ESTOQUE

Certa vez passei 20 dias de férias em uma casa à beira do mar, daquelas que a gente apenas dá alguns passos e já está com os pés na areia. Minha mala só tinha sunga e pijama. Claro, a ideia era apenas descansar, descansar e descansar.

O sol exibiu-se durante toda a minha permanência, um presente dos céus. Fiquei no regime de três banhos: banho de sol por um tempo, até ser substituído pelo banho de mar, prazeres que se complementam divinamente. Mais um tempo e eu fazia o caminho inverso, numa alternância deliciosa e relaxante. No final de tudo, quando chegava a tarde, naquele momento em que a pele já arde, o perfeito arremate com um amável e sedoso banho de água doce. Como é boa a água salgada, como é boa a água doce…

Esta rotina extenuante diluiu todo o meu cansaço acumulado. A minha impressão era de ter esvaziado um grande reservatório de canseiras, cheio até a borda.

Voltei a trabalhar, revigorado e com muita energia. Mas constatei que não sei fazer estoque. Todo aquele repouso dos 20 dias, curiosamente não se acumulou. Em apenas um dia de trabalho, escoou quase tudo que descansei e que levei as férias todas para alcançar. O tal reservatório do cansaço que tanto demorou a esvaziar, já aparentava estar cheio novamente. Por causa da minha incompetência em estocar descanso, o ano para mim precisaria ser de 1 mês de trabalho e 11 meses de férias, mas nunca consegui este emprego…

Cheguei à conclusão de que cansaço acumula, descanso não.

Fiquei a pensar que aparentemente o mesmo acontece com as alegrias e tristezas desta vida. As coisas boas que nos acontecem e trazem alegria parecem mais perecíveis que os eventos ruins que nos brindam com tristezas. Tenho a impressão de que a memória, pelo menos a minha, é prodigiosa em guardar acontecimentos e sensações ruins e mais displicente em conservar o que é bom e agradável.

Os leitores que já me conhecem vão achar que eu deveria ter tomado um antidepressivo antes de escrever esta crônica, mas agora que já estou embalado no tema, me permitam continuar.

Há algum tempo, num mesmo dia no trabalho, vivi dois episódios contrastantes. Pela manhã, obtive uma excelente solução a favor da empresa num assunto financeiro pendente que se arrastava há anos. Poucas horas depois, na parte da tarde, durante uma conversa, me foi dirigida uma palavra, aliás, uma pedrada, desnecessária e ofensiva. Um fato gratificante seguido de outro frustrante.

Pois bem, fui para casa levando o desagradável e deixei o favorável no escritório.

Eu tentava esquecer o ruim e ficar com o bom, pingar umas gotas de conservante no pedaço da manhã e jogar no lixo o azedo da parte da tarde. Mas a memória, teimosa e dona de mim, escolhia exatamente a opção contrária.

A relevância do que aconteceu de positivo era muito maior, mas a pedrada ficava ressoando nos meus ouvidos e me impedia de escutar a música da vitória alcançada horas antes.

Ou seja, sofri mais com o ruim do que me alegrei com o bom. Que infeliz inversão.

Fica a suspeita de que a tristeza seja mais poderosa. Uma simples passagem desagradável em meio à uma série de coisas boas, pode fazer com que a nossa mente fique ali, insistente, trazendo a lembrança ruim, dando destaque ao que não presta. Parece até noticiário da televisão…

Sem falar naquelas tristezas que vêm e nunca mais nos deixam. Há algumas que, depois que as conhecemos, não nos abandonam mais e podem durar a vida toda. Parecem ser recicláveis: trocam de roupa, dormem e acordam, mas se reapresentam, estão sempre por ali, dentro de nós, fustigando e tirando um pouco do brilho de nossa vida.

E há ainda algumas que se dão ao luxo de nos causar traumas, marcas indeléveis que ficam tatuadas em nossa alma. São muitas vezes silenciosas, mas quase sempre perniciosas. Agem na surdina, se incorporam ao nosso ser e trazem junto consequências que atrapalham nossa vida.

Queria muito saber por que só acontecimentos negativos causam trauma. Ah, como seria bom se também houvesse alegrias com esta capacidade. Isso sim, seria maravilhoso. Nada de terapia, poderíamos viver traumatizados de alegria.

