Certa tarde, na cidade do Porto em Portugal, entrei numa rua procurando a localização exata de um endereço ao qual teria que comparecer dias depois. Coisa de quem ainda não conhece bem a cidade e se preocupa, talvez excessivamente, em cumprir horários agendados.
É interessante que, nesta cidade, a paisagem muda de repente, sem dar sinal. Foi o que ocorreu. Saí de uma área mais moderna e, no virar de uma esquina, recuei uns 200 anos. Pequenas casas grudadas umas às outras, com traços arquitetônicos típicos do passado, todas pequenas, de dois andares e construídas lado a lado. Imaginei que dançavam coladinhas ao som de um belo fado.
Peço ao leitor que me permita adiar um pouco o tema da crônica para ilustrar mais minhas observações sobre o Porto. Tenho a sensação de que aqui não existe claramente áreas antigas e áreas novas ou, digamos assim, bairros com características homogêneas. Pelo contrário, parece que o antigo e o novo se misturam de modo surpreendente. É quase um susto a cada esquina.
Isso me faz andar pela cidade mais lentamente, percebendo os contrastes e encontrando beleza.
Ainda outro dia, fui assistir a um espetáculo de luzes em uma igreja do século 17. Fiquei maravilhado. Presenciei a mais pura arte no uso da tecnologia de ponta dentro de um ambiente com cerca de 300 anos de existência. Música, luzes, canhões de laser e efeitos especiais tornaram o interior da velha igreja, por mais de uma hora, ainda mais lindo que o original. Foi o novo enobrecendo o antigo, a tecnologia somando e não substituindo, embelezando e não sucateando.
Ah, se todo avanço tecnológico pudesse ter esta característica. A modernidade agregando valor à antiguidade. Nem saudosismo, nem modernismo, apenas evolução e tradição caminhando lado a lado. É um pouco o que sinto pelas ruas do Porto…
Volto agora àquela esquina e retomo o assunto da crônica, agradecendo a paciência do leitor.
Pois bem, a rua era calma, banhada por um silêncio gostoso e apenas eu caminhava pelas calçadas. Segui desfrutando do século 19 em pleno século 21, notando os detalhes construtivos e imaginando como era a vida que fervilhava por ali em tempos passados.
Alguns lentos passos depois percebi vozes de um casal conversando no segundo andar de uma das casas. Esta era toda de pedra e apresentava uma arquitetura simples e lógica: no primeiro piso havia a porta de entrada e uma janela grande. No segundo andar, apenas duas janelas. As vozes provinham de um casal de idosos que conversava animadamente, um em cada janela. Achei curioso. Duas pessoas numa mesma casa irem conversar à janela e, mais ainda, cada um na sua preferida. Uma conversa ao ar livre, dentro de casa.
Na calçada oposta eu ouvia as vozes, mas não discernia o conteúdo, embora deva confessar que fiz um esforço para isso, tentando bisbilhotar o que conversavam. Mas a distância e o sotaque português colaboravam para a privacidade deles.
No momento em que fixei o olhar, ele falava algo e ela estava rindo do que ouvia. Ele parecia um humorista que consegue se controlar e fica sério contando um caso, enquanto a plateia dá gargalhadas. A reação dela era um riso fixo, quase como uma fotografia, um encantamento, rindo com os olhos e a boca. Passava a nítida impressão de que se divertia com uma história interessante e bem-humorada. Em seguida, ela desferiu uma gargalhada e devolveu ao companheiro uma frase curta. Foi a vez de ele abrir-se num largo sorriso, interrompendo sua narrativa. Ela falou mais, ele riu mais.
Fui passando e observando a agradável conversa. Como é bom rir, como é bom fazer o outro rir.
Tive vontade de pedir para debruçar na janela de baixo e, dali, olhando para cima, acompanhar mais de perto aquela troca fascinante, feliz e cheia de vida. Velhos jovens.
Aí veio o desfecho: ambos esticaram os braços e, ainda rindo, tocaram as mãos. Um toque de carinho, agradecimento e alegria mútua. Eu quis aplaudir, de pé, longamente…
Porém, foi preciso dobrar à esquerda para chegar ao endereço que eu procurava. Despedi-me com um longo olhar não percebido por eles e segui pensando no casal.
Estavam velhos, juntos e alegres. Poderiam estar, um à janela olhando silenciosa e tristemente a monotonia da rua sem movimento, enquanto o outro, sentado numa poltrona dentro de casa, ruminava tédio e tristeza. A solidão acompanhada… Ou poderiam ter se desentendido em alguma época da vida, cada um tomado seu rumo e poderiam estar agora, não um em cada janela, mas um em cada casa. A solidão desacompanhada…
Porém a realidade era outra. Estavam ali, sendo não apenas uma presença, mas verdadeira companhia um para o outro. Que maravilha a velhice sem o deserto da solidão!
Uma linda cena, simples na aparência, difícil na construção e bela na essência.
