A REFORMA

Resisti algum tempo a ler livros adquiridos em Portugal. A vida toda lendo em português do Brasil deixou-me um costume e uma fluidez de leitura que eu relutava em abandonar. Claro que é mesma língua, mas há diferenças no uso das palavras, na formação de frases e em expressões cotidianas. Tanto é assim que um livro estrangeiro tem que ser traduzido para o português em edições diferentes para Portugal e para o Brasil.

Acabei por comprar meu primeiro livro em português original. O título me chamou a atenção, a sinopse acentuou meu interesse e veio o desejo de conhecer a obra. Por acaso, o livro ainda não foi editado no Brasil e assim, mais por falta de alternativa que por vontade própria, rendi-me e mergulhei na leitura em nossa língua mãe.

O fato é que me deliciei com o texto e decidi de agora em diante ler indistintamente nas duas versões de português. Não devia ter resistido tanto tempo. É riqueza pura ver a nossa língua sendo usada de outra forma.

Longe de mim chatear meu leitor e ficar apontando uma monótona série de exemplos. Apenas me permitam contar que um jovem de “dezanove” anos pode sair para pescar, percorrer um “trilho” até a beira do mar, ali colocar o “isco” no anzol e depois comer “uma” sanduíche, enquanto aguarda que o peixe também deseje fazer uma refeição.

Nada demais, nada que prejudique o entendimento, pelo contrário, uma diversidade suave e curiosa, variações em torno do nosso idioma.

É comum que a gente se depare com estas diferenças também no dia a dia aqui em Portugal. Há pouco tempo, compareci a um balcão de atendimento ao cidadão para preencher um cadastro. A senhora ia perguntando e registrava as informações em um sistema informatizado. Lá pelas tantas indagou:

— Profissão?

— Aposentado — respondi.

— Reformado — corrigiu-me a funcionária.

Em mais alguns segundos, o atendimento estava terminado, mas a palavra “reformado” permaneceu na minha mente. Acho que no Brasil apenas os militares usam esta expressão.

Saí de lá pensando que o verbo aposentar tem o sentido de pausar, pousar, parar, ir para o aposento. Isso é tudo que eu nunca quis. Levar uma vida monótona e vazia, descansar de um cansaço que já não existe, mergulhar na passividade de espectador, seja de televisão, celulares ou tablets. No sentido literal, aposentar seria praticamente uma prisão sem grades.

Já reformar traz em si outro sentido. É dar uma melhor forma. Sim, uma nova vida exige um novo estilo, um outro cotidiano, estipulado com intenção, com planos e decisões concretas. Uma reforma no modo de viver. Claro, pois se deixado ao acaso, sem propósito, a nova vida pode tornar-se amorfa e cair num vazio onde sobra tempo e falta felicidade.

Sem os encargos do trabalho, é possível desfrutar de uma maneira diferente de viver. Claro que não é possível usar a mesma receita se os ingredientes são outros. Parar não é uma opção, pausar só por alguns dias, pois a gente logo cansa de descanso e o ócio vira tédio. O vazio deixado pelo trabalho há que ser preenchido com um delicioso recheio que não havia na receita anterior. Não com parada ou pausa. Muito menos com reclusão à um aposento.

É preciso aprender a viver de modo diverso, preparar-se para novas rotinas, enriquecer a vida com atividades gratificantes, úteis e saudáveis. Uma vida com intencionalidade é sempre mais rica e plena. Enfim, há que se dar nova forma à vida, pois sem encontrar um novo jeito pode-se acabar virando rejeito.

Enfim, neste caso o português original me parece muito mais adequado. Aposentadoria é fim, reforma é reinício, ou melhor, aposentadoria é pouso, reforma é decolagem.

Lembro agora de meu pai, que aos 90 anos, descia todas as manhãs para nadar no mar. Morava em frente à praia e, logo após o café da manhã, pendurava uma toalha ao pescoço e, de sunga e sandálias de dedo, descia para seu prazeroso exercício diário.

