PONTAPÉ CERTEIRO

Eu não gosto de feira de livro. Sei que é contraditório alguém que escreve e aprecia a literatura afirmar isso. Mas tenho minhas razões que compartilho com o leitor. Acho difícil ver livros agrupados por Editora e não por tema. Fico perdido ao encontrar livros de autoajuda misturados com romances, obras de natureza técnica e livros de viagem. A desordem me confunde. Mesmo que haja ofertas e melhores preços, ainda prefiro as livrarias, mais organizadas e também mais calmas. Deve ser uma deficiência minha, pois as feiras de livro estão sempre cheias, felizmente, dando sinais de que a literatura está viva.

Talvez eu tenha sido acostumado a outro tipo de feira, às quais quando garoto acompanhava meu pai para comprar alimentos, principalmente frutas, que eram a paixão dele. As chamadas feiras livres. Estas sim, eu acho prazerosas de se frequentar. Uma barraca de frutas não vende legumes nem qualquer outra coisa. É tudo bem separado, arrumado em conjuntos que convidam à escolha. Sem falar que ali a degustação é oferecida por todo o lado e a gente vai se deliciando enquanto escolhe — é preciso que seja assim também com livros. Para completar, é muito fácil estabelecer uma relação com o feirante, que passa a nos chamar de freguês e aí só nos serve o que há de melhor — como seria bom se também fosse assim com livros. Enfim, no caso de feira, eu troco livro por livre.

Porém, o contato com os livros sempre traz algo de bom. Mais por curiosidade que por vontade, acabei indo à uma feira de livros recentemente, o que me permitiu folhear algumas obras de Annie Ernaux, prêmio Nobel de literatura em 2022. Em um de seus livros, numa página introdutória com apenas uma frase, encontrei a seguinte pérola:

“Se eu não escrever, as coisas não se cumprem, terão apenas sido vividas.”

Foi um baque!

É exatamente o que penso e nunca consegui formular de maneira tão concisa e completa. Percebi isto desde que comecei a escrever: o que já vivemos se transforma quando escrevemos sobre o ocorrido. Parece que deixa de ser apenas um acontecimento do passado, se revigora ao ir para o papel, ganha mais significado e adquirimos a consciência de que é algo que nos constitui.

O que sai do passado para o papel, deixa de ser passado. Torna-se memória viva, que nos transforma e enriquece. É como tirar uma planta do fundo do lago da memória e fazê-la boiar como uma vitória-régia, que permanece à tona, flutuando, se fazendo presente.

Com estas reflexões fui saindo da feira, pois a visita já havia valido a pena. Caminhando para casa, Annie Ernaux cochichou no meu ouvido um acontecimento que há tempos tentava emergir. Decido então que chegou sua hora de ir para o papel. Se eu não escrever, fica só como uma vivência e não como uma experiência. Além do que, compartilhar histórias e reflexões também pode ser bom e enriquecedor para os que leem.

Foi há muito tempo. Eu tinha 12 anos e estudava num colégio católico exclusivo para meninos. Havia alguns professores não religiosos, mas nosso convívio era principalmente com os padres. Resisto a contar detalhes e peraltices para evitar manchar meu passado católico, mas imagino que o leitor já preveja o que meninos juntos, em ambiente de rigorosa disciplina, são capazes de produzir. Daria um livro, mas fico neste episódio apenas.

O colégio possuía um grande pátio com uma quadra poliesportiva, alguns brinquedos, uma cantina e a atração maior: algumas poucas e concorridas mesas de pingue-pongue, mais ou menos organizadas por faixa etária.

A garotada fazia fila para jogar. Era tanta gente que não se formavam times ou duplas. Funcionava assim: era um contra um e quem perdia dava lugar ao próximo da fila. Às vezes, um longo tempo na fila permitia ao infeliz jogador apenas receber mal o saque do adversário e, tocando uma única vez na bola, já entregar a raquete e voltar para o fim da comprida fila.

Foi neste cenário que se deu o caso.

Certa ocasião, chegou a minha vez quando um gigante de 18 anos, chamado Luiz Felipe (acredite, meu leitor, que o nome dele me veio à lembrança neste exato momento), invadiu a mesa de pingue-pongue, tomou o lugar e colocou-se como meu adversário. A molecada da nossa faixa de idade nada pôde fazer a não ser, em silêncio, assistir a cena e aguardar que o troglodita se cansasse da brincadeira e nos deixasse em paz.

O invasor colocou-se a postos, raquete em punho e olhou-me desafiadoramente. Procurei expressar a raiva coletiva com um olhar de reprovação e desagrado.