Segui pensando que aquilo que presenciei não ocorreu por um mero golpe de sorte ou apenas por um feliz encontro de almas afins. Claro que o amor precisa existir e normalmente está no altar junto com os noivos, aliás, é ele que os leva até lá. Porém, a convivência vai acontecendo, os fatos se sucedendo, a vida mudando e assim o sentimento também pode mudar. Ou até acabar…
O amor sozinho não constrói um casamento longo.
Mantê-lo vivo e intenso pela vida afora é, sem dúvida, difícil. Exige determinação, ou melhor, obstinação. Quanta habilidade de relacionamento, quanto egoísmo abandonado, quanto perdão concedido, quanta gratidão manifestada e quantas renúncias oferecidas para que hoje pudessem se debruçar lado a lado, um em cada janela, a desfrutarem aquela tarde recheada de conversas e sorrisos.
O que eu vi era resultado de esforços e qualidades dele e dela, não um bilhete premiado que caiu do céu. Esculpiram juntos um diamante e agora eram ricos.
Aquela era mesmo uma casa de pedra. Pedra preciosa.
Antonio Carlos Sarmento
É ótimo receber logo pela manhã de domingo um alento cultural ainda na cama, abre ótimas perspectivas para o dia.
A vida a dois até que a morte os junte é um desafio que só os muito resilientes e cabeças duras com mente fixa poderão provar deste delicioso pote.
Acredito que neste caso as duas janelas muito provavelmente já tinham até donos, eram particulares…
Parabéns pela excelente crônica.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Caro primo Rômulo,
Fico contente que a crônica tenha sido lida logo ao acordar e representado um alento no seu domingo.
Obrigado pelo comentário e fico contente que tenha apreciado o texto.
Um grande abraço e ótima semana para vocês!
CurtirCurtir
Ah..que linda cena você presenciou e tão bem descreveu meu irmão!
“O tempero do amor é o humor”, aliás rir junto com alguém é algo especial, pois tem como premissa a intimidade e o se sentir à vontade!
O toque das mãos ao final foi lindo,assim como a beleza da amorosidade, do afeto e do carinho ❤️
Ótimo domingo pra todos vocês!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Minha irmã,
Sabia que sua sensibilidade apreciaria a crônica. Cenas simples, do dia a dia, mas carregadas de significado.
O toque das mãos também me pareceu um final perfeito naquele momento que viveram.
Obrigado por comentar e uma maravilhosa semana!
Beijos e saudades…
CurtirCurtir
Que bonito. Um privilégio conseguir rir e se alegrar com o companheiro. Adorei essa história.
E muito legal essa conversa na janela.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Fefe,
Obrigado por comentar. É muito bom saber que gostou.
A conversa na janela já quase não existe mais. Aliás, a janela perdeu esta função…
Beijos no Tom e na Mariana e uma ótima semana para você e Marcos!
PS: estimo que o Tom logo fique bom da gripe.
CurtirCurtir
Parabéns pela crônica! Como seria bom se os casais que vivem muitos anos casados (hoje cada vez mais raro) conseguissem controlar a rabugice que a idade traz e começassem rir das conversas leves, as vezes rindo de si.
Alem do que, sua crônica nos fala de um pais, Portugal, que nós, brasileiros, deveriamos agradecer por termos recebidos boas heranças culturais desse lindo país europeu. Mais uma vez, parabéns pelo seu olhar e boa semana! Deus os abençoe.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Amigo Luigi,
Você citou a possibilidade de rir de si: isto para mim é algo muito especial. Acho que quem consegue isso está mais próximo de ser feliz.
Obrigado por seu comentário, meu fiel leitor e amigo.
Desejo uma maravilhosa semana a você e sua família. Fiquem com Deus!
CurtirCurtir
Muito interessante esta crônica. Conversa na janela me fez lembrar de Romeu e Julieta. Tudo perfeito.
Obrigada pela beleza de cada trecho.
Um grande abraço.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Helena,
Que bom receber seu comentário!!!
Agradeço e desejo que esteja muito bem. Ainda estamos em Portugal e, em princípio, aqui ficaremos até o final do ano.
Receba o meu afetuoso abraço.
CurtirCurtir
Bom dia meu Amigo Querido!
Que bela Crônica parceiro, recheada de conselhos e de inspiração para todos os casais, independente de idade e cultura.
A casa de pedra é um exemplo diário para todos nós.
Parabéns !
CurtirCurtido por 1 pessoa
Meu queridíssimo amigo Luiz Carlos,
Muito obrigado pelo carinho de suas palavras. Fico feliz que tenha gostado.
Sabia que este seu coração amoroso seria sensível à casa de pedra…
Beijos e até breve, meu saudoso amigo!
CurtirCurtir
Querido Cacau, ganhei meu domingo com essa crônica, já degustei o livro com o mesmo carinho da dedicatória e estou em dia com todas as crônicas, cada uma melhor que a outra, KAISEN.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Amigo Adilson,
Agradeço muito seu comentário. Você ganhar o domingo com a minha crônica me faz também também ganhar o dia.