Mas a vida não é assim. Talvez ter consciência disso possa nos ajudar a reagir, a procurar focar nas coisas boas e desfocar das tristezas, trazer as alegrias à tona e deixar as amarguras na gaveta do esquecimento, olhar o azul e ignorar o cinza, perceber que a vida nos dá uma nova oportunidade a cada dia, um recomeço, uma nova chance de ser feliz.

Encontro ânimo numa poesia de Fernando Pessoa:

Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já me não dói
A antiga e errônea fé

O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Antonio Carlos Sarmento

27 comentários em “ESTOQUE”

  1. Mesmo os mais optimistas e positivos – como me parece que o António será – têm os seus momentos de “deslize”. Mas eles são importantes porque logo nos ajudam a perceber que estar no outro lado é bem melhor e que “tristezas não pagam dividas”, ou seja, que tristezas não resolvem os problemas.
    Haja saúde, o mais importante.
    E perante o que nos entristece e por vezes magoa (sem ser as situações do mundo….) a melhor questão a fazer é “será isto realmente importante para ficar a fermentar dentro de mim? Leva-me a ser melhor pessoa?”
    Maioritariamente a resposta será “não”.
    Bom domingo e boa semana!!

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    1. Dulce,
      Interessante que, quando escrevi esta crônica, minha mulher leu e comentou que diferia das demais, representando uma escorregadela no meu otimismo. Resolvi manter a publicação, já que saiu espontaneamente e sempre acho que a escrita precisa ser autêntica, vir do coração.
      Mas certamente não abro mão do otimismo e procuro ter um pacto com a alegria. Talvez tenha sido um “deslize” mesmo…
      Muito preciosa a ideia de avaliar o valor dos acontecimentos sob a ótica da melhoria individual que pode proporcionar. Façamos assim!
      Muito obrigado por comentar.
      Que tenha uma ótima semana junto à sua família!

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  2. Meu caro Amigo Sarmento, muito bom dia. “Ter consciência” é o termo que destaco na crônica de hoje, em que pese a riqueza de outros detalhes. Tenho aprendido que atenção é sinal de consciência, assim, à medida em que observo com atenção tudo o que ocorre à minha volta e, sobretudo, em meu interno, me torno uma pessoa melhor. Recordar o bem recebido é um imperativo da nossa vida. Não incomodar o outro e não se deixar incomodar pelo outro, é também, um exercício a ser praticado, se estivermos atentos aos movimentos internos, que eles promovem, em nós. Tenho aprendido que a vida nos outorga pequenas porções de bem que se transformam em felicidade, a qual se não as compartilhamos com outros seres, nós as perdemos. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu amigo JH,
      Seu comentário é enriquecedor! Passou por aspectos muito profundos e trouxe valiosas reflexões.
      Obrigado por colaborar tanto e saiba que há leitores que fazem questão de ler todos os comentários, pois ali recolhem outros conteúdos.
      Meu amigo, um afetuoso abraço e que sua semana seja de paz e farta de “pequenas porções de bem”!
      Lembranças à Sueli, Júnior, Luizinho e a graciosa Catarina!

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  3. Querido amigo.
    Você hoje tocou num assunto que realmente tem me absorvido na idade em que me encontro. É uma realidade a maior atenção que dedicamos aos momentos ruins em detrimento dos bons. Aí reside o meu esforço e desejo de envelhecer sem me mágoas, rancores e ressentimentos que não levam a nada. Lamento que somente ao envelhecermos somos tomados por esse sentimento. Antes tarde do que nunca….
    Grande e saudoso abraço querido amigo.

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    1. Querido amigo Nei,
      Considero você um exemplo de como envelhecer bem.
      Seu bom humor, as brincadeiras constantes e sua alegria me parecem ser a mola mestre, o segredo de sua longevidade e saúde.
      De fato remoer mágoas e acontecimentos negativos não é uma atitude inteligente e saudável.
      Muito obrigado mais uma vez por comentar.
      Desejo uma ótima semana à você e Jaciara!
      Abração!