— Vai. Joga! — comandou o casca-grossa.

Mantive o olhar nele e a bolinha na mão. Eu queria dizer que não ia jogar de jeito nenhum, mas o medo me dominava e paralisava.

Ele demonstrou sua impaciência dando uma sonora pancada com a raquete na mesa.

Permaneci imóvel e ainda mais assustado.

Vendo que eu me recusava a jogar, ele então extravasou sua agressividade e, de surpresa, lançou a raquete com toda força na minha direção. Meu instinto de autopreservação venceu a paralisia e me abaixei. A raquete passou voando e bateu numa coluna atrás de mim produzindo um som estridente.

Não tendo me atingido, o sujeito enfurecido veio na minha direção.

Os seis anos de diferença entre as nossas idades era um abismo. Aterrorizado e sem saber o que fazer, vi ele aproximar-se rapidamente como um leão faminto. Foi a vez do instinto de sobrevivência: não sei como, sem pensar, desferi um desesperado pontapé entre as pernas dele. Atingi o alvo.

O agressor curvou-se sobre si mesmo como um camarão frito e desabou no chão.

Estático e apalermado, assisti ele ser socorrido e, gemendo de dor, ser levado às pressas para um atendimento médico. O desfecho não produziu em mim nenhum sentimento bom, pelo contrário, fui assaltado por uma sensação de arrependimento, uma angústia que me doía talvez mais do que se tivesse levado a surra que estava a caminho. Longe de ser um herói senti-me um covarde.

Perdi a paz.

O sinal tocou e retornamos às aulas, mas minha mente ficou ali no pátio do colégio, reprisando os acontecimentos vezes sem fim. Alguns colegas tentaram me confortar, mas para cada um eu tinha um contra-argumento:

— Foi legítima defesa.

— Defesa sim, legítima não — rebati.

— O adversário era alto, o golpe tinha que ser baixo.

— Foi baixo demais.

— Nunca mais você vai acertar um golpe tão certeiro.

— Se Deus quiser…

— Nunca mais ele vai mexer com você.

— Isto não me alivia nem um pouco.

— Como você estaria se sentindo se não tivesse conseguido derrubá-lo?

— Eu preferia apanhar — concluí.

A possibilidade de ter causado um mal definitivo à uma pessoa era um tormento incessante que não me abandonava um só minuto. Pela primeira vez, aos 12 anos, experimentei a dor na alma que causa o remorso. Arrependimento às vezes tem solução, permite que a gente volte atrás, peça desculpas e procure se redimir. Remorso não tem solução.

No fim da tarde, tomei coragem e fui buscar notícias sobre a saúde do meu adversário, ou melhor, minha vítima. O padre da Secretaria me disse que ele estava sob cuidados médicos em casa, mas ainda não havia um diagnóstico definitivo. Era uma terça-feira longe do carnaval, mas o dia seguinte para mim foi uma quarta-feira de cinzas.

Até então estudar em um colégio de padres não havia feito crescer um milímetro da minha pouca fé. Mas diante daquele acontecimento fui à igreja, fato que os padres que me educavam achavam que seria corriqueiro, mas que na verdade era raro. Raro não, raríssimo. Ali, diante do altar, ajoelhado, prometi que se o rapaz ficasse bem, eu iria à missa todos os domingos, durante um ano. Na ingenuidade de meus 12 anos transformei em sacrifício o que seria uma obrigação normal.

Somente na sexta-feira, o mesmo padre mandou me chamar. Fui até a sala dele com o coração aos pulos, exalando ansiedade e preocupação. O padre me recebeu de senho franzido e incialmente passou um sermão, o que é muito próprio de padres. Ao final me avisou que Luiz Felipe estava bem e voltaria ao colégio na próxima segunda-feira.

Foi como tirar uma tonelada de meus ombros. Na realidade, saiu uma tonelada e ficaram 52 quilos, um para cada domingo em que eu teria que ir à missa. Apesar de ter alcançado a graça, a fé continuava fraca, mas já adianto ao leitor que cumpri a promessa religiosamente.

Foi assim que, no mesmo episódio, descobri o remorso e também um imenso alívio ao me livrar dele. Poucas vezes experimentei estes sentimentos com tanta intensidade.

Não havendo as consequências que eu imaginava, o remorso transfigurou-se em mero arrependimento, muito mais fácil de suportar e que eu talvez pudesse resolver quando da volta do Luiz Felipe ao colégio, após o final de semana.

