A ORQUESTRA

Fui assistir a uma apresentação de orquestras sinfônicas num local chamado Casa da Música, aqui na cidade do Porto. Uma bela instalação, com arquitetura arrojada, muito conforto e excelente acústica. O nome do local me fascinou: a música tem uma casa aqui. Moramos na mesma cidade, o que me parece espetacular. A música deveria ter uma casa em todos os lugares. Assim, todo mundo poderia ter a alma acariciada por ela.

Não vou entrar no mérito das peças apresentadas, até porque me faltam qualidades técnicas para fazer uma apreciação. Fico apenas com algumas observações de cronista, atento naturalmente a detalhes que por vezes passam sem ser notados ou valorizados.

Pude perceber alguns aspectos na apresentação, que passo a compartilhar com o leitor.

A orquestra entra em fila, rigorosamente alinhada. São homens e mulheres, todos de roupas pretas com uma camisa branca por dentro. Caminham no ritmo certo: nem tão depressa que revele ansiedade e nem tão devagar que pareça desânimo. Contei cerca de cinquenta músicos.

A plateia faz a natural saudação, com palmas contidas, pois o espetáculo ainda não ocorreu. É apenas um modo de dar boas-vindas, pois ninguém merece aplauso pelo que ainda não fez.

Aos poucos se posicionaram de pé diante de seus assentos enquanto a aclamação escasseava, até cessar. Alguns segundos mais e o silêncio é quebrado pela entrada do solista, um jovem de vinte e poucos anos. O mesmo traje, o mesmo caminhar, violino nas mãos e o brilho de ser o foco das atenções. Certamente ali estava um talento diferenciado. O público saúda o virtuoso com palmas, enquanto ele se posta de pé em seu lugar, ao centro da primeira linha de músicos.

Novamente os aplausos se encerram. Toda a orquestra de pé e imóvel, todo o público quieto. Parece um minuto de silêncio. O ambiente respira um misto de expectativa e respeito.

Entra então a estrela maior — o maestro. Ele ingressa por uma porta exclusiva e, sem olhar para os lados, caminha firme para a sua posição à frente e ao centro de todos. Os aplausos agora são mais ruidosos, diferenciados, homenageando a liderança. Ele agradece com uma breve reverência e vira-se aos músicos sinalizando que agora podem se sentar e preparar-se para o concerto.

O solista então emite algumas notas e muitos instrumentos respondem. Uma breve algazarra musical. No futebol seria um aquecimento, aqui uma afinação. A um sinal do regente o treino é encerrado e a obra passa a ser executada para deleite da plateia, que embevecida, ouve, vê, sente e vive a música, que ocupa todos os espaços, todos os corações e todas as almas.

Termina a peça e eclodem vigorosas palmas.

O maestro mantém-se voltado para sua equipe e os músicos permanecem sentados. Gradativamente, o regente sinaliza quem deve se levantar e agradecer. Não sei se há um critério de mérito nesta ordem, mas ele vai indicando um ou mais músicos para receberem a aclamação: estes sorriem, se levantam e curvam-se em sinal de agradecimento. Até que o maestro generosamente sinaliza com os dois braços para cima, todos se levantam e a ovação cresce.

Só então vem a apoteose — ele vira para o público e agradece. É quando explodem os aplausos mais altos e intensos.

Após um breve tempo, saciado muito antes do que eu estaria, o regente se retira enquanto ainda chovem palmas. Com sua saída, noto surpreso que os músicos voltam a sentar-se. Fico na expectativa. Segue-se que o solista e apenas ele, levanta-se e sai lentamente. Em seguida, a orquestra, na ordem inversa da entrada e no mesmo passo, começa a sair. A plateia permanece aplaudindo pela execução da música e, ao menos eu, também pela beleza estética do conjunto, seus rituais e sua organização.

Sim, vejo beleza em toda aquela disciplina.

Outras orquestras se apresentam na sequência e características semelhantes também estão presentes. Fico a pensar que sem uma estrutura tão organizada não seria possível executar com perfeição uma obra musical complexa e encantadora.

Deixo a Casa da Música refletindo sobre o comportamento que observei dos músicos. Percebi que aquela era apenas a face visível de uma disciplina exigente e rigorosa vivida no dia a dia por aquelas pessoas. Há quem pense que a disciplina é algo ultrapassado, como se fosse desnecessária, descabida ou até indesejável. São os que veem antagonismo entre disciplina e liberdade.

Fiquei curioso e fui buscar nos dicionários: pois bem, em pouco tempo encontrei, em um deles, disciplina e liberdade como antônimos.

A orquestra me deixou ruminando sobre isto. Imagino quantas horas de ensaios cada músico e depois o conjunto deles precisou para chegar ao ponto necessário à uma apresentação numa sala de concertos. Sem dúvida, foi preciso muito esforço, esmero na pontualidade, superação de preguiças, comodismos e vícios, enfim, a necessária renúncia a vontades supérfluas.

No fundo acho que nada se consegue sem disciplina. O filósofo Mario Sérgio Cortella diz que a disciplina é a organização da liberdade. Sim, pois fazer o que se tem vontade ou ceder aos desejos imediatos não é liberdade e sim desregramento e estagnação. De certa forma, a disciplina é uma forma de nos libertarmos de nós mesmos, destas vontades que nos assolam sem trégua.

Claro, é preciso diferenciar: uma coisa é a vontade, outra é um querer, um propósito maior, um sonho.

A vontade a que me refiro é aquela comezinha, cotidiana, que vