda vez durante a leitura, a primeira vez foi qdo li a frase: “…tropecei em mim mesmo…”, só não dei uma gargalhada pq minha netinha estava no quarto comigo. Amigo, parabéns pela criatividade e inspiração que Deus te concedeu, continue alegrando a todos nós com esses Dons.
    Feliz e abençoado domingo!!!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Bom dia amigo.
      Nesse domingo de carnaval é bom mesmo alertar sobre tombos embora na nossa idade o carnaval não atrapalhe muito pois a festa é vivida no sofá e fica difícil acontecer como foi com você no gol anulado do Brasil.
      Mais uma crônica leve e surpreendente como só você sabe nos brindar aos domingos. Parabéns.
      Estou articulando um breve encontro nosso. Saudades.

      Curtido por 1 pessoa

      1. Meu querido amigo Nei,
        Como vocês, o nosso carnaval também é no sofá… E com o ar condicionado ligado, pois o calor está demais!
        Fico contente que tenha se divertido com a crônica.
        Quanto ao nosso encontro, aguardo com expectativa, mas estamos indo para Portugal amanhã e ficaremos por um mês. Retornamos em 21 de março, ok?
        Grande abraço, meu amigo e um beijo na Jaciara!

        Curtir

    2. Minha amiga Renusia,
      Fico muito feliz de saber que se divertiu com a crônica. E mais ainda de saber que tirou os olhos da sua querida netinha para dedicar um tempo à leitura…
      Que Deus abençoe e proteja toda esta família querida!
      Obrigado por comentar e que tenham um ótimo Carnaval.

      Curtir

  2. Quem de nós nunca tropeçou em si mesmo? Suas crônicas nos fazem ter uma dose de consciência mínima essencial. Parabéns pela partilha de momento tão íntimo. Abraços meu amigo.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu amigo, Guimo,
      Obrigado por comentar. Realmente tombo é coisa íntima… hahaha
      Aguardando com expectativa o nosso momento, também íntimo, de cozinharmos para nossas mulheres!!!!
      Grande abraço e um ótimo carnaval!

      Curtir

  3. Sarmento, semana que passou me livrei de um tombo… Tropeços, estou ficando mestre neles, se quiser te ensino alguns, mas o triste nesse meu, quase tombo, foi que corria para não cair num lugar onde felizmente NINGUÉM assistiu porque foi de um ridículo que eu mesmo ri de mim. Dei uns 10 passos correndo, para obter o equilíbrio de novo. Kkkk.
    Grande abraço, bom domingo e que Deus nos abençoe e nos livre dos tombos.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigo Luigi,
      Pela descrição, o seu quase tombo foi o típico “catar cavacos”… hahaha
      Ainda bem que conseguiu se equilibrar. Tem razão: Deus nos livre dos tombos!!!
      Um grande abraço, meu caro amigo e um bom carnaval à moda americana!!!

      Curtir

  4. Prezado Antonio Carlos:
    Sobre tombos, sou um especialista nas suas nefastas consequências. Recentemente, nos 02 últimos anos, fui alvo de dois desmaios (pressão baixa) que me levaram ao chão, sem antes me ferir a cabeça, na qual sofri 13 pontos. No segundo, no ano passado, produziu uma fissura na cabeça do fêmur esquerdo, o que me levou a uma cirurgia de 04 horas e 56 pontos, para extrair um tumor benigno, originado, sem qualquer explicação médica, no mesmo local.
    Então, você tem toda razão, depois dos 60 anos todo cuidado é pouco, porque certos tombos podem nos trazer gravíssimas consequências, por vezes irreversíveis.
    Abs. do seu fiel leitor e amigo,
    Carlos Vieira Reis

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu amigo Carlos,
      Felizmente conseguiu superar as graves consequências destes dois tombos.
      Obrigado por partilhar suas experiências. Fiquemos atentos para evitar estes acontecimentos, meu amigo!
      Um forte abraço e que tenham ótimos dias de descanso e paz neste carnaval!

      Curtir

  5. Depois de ler sua crônica, estou cada vez mais decepcionda com as Havaianas. Confortáveis, são um perigo quando não obecem ao usuário e teimam em ficar grudadas no chão. Pelo que ouço, essa artimanha das nossas preferidas é mais comum do que imaginamos.
    Eu e alguns amigos já ameaçamos tirá-las de circulação, mas acabamos desistindo, pelas muitas praticidades que oferecem.
    Você tem razão quando diz que os tombos, muitas vezes, machucam mais o ego que o corpo, mas fazer o que? É difícil assumir que a velhice faz parte da caminhada e que vamos perdendo os dons de malabaristas…
    Adorei a crônica, sempre fazem florescer as tardes de domingo.
    Um grande abraço.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Querida Helena,
      Realmente as Havaianas são práticas e confortáveis, mas trazem riscos… Todo o cuidado é pouco.
      Fico contente que a crônica tenha tornado a sua tarde de domingo mais agradável, provavelmente acompanhada daquele cafezinho à moda antiga, não é?
      Um afetuoso abraço!

      Curtir

  6. Irmão Antônio Carlos, boa tarde, você tem toda razão: tombo na terceira idade é de amargar! Agora mesmo, há uns 20 dias atrás, vindo da casa da Rosana, em Campinas, retornamos de semi-leito da Cometa, pois o preço das passagens aéreas estão pela hora da morte, e como estava chovendo muitíssimo, a Reginia quando retornou ao ônibus após a parada no Graal de Queluz, caiu do primeiro degrau do ônibus, pois estava muito molhado e caiu no cimento do piso, mas a perna esquerda ficou presa no degrau causando um ferimento que agora está difícil de curar, pois ela é diabética. Então todo cuidado é pouco na nossa idade. Dei graças a Deus de não ter quebrado nada! Um grande abraço e fiquem com Deus.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu amigo Aylton,
      Não sabia deste acontecimento com a Regínia. Espero que logo se recupere e fique bem.
      Felizmente não houve maiores consequências.
      Agradeço por comentar e desejo um carnaval de descanso e tranquilidade para vocês, seja no Recreio, seja em Teresópolis.
      Um fraterno abraço, meu amigo!