Só não pude permitir que os padres soubessem que comemorei quando fui à última missa prometida, e que, daí em diante, mantive minha frequência à igreja apenas em casamentos e batizados… Felizmente Deus perdoa tudo, ainda mais os nossos pecados cometidos aos 12 anos!

Mas não vou deixar o meu querido leitor sem o desfecho.

Claro que passou pela minha cabeça que Luiz Felipe pudesse desejar vingança, o que seria difícil eu evitar. Porém, esta ameaça, nem de longe, se comparava com a dor do remorso que experimentei naqueles três dias enquanto aguardava notícias. Aprendi que, em segundos, podemos fazer algo sem pensar que pode nos custar anos ou até a vida toda de sofrimento.

Cheguei ao colégio na segunda-feira com um misto de amor e temor. Eu queria perdão e entendimento, mas estava pronto para o castigo. Decidi no caminho de casa até o colégio que protegeria minhas partes baixas com as duas mãos, como um jogador de futebol na barreira, e o resto ficaria ao sabor da vingança do meu algoz, caso ela se consumasse. Não queria passar pelo que ele passou e correr o risco de uma sequela permanente.

Na hora do primeiro recreio do dia eu estava conversando num grupo de garotos, fingindo tranquilidade enquanto, como um sapo, girava os olhos atento a todos os movimentos em volta.

Foi quando o avistei.

Ele também me viu e veio direto em minha direção. Fiquei nervoso, surdo para o que estavam falando, cego para o resto do mundo e decidido quanto ao que iria fazer: antes que ele pudesse tomar qualquer iniciativa, eu pediria desculpas.

Mas a voz travou com a aproximação dele. Não só a voz, mas todo o resto. Aguardei como uma estátua, não por vontade, mas por absoluta incapacidade de falar ou fazer qualquer outra coisa.

Inesperadamente, notei que parecia calmo e não tinha uma expressão de rancor. Ao chegar mais perto, pensei ter percebido traços de simpatia. Desarmei-me.

Já na minha frente, ele disse:

— Pontapé certeiro, hein?

— Desculpe!

Ele passou a mão na minha cabeça alvoroçando meus cabelos e sorriu.

Foi o sorriso mais complacente que já recebi até hoje.

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “PONTAPÉ CERTEIRO”

  1. Pra mim foi uma riqueza grande a comparação que fez entre arrependimento e remorso e suas consequências na alma.
    Parabéns pela crônica.

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  2. Por mais uma vez, você conseguiu que eu visse as imagens do que você escreveu, o que demonstra a qualidade do escritor.
    A crônica é muito interessante e rica, expressando o sentimento que envolve o acontecimento e como realmente a mesma coisa tem significado diferente para casa um de nós, a minha ação talvez tivesse sido a mesma se o acontecido fosse comigo, porém, o meu sentimento acho que teria sido outro.
    Comecei muito bem o Domingo e me deliciei na sua crônica.
    Valeu Cacau!
    Beijos

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    1. Meu amigo Chico,
      Fiquei curioso sobre qual teria sido o seu sentimento no episódio. Pessoalmente você me fala sobre isso, ok?
      Fico contente que tenha se deliciado com a crônica e começado bem o seu domingo.
      Grande abraço, meu irmão!
      Beijos na Helen e no Pedrão!

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  3. A crônica fluiu em palavras e frases como um rio que corre sereno e confiante de finalizar sua jornada no mar, entregando ao leitor um texto compacto e extremamente bem elaborado.
    Deixa uma sensação de que o autor não participou com interferências e deixou o sentimento e a recordação fluírem direto da alma para a crônica, algo divino.
    Passar para o papel algo ocorrido, trás a mente detalhes que passariam despercebidos e seu valor completamente esquecidos.
    O texto fica muito mais rico e reforça o aprendizado e a memória e, algumas vezes, até parece que a história é outra e que não fomos nós que a vivenciamos.
    Parabéns e aguardo o retorno deste presente dominical pelo menos duas vezes a cada mês.
    Abraço.

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    1. Querido Rômulo,
      Seu comentário é um primor e apreciei muito cada palavra. É muito gratificante receber um retorno como o seu.
      Fico feliz, de verdade!
      Quando ao ritmo mensal estou avaliando e, claro, levando em conta a opinião e o desejo de meus leitores fiéis, como você.
      Grande abraço, primo e que você e sua família tenham uma maravilhosa semana!