Grande abraço e fico contente que tenha apreciado o livro e esteja em dia com os meus escritos.
Um grande abraço!
CurtirCurtir
Hoje, domingo, passei em frente ao restaurante português que ficamos de ir juntos, aqui no Barra Shopping. A Idalina estava no cinema com a netinha Mel 🍯. Lembrei do amigo. Procurei um local para tomar um expresso (Casa Bauduco) e ler a crônica de hoje.
Gostei muito !
Gostei do “seu retrato do amor”, de lembrar o Porto, terra natal da Idalina, da oportunidade de sentir a sua experiência de vida em Portugal 🇵🇹, de nossos estudos, dos livros que não peguei, de sua visita em minha casa que não concretizamos. Em resumo: saudade irmão!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Grande amigo Rodolpho,
Sua mensagem espontânea e carinhosa me tocou o coração e me fez experimentar uma agradável sensação de reviver tantos momentos em que estivemos juntos. Só lembranças boas.
Com certeza você vai ter os livros como combinamos, almoçaremos no restaurante português, tomaremos um cafezinho depois e ainda faremos a prometida visita à sua casa (desde que não tenha sessão de fotos e vídeos… hahahahaha).
Um afetuoso abraço, irmão!
Beijo na Idalina, nos filhos e netinhos!
CurtirCurtir
Uma deliciosa crónica com alma brasileira e “corpo” lusitano! Foi um priviléio e uma sorte ter assistido a essa amorosa cena, digna de um filme romântico. Adorei!
O que seria mais comum ouvir nessas ruas tipicas e estreitas das nossas cidades era uma conversa entre vizinhas ou mesmo uma discussão. Infelizmente muitas dessas habitações estão agora como alojamento local ou foram restauradas e quem vive lá não são os locais. Esses foram recambiados para os arredores. Com isso o modo de ser e de estar tipico dos bairros também está a mudar, como é óbvio. Mas ainda se fala muitas vezes alto, de janela aberta. É assim porque foi sempre assim.
Gostei muito da sua crónica!
Bom domingo!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Dulce,
Adorei a “alma brasileira e o corpo lusitano.”
Fico contente que tenha apreciado a crônica e esta tenha atingido a sua sensibilidade.
A transformação urbana à qual se refere certamente é muito marcante aí em Lisboa e também já se nota aqui pelo Porto. São sinais dos tempos que vivemos.
De fato, as janelas já não são mais o que foram…
Agradeço seu comentário e desejo uma belíssima semana!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Antônio Carlos
Amei o texto!
Poderia usá-lo tranquilamente num Curso de Noivos (EPVM).
Que você continue sempre assim, inspirado. Abraços
CurtirCurtido por 1 pessoa
Querida Sandra,
Que bom ter gostado! Fico contente, de verdade!
Claro que se quiser usar nos EPVMs será um privilégio para mim.
Obrigado pelas palavras de incentivo.
Uma ótima semana e abraços à você e Frank.
CurtirCurtir
Saudoso e querido amigo.
Sábia frase que ” o amor sozinho não constrói um casamento,”.
Estou há 67 anos junto com Jaciara e acho que adquiri experiência para fazer essa confirmação.
Como sempre uma crônica de forma suave descreve momento da beleza de uma união que só a providência Divina tem explicações concretas. Tudo isso com você bisbilhotando e agora nos brindando com história tão bonita. Parabéns.Cioncirdo também com você ao comentar sobre a Cidade de Porto. Tive também essa mesma impressão da dualidade do antigo e do moderno.
Uma cidade maravilhosa.
Grande abraço amigo. Por aqui tudo bem e eu cada vez mais apaixonado pela Jaciara. Nunca estivemos tão próximos. Bjs em todos. Paz de Cristo.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Amigo Nei,
Aguardei seu comentário, pois quando escrevia sobre casamento longo e feliz, a lembrança de vocês me veio à mente. Recordei do nosso almoço a pouco tempo com o Chico, quando você ligou para Jaciara apenas para mandar um beijo e dizer que a amava. A choradeira de nós três à mesa foi um “mico”, mas tinha justa razão.
Beijos para vocês aí na vossa casa de pedra!
Muitas saudades, meu amigo…
Fiquem com Deus!
CurtirCurtir
Prezado Amigo Sarmento, muito boa tarde. Mais uma maravilhosa crônica e sobre um tema que nos fala muito perto, eu próximo de completar 50 anos de casado e você, também, a caminho, embora faltando um pouco mais. Lendo uma crônica dessas não dá para não pensar nas nossas experiências. Mais uma vez agradeço-lhe pela singela homenagem que, tanto me cabe quanto à você. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno Guilherme e demais familiares.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Querido amigo JH,
Fico feliz com seu comentário. Muito bom saber que se encontrou na crônica, sentiu-se homenageado e rememorou suas experiências.
Que a sua casa de pedra esteja cada vez mais robusta e feliz!
Grande abraço, meu amigo, hoje especialmente à você e Sueli. Não esqueça de me convidar para as bodas de ouro… hahahaha
CurtirCurtir