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  4. Realmente…. por que não existe trauma de alegria, né? Seria ótimo mesmo. Temos que resgatar na memória e nas fotos os bons momentos, enquanto os traumas negativos não precisam de muitos gatilhos pra serem acionados.
    Assim como qdo estamos saudáveis: nem notamos o bem estar. Basta uma dorzinha no mindinho, que lembramos da dor todo o tempo. Mas gostei da dica de Fernando Pessoa. Farei esse exercício. 😀

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    1. Fefe,
      Eu desejo que a chegada da Mariana represente este trauma de alegria!
      Que maravilha, duas crianças lindas para embelezar e enriquecer a vida.
      Obrigado por comentar e que Fernando Pessoa te inspire a bons momentos de felicidade.
      Beijos

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  5. Meu amigo Sarmento. Tenho pensado e vivido esse drama diariamente! Como as dores permanecem dentro de nós sendo revividas! Como as alegrias se esvaem com a chegada de nova tristeza… Ainda mais que pela minha idade o acúmulo de tristezas e momentos difíceis foram grandes, infelizmente. Como luto pra colocar as alegrias no vácuo da tristeza. Triste isso.
    Mas tenho certeza que tudo isso é criado e alimentado pela nossa mente: o inferno e o paraíso habitam dentro de nós e é duro manter o foco nas alegrias. Mas é votal para nossa sanidade. Recebi um texto que te passo e que tenho usado como forma de tirar maus pensamentos quando me aparecem:

    “ Bondoso Mestre, é a sua voz que quero seguir todos os meus dias. Perdoe-me quando dou atenção às muitas vozes que me cercam, inclusive àquela que está sempre questionando dentro de mim. Ajude-me a ouvir e a seguir somente e para sempre a voz de Jesus. Em nome de Cristo eu oro. Amém.”

    Tem dado certo comigo. Te mando com todo carinho.

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    1. Amigo Luigi,
      Muito obrigado pelo texto que compartilhou. De fato vivemos num mundo de muitas e muitas vozes…
      Mesmo à distância, seus comentários passam a impressão de que está sempre alegre e jovial, ou seja, tem conseguido sucesso na luta para colocar as alegrias acima das tristezas. Leituras e trocas de ideias são importantes para isso, não é?
      Desejo ao amigo uma semana de muita luz, com momentos de verdadeiro amor junto aos seus!
      Grande abraço!

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  6. Mais uma linda crônica.
    Refletimos que realmente somos nossas escolhas.
    Geralmente, damos mais foco e peso as coisas negativas e esquecemos de dar um peso maior as coisas positivas.
    Tudo depende de onde sua mente âncorar, e nós temos o leme para conduzir qual mar queremos navegar.
    Precisamos amar cada vez mais!
    Bjs

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    1. Amigo Chico,
      Obrigado por comentar e por complementar com boas mensagens.
      Realmente depende de nós escolher o caminho, optar pela positivo da vida e rechear nossos dias de gentileza e fraternidade.
      Uma maravilhosa semana, meu irmão!

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  7. Caro amigo
    Depois de ler a crônica de hoje fiquei pensando e me veio a mente que, os aborrecimentos vencem os bons momentos ou alegria do dia , mas existe um “mas..”, no meu entendimento.
    Os maus momentos, passadas algumas semanas ou meses, ficam esquecidos ou guardados em um escaninho bem de baixo .
    As alegrias, em sua maioria, ficam guardadas no fundo do ❤️, sendo recordadas, quase vivenciadas novamente em nossas mentes! Forte abraço!

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    1. Amigo Rodolpho,
      Muito obrigado por comentar e colaborar nas reflexões sobre o tema. Pensar sobre ele pode nos ajudar a buscar uma vida cada vez mais leve e alegre.
      Um grande abraço, meu amigo, e que sua semana seja transbordante de bons momentos!