Lá chegava, esticava a toalha na areia, abandonava as sandálias e entrava na água. Em dois ou três mergulhos passava a arrebentação e iniciava seu zigue-zague na pequena praia, indo e vindo de uma ponta à outra, em braçadas vigorosas. Sem máscara, sem toca, sem protetor auricular, sem pés de pato, usando apenas o seu corpo, como provavelmente fazia quando criança ao nadar em rios e lagoas do interior longínquo onde nasceu. O corpo tinha 90 anos, mas ali dentro ainda estava vivo aquele menino da roça.

Quando terminava a natação, deitava-se na toalha por breve tempo, desfrutava do calor do sol, relaxava os músculos e recompensava o corpo pelo esforço. Esta rotina produzia nele uma aparência saudável, uma cor de pele invejável e uma robustez que o permitia passar longe até mesmo de gripes e resfriados.

Certa vez, minha mãe, que era 14 anos mais nova que ele, estava na varanda do apartamento assistindo a cena e acompanhando seu movimento com a cabeça para lá e para cá, como faz o público num jogo de tênis. Foi então assaltada por um pensamento ruim e telefonou-me na hora:

— Meu filho, estou preocupada com seu pai. Ele já tem muita idade e fica nadando praticamente sozinho, pois nos dias de semana não tem guarda-vidas e nem ninguém na praia. Se ele passar mal, não terá socorro e pode acontecer o pior.

Achei curioso, uma pessoa de 76 anos dizer que uma outra tem muita idade, mas preferi não comentar.

— Mãe, ele adora nadar e nada nem ninguém vai convencê-lo a parar.

— Você fala com o médico dele para proibir. Ele vai respeitar uma ordem médica.

— Hum… não sei, mãe.

— Por favor, meu filho. Faça isso. Estou muito angustiada.

Para mim sempre foi difícil dizer não à minha mãe, por tudo que ela representou na minha vida. No final do dia, liguei para o médico e relatei o assunto. A resposta foi taxativa:

— Deixa ele nadar. É muito bom para a saúde física e mental dele.

— Mas não é perigoso, doutor?

— Viver é perigoso. Não podemos privar ele de riscos e deixá-lo sem vida. Ele tem 90 anos e está bem de saúde. Se acontecer alguma coisa será uma fatalidade, mas pelo menos ele estaria fazendo algo que lhe dá muito prazer e ajuda a preencher a sua vida.

— Tem razão. Obrigado!

No dia seguinte, no horário da natação marítima de meu pai, telefonei para dar um retorno. Minha mãe aguardava ansiosa.

— Oi, meu filho. Eu estava na varanda vendo-o nadar. Você falou com o médico?

— Falei sim.

— E o que ele disse? Também achou que é arriscado?

— Concordou que existe risco.

— Viu? Eu tenho razão de estar preocupada. Ele vai proibir?

— Mãe, vou resumir o que ele disse em uma frase.

— Sim.

— O contrário de viver é não arriscar!

Meu pai nadou por mais 7 anos e morreu de causas naturais aos 103 anos.

Nunca se aposentou. Era reformado.

Antonio Carlos Sarmento

30 comentários em “A REFORMA”

    1. Parabéns Parceirinho, pela bela crônica. Seu pai deu exemplo de que não devemos nunca desistir de curtir os prazeres que a vida nos dá, nadar sozinho deveria ser o grande prazer da sua vida.
      Muito legal
      ET: por isso, só pararei de correr quando o corpo determinar.
      Beijão

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  1. Prezado Antonio Carlos:
    Ainda bem que me acho “reformado”, longe das antigas atividades profissionais.
    Mas, infelizmente, não posso seguir os sadios caminhos percorridos por seu pai, devido às minhas precárias condições de saúde.
    Tenho que me dedicar a outros deleites, como, por exemplo, aos carros antigos.
    Sds. do seu assíduo e eterno leitor,
    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Sempre uma alegria receber seus comentários, seja por e-mail, seja por aqui.
      Tenho certeza de que o amigo está mesmo reformado e espero que desfrute ao máximo da sua vida e de suas “antiguidades”!
      Um forte abraço!