      Curtir

  7. Os tombos acontecem em nossas vidas, considero como normais. Quem nunca caiu?
    Não estou simplificando a situação, mas lembrei da época de criança e juventude, por ter vivido com muitos tombos pelas artes da criancice, e pelas amizades da época, era uma turma grande e difícil de acusar o mais bagunceiro, o mais quieto nunca foi identificado, impossível de saber quem era.
    Ainda bem, que nada de grave aconteceu.
    Eu acho que os “tombos adultos ” são em menor escala, mas com uma maior gravidade. Enfim, temos que ter mais atenção e cuidados.
    Mas, existem tombos que não são quedas de acidentes domésticos ou por descuidos de escorregões ou tropeços em outros lugares .
    Existem tombos, que a recuperação é mais complicada, e não são tombos que o sangue jorra, são os tropeços com a família, amigos, parentes e esses tombos emocionais, por vezes muito doídos e com o tempo de recuperação que podem ser longos, e também os perigosos tombos financeiros que também podem ser irrecuperáveis e nesses casos a idade pesa ainda mais.
    Depois da época da infância e juventude, os tombos, sejam quais forem, são muito perigosos e o tempo não é nada generoso para a recuperação, que ainda assim quando acontecem nem sempre é total.
    Escutei o seguinte: ” A ferida pode fechar, mas a cicatriz fica para sempre.” E, para mim, a visão da cicatriz faz a dor acontecer novamente.
    Como de costume, ótima crônica.
    Bjs

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu querido amigo Chico,
      Você ampliou os tombos e citou muitos aspectos interessantes. Tombos simbólicos…
      Quanto às cicatrizes, confesso que algumas da infância me trazem boas lembranças!
      Obrigado por comentar, meu amigo. O WordPress te joga para o Spam, mas eu faço questão de ir lá buscar.
      Um ótimo carnaval por aí. Beijos pra Pedrão e pra Helen!

      Curtir

  8. Caro Amigo Sarmento, Muito boa tarde. Permita-me dizer algo que penso já ter expressado: Você se supera a cada crônica. A expressão “catar cavacos” Me fez recordar a infância, era uma expressão muito utilizada naquela época. E não é que você com a sua maestria de cronista associou o catar da expressão com o nome do país onde se realizava a Copa do Mundo em 2022 – Catar. Independente de ser, para mim, uma situação hilária, imaginar você saindo da cozinha “desembestado” para ver um gol, fica a marca da sua perspicácia, própria dos sábios, na associação dos dois termos. Amigo, recomendações à amada família (Sônia, Tatiana, Jean e Guilherme), saúde e alegrias sempre, para todos.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu querido amigo JH,
      É muito interessante. Quando estava escrevendo e essas duas associações me ocorreram, pensei: O JH vai gostar destas!
      Acertei na mosca, meu amigo.
      Temos uma sensibilidade muito parecida para estes detalhes do texto, que valorizamos, apreciamos, nos chamam a atenção.
      Obrigado por comentar, meu querido amigo.
      Vou levar suas recomendações de saúde e alegrias pessoalmente: estamos embarcando amanhã e ficaremos por um mês em terras lusitanas.
      Um ótimo carnaval, meu amigo e não vá se exceder em blocos e desfiles…
      Grande abraço a você, Sueli, Júnior, Luizinho e a doçura da Catarina!

      Curtir

  9. Amigo querido, lendo sua crônica e os comentários, cheguei a conclusão que, na medida em que envelhecemos, vamos ganhado expertise em tombos ; não como evitá-los, mas, como torná-los cada vez mais frequentes e perigosos. Beijão e saudades

    Curtido por 1 pessoa

    1. Oh minha amiga,
      Nem me fale.
      Me lembrei do seu tombo… mas não sabia que você tinha buscado expertise! hahahaha
      Felizmente foi o último e não voltará a acontecer nada parecido. É o meu desejo!
      Obrigado por comentar.
      Eu ia te desejar um bom carnaval, mas não sei se tem isso por aí…
      Que estejam todos muito bem.
      Um beijão!

      Curtir

  10. Ótima Crônica!
    Estou vivendo isso, que coincidência.
    Levei o maior tombo.Na hora
    que eu ia subir no ônibus.
    Comentei com o Aylton:
    Além da dor e do susto,estou com vergonha.
    As pessoas foram solidárias ,
    Ofereceram algodão,álcool,etc…para fazer o curativo.
    E eu morrendo de vergonha!😩

    Curtido por 1 pessoa

    1. Oi Regínia,
      Que coincidência!
      De fato o tombo fere nosso amor-próprio, causa um mal estar que vai além dos ferimentos ou dores físicas. Mas logo o tempo passa e nos recuperamos. É o que espero que aconteça com você.
      Fique bem e tenha um rápido restabelecimento.
      Um afetuoso abraço e grato por comentar!

      Curtir

  11. Ótima crônica, como sempre!
    Tombo na terceira idade é realmente muito perigoso. é bom tomarmos mais cuidados com movimentos rápidos.
    Felizmente, no seu caso, nada grave.
    abraços.

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s