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  8. Cansaço acumula, descanso não….que sacada boa Cacau!!
    Realmente sinto que somos insaciáveis para o que é bom nessa vida,sempre querendo mais,o que é na verdade um desejo saudável. Ao contrário o que é ruim nos marca negativamente,embora possamos não nos abraçar nesse sentido. Afinal:
    “A dor é inevitável mas o sofrimento é opcional “

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    1. Minha irmã,
      Muito obrigado por comentar.
      Eu gostaria de poder dizer que alegria acumula, tristeza não… Que bom seria!
      Mas a arte de viver pode nos fazer chegar perto deste ideal, não acha?
      Beijos e uma ótima semana junto às suas três estrelinhas…

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  9. Meu amigo, será que nos parece que as tristezas são mais presentes e duradouras porque as alegrias muitas vezes estão nas pequenas coisas que passam despercebidas e não prestamos a devida atenção? Hoje, por exemplo, a lua em Brasília está esplendorosa!!! Cheia, imponente no imenso céu da cidade. Fiquei contemplando o espetáculo que se me apresentava e meu coração se encheu de alegria por isso. Será que todos sentiram o que eu senti ou a idade me faz perceber as “ pequenas” alegrias? Acho que essa percepção faz a diferença entre o pessimista e o otimista. É bem verdade que contemplando uma taça de vinho meio cheia, o pessimista pensará que o vinho está quase acabando e o otimista ficará pensando em quanto ainda tem para saborear. Eu, particularmente, pensaria que é hora de colocar mais vinho na taça. Beijão para todos

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    1. Amigo Lucia,
      Suas reflexões me fazem pensar que vivemos um pouco distraídos para as “pequenas” coisas, como este belo luar que a sua sensibilidade captou e levou ao seu coração sob a forma de alegria. Precisamos ter cuidado para não inverter e ficarmos mais atentos às “pequenas” tristezas…
      Obrigado por seu comentário, que me fez olhar para o céu, ver a lua e também ficar encantado com tanta beleza!
      Beijos e uma excelente semana, minha saudosa amiga!

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  10. Caro Sarmento: concordo quando você afirma que a desilusão parece mais forte do que as alegrias. No entanto creio que quando a pessoa se posiciona na vida com a cabeça erguida e uma visão focada no que tem mais qualidade e traz alegria é possível não se deixar abater pelas tristezas e desilusões. No mundo religioso e político encontramos vários exemplos. Um abraço.

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  11. Querido amigo, passei duas semanas envolvido com mudança, uma para embalar e mudar e mais uma para desembalar e arrumar. Agora estamos no nosso apto colocando do nosso jeito.
    A sua crônica da semana passada sobre o matrimônio dos seus pais e o seu mostrou algo da sua vida que fiquei surpreso. A do Capelão então foi demais.
    Com relação ao estoque das notícias positivas e negativas, caminho por essa estrada também, com fé e força de vontade para melhorar.
    Abraços e uma excelente semana para todos.

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    1. Amigo Newton,
      Mudança não é fácil mesmo…
      Mas felizmente colocou a leitura em dia e ainda arranjou tempo para comentar. Muito obrigado, meu caro amigo!
      Desejo muitas felicidades a você e Nuri na casa nova!
      Um afetuoso abraço!

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  12. Boa tarde meu querido amigo!

    Excelente crônica, que retrata momentos da nossa vida onde às vezes subestimamos as alegrias pelas tristezas.

    Somos humanos.

    Parabéns.

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  13. Como sempre, crônica escrita com o coração! O tema leva os leitores às mais variadas conclusõe, todas com certeza valiosas.
    Tenho percebido, talvez pelas muitas experiências vividas, que tanto as coisas desagradáveis, como as agradáveis nos impulsionam para o alto, para alcançarmos o ponto mais importante da vida: o Sagrado – ou seja lá como o chamemos.
    Deixar ambas estocadas, talvez constituam um poderoso arsenal, de onde podemos resgatar o que precisamos. Mas concordo que é importante mantermos a alegria, a boa vontade e todo tipo de amor que une e sustenta a alma.
    Sugestão: ouçam a obra musical e poética de Plínio de Oliveira, sem parcimônia e com muita atenção. Acalenta a vida. Um grande abraço.

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    1. Querida Helena,
      Obrigado por seu comentário, sempre interessante e trazendo novas reflexões. E ainda dando valiosas sugestões.
      Assim ajuda a enriquecer o site. Há de fato leitores que, após ler a crônica, se interessam em ler todos os comentários.
      Uma maravilhosa semana, minha amiga!
      Beijos

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