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  2. Amigo querido , creio que sou reformada. Nao saio para nadar como seu pai porque, por incrível que pareça, não consegui aprender- e olha que tenho um irmão que é professor de natação. Por outro lado, faço duas coisas que adoro e me enchem de alegria: tenho bastante tempo para curtir filhas e netos e viajar muito!!!
    Beijo grande em todos vocês

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    1. Amiga Lúcia,
      Claro que não é preciso nadar. O problema é não fazer nada…
      Sei muito bem que não é o seu caso, pois leva uma vida rica e cheia de afeto junto às suas filhas e netos.
      Um beijo saudoso, sua reformada!

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  3. Querido amigo.
    Mais uma vez suas crônicas envolvendo experiências familiares são deliciosas. Como são bonitas as recordações paternas.
    Obrigado também por nós ter aguçado o desejo de rememorar as diferenças da língua portuguesa no Brasil e Portugal. São sempre muito interessante.
    Você tocou num assunto envolvendo os militares que exige o meu direito de resposta.
    Quando o militar brasileiro atinge por idade o direito de ” ir para casa ‘ ele passa primeiro por um período de Reserva. Então ela vai para a reserva remunerada…
    Após um tempo ele sai automaticamente da reserva e é reformado…
    A reforma é o termo militar que é o mesmo da aposentadoria pelo civil.
    Mas foi muito interessante você preferir a reforma do que a aposentadoria…
    Obrigado mais uma vez por essa delícia de crônica e grandíssimo abraço saudoso.

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    1. Querido amigo Nei,
      Sempre aprecio e me divirto com seus comentários. Pedir direito de resposta por ter citado os militares arrancou-me um sorriso que demorou a passar… Fico muito feliz em saber que se deliciou com o texto e com as recordações paternas.
      Muito obrigado por comentar, meu querido e saudoso amigo.
      Uma excelente semana para você, Jaciara e toda a família!

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  4. Eu creio que essa funcionária lhe replicou “reformado”, porque o termo aposentado está associado a quem recebe uma pensão da Caixa Geral de Aposentações, ou seja, da entidade para onde descontam os funcionários públicos. E creio que o termo reformado está mais associado a quem descontou para a Segurança Social, ou seja, todos os que não são funcionários públicos.
    Neste momento já está em andamente a unificação desses duas entidades. Quem entra agora para o Estado (funcionário público), já não vai descontar para a dita CGA mas sim para a Segurança Social.
    Digamos que é uma nomenclatura associada apenas a entidades diferentes.
    Provavelmente no Brasil são todos aposentados, tenham trabalhado no Estado ou não.
    Fora esta conversa, como sempre gostei muito da sua crónica!Boa semana!

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    1. Cara Dulce,
      Não sabia da diferenciação que você tão bem esclareceu. Só espero que na unificação da nomenclatura em Portugal prevaleça a denominação de Reformado!
      De fato, no Brasil, exceto os militares, todos são aposentados.
      Fico contente que tenha apreciado e desejo uma ótima semana!

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  5. Meu Caro Amigo Sarmento, Muito boa tarde. Sentimo-nos muito honrados, eu e minha família, em tê-lo como Amigo. Honra igual foi o privilégio de ter conhecido o seu pai em dezembro de 1998, numa noite memorável, um senhor de muita vitalidade e alegria. Ler mais uma crônica sua, onde há referência a este ser maravilhoso, torna a leitura mais deliciosa, muito agradecido e parabéns. Não posso deixar de registrar mais uma de suas tiradas espirituosas, desta feita: Enfim, há que se dar nova forma à vida, pois sem encontrar um novo jeito pode-se acabar virando rejeito. (grifo meu) Eu serei reformado no próximo dia 21 de novembro e, esse termo veio bem a calhar pois como você e seu querido pai, eu não penso em aposentar, ainda mais, agora, depois de conhecer alguns dos significados dessa palavra. Feliz fim de domingo, afinal, aí já anoiteceu, certo? Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno Guilherme e demais familiares.