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  4. Querido amigo.
    Saudades de vocês e de suas crônicas.
    Essa , como sempre maravilhosa e com grandes ensinamentos.
    Também não sou muito aficionado em feiras de livros. Aliás não sei comprar livros em feira a não ser que vá com tudo já definido. Prefiro as livrarias…
    Quanto a partida de ping pong agradeço ao amigo rememorar meus momentos de coordenador de colégio em que jogava com os alunos e foram momentos inesquecíveis… As regras eram um pouco diferentes pois quem fizesse três pontos permanecia na mesa … Todos queriam ganhar do Prof Nei…
    Quanto ao seu golpe certeiro realmente foi muito interessante e nos trouxe muitos aspectos para vastas reflexões.
    Obrigado amigo e abraços saudosos em todos.

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    1. Querido amigo Nei,
      Por aqui também estamos com muitas saudades de vocês.
      Que bom ter apreciado a crônica e feito reflexões: este é sempre um dos meus objetivos ao escrever.
      Obrigado por comentar, meu amigo!
      Não sabia de suas peripécias como astro do pingue-pongue…
      Beijos na Jaciara e fiquem com Deus!

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  5. Meu amigo. Uma delícia de crônica, como sempre, reflexiva e cheia de vida. Para todos os que estudaram em colégio de padres, sabemos bem o quanto essas coisas acontecem e marcam nossas vidas. Parabéns!

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    1. Meu querido amigo Guimo,
      Não sabia que também havia estudado em colégio de padres. Mais um ponto em comum entre nós. Você deve ter muitas histórias desta época, não é?
      Obrigado por comentar, meu Chef!
      Beijo na Cris e fiquem com Deus!

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  6. Prezado Amigo Sarmento, muito boa tarde. É sempre com muita alegria que recebo suas crônicas. A de hoje traz muitos aspectos dignos de registros, para mim, contudo, cito somente dois deles: 1 – A sua verve com as palavras é singular: feira livre ou do livro, sensacional. 2 – E os sentimentos, remorsos e arrependimentos? Quantas boas reflexões você nos proporciona a cada texto. Parabéns!!! Ininterruptos!!! Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu grande amigo JH,
      Fico sempre feliz com seus comentários e agradeço mais uma vez por destacar o que lhe chamou a atenção. Isso me ajuda muito!!!
      Espero que a crônica o tenha levado a interessantes reflexões.
      Grande abraço, meu amigo. Lembranças à sua querida família, Sueli, Luizinho, Júnior e uma beijoca pra Catarina!

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  7. Querido amigo, você tem o dom para escrever, pois na medida em que lemos a crônica vamos assistindo as imagens criadas pelos acontecimentos.
    Você coloca feira de livros, pingue-pongue, problemas de adolescentes na escola, vingança, medo, ação e reação de forma muito clara.
    Me fez lembrar acontecimentos nessa faixa etária na escola, na rua, com os amigos e colegas, etc…..
    Que boas lembranças!
    Muito obrigado por me fazer parar na correria e acionar a memória.
    Abraços e boa semana!

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    1. Amigo Newton,
      Agradeço o excesso de generosidade de suas palavras sobre a minha escrita.
      E fico contente que tenha despertado boas lembranças ao amigo.
      Grato por comentar!
      Um grande abraço e lembranças à Nuri!

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  8. Querido Cacau, saudades de nossas interações. Mas sempre fiel à leitura.
    Essa ideia de reviver momentos preciosos é muito rica e verdadeira. Eu também busco no passado as emoções que acumulei e pensar nelas me alegra e me preenche. Escrever, realmente, é mais produtivo, pela inspiração que oferece ao leitor ( e suas histórias cumprem bem esse papel).
    Pontapé Certeiro despertou sentimentos divididos: começamos com o prazer que nos traz a o livro- basta ter um exemplar e um silêncio e temos um programa completo. E a maioria deles têm uma capa bonita, artística, que já promovem uma festa na mente.
    Nosso prazer persiste com a cena do menino diante do grandalhão – eu tinha certeza de que nosso Davi acabaria com o metido Golias !!
    Mas, aqui o sentimento muda: a triste constatação da covardia do mais forte sobre o mais fraco que, em nossos dias, infla as estatísticas de violência ( principalmente doméstica).
    Finalmente, um bálsamo:
    um coração arrependido,
    Um olhar compassivo,
    Um pedido de perdão.
    Não me surpreendi: era exatamente o que eu esperava daquele menino querido- a piedade não foi ensinada, a alma já veio prendada.
    Beijos a todos os queridos na santa terrinha.

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    1. Querida Gena,
      Que bom este contato. E que beleza este seu comentário, recheado de frases ricas e bem escritas.
      Obrigado, minha prima querida!
      Desejo que esteja muito bem, alegre com a vida e cercada do amor de suas filhas e netinhos!
      Fique com Deus e tenha um maravilhoso final de semana.

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