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    1. Querido amigo JH,
      Que maravilha: reformado daqui a poucos dias! Uma nova etapa de vida, merecida após tantos anos de dedicação e esforço. Espero que o amigo se delicie com a nova vida. Estou certo de que encontrará o jeito e, de forma alguma, virará rejeito.
      É muita conexão entre nós: eu não sabia do acontecimento do dia 21, mas o tema da crônica não poderia ser mais oportuno para você. Que venha um período de muita felicidade e paz, meu amigo!
      Agradeço suas gentis palavras a respeito do meu pai.
      Um afetuoso abraço e lembranças à sua querida família!

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  6. Um exemplo de vida com ou sem aposentos e reforma mas certamente com muita forma pois chegar aos 103 anos é para muito poucos só com muita forma mesmo.
    Parabéns pelo texto e vejo que os progressos intelectuais estão a pleno vapor.
    Um homem em que a reforma deixou morrer um engenheiro e fez renascer um literata poliglota.
    Certamente uma evolução tanto individual como coletiva e um orgulho para a família.
    Abraços.

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    1. Caro Rômulo,
      Difícil dizer o quanto o seu comentário me agradou. Acho até que você cometeu certo excesso de gentileza… se é que isso existe…
      Obrigado pelas palavras e pelo incentivo, querido primo!
      Desejo uma excelente semana!

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  7. Querido amigo,
    Eu me considero reformado, embora seja aposentado pelo INSS. É muito bom se reinventar. É a vida!!!!
    O médico estava certíssimo quanto a natação diária do seu pai. Viveu 103 anos, que é uma dádiva para o mundo de hoje.
    Trabalhei em uma empresa francesa e constante nas reuniões internacionais o inglês era o idioma oficial, mas eu gostava de conversar com os portugueses, pois achava muito interessante a nossa língua mãe.
    Uma abençoada semana para você, Sônia e família.
    Abraços .

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    1. Amigo Newton,
      O INSS pode te chamar como quiser, mas ser reformado é uma decisão pessoal. E fico contente que você assim se sinta.
      Obrigado pelo comentário, meu amigo!
      Desejo a você e Nuri uma maravilhosa semana.
      Fiquem com Deus!

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  8. Querido Irmão!
    Saudades de você e das suas crônicas. Também sinto- me “reformada” e não “aposentada”, me falta tempo para realizar todas as minhas intenções mas gradativamente realizo e programo a seguinte. Espero ter a saúde e vitalidade de papai para desfrutar ainda por muitos anos.
    Beijo enorme.

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  9. É, meu amigo. Você me fez pensar sobre o assunto. Eu, efetivamente, estou aposentado, curtindo o ócio com dignidade. Lendo (ou relendo), assistindo (ou reprisando) bons filmes, ouvindo as minhas músicas preferidas e conhecendo novas músicas (tá difícil) e, principalmente, cuidando da manutenção das amizades adquiridas na caminhada da vida.
    Talvez mereça uma reforma, não radical, é claro, e comece uma atividade externa, com algum esforço físico.

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    1. Caro amigo Galvão,
      Fico contente que a leitura da crônica o tenha levado a pensar. É o meu lema: “histórias leves para divertir e fazer pensar.”
      Certamente suas reflexões te levarão a desfrutar de um dia-a-dia ainda melhor nesta sua fase da vida: é o que desejo!!
      Um grande e fraterno abraço!

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  10. Em relação aos livros, sempre procuro a língua em que o autor escreveu originalmente, preservando as escolhas que ele fez ao escrever. Recorro às traduções apenas quando não sou capaz de ler no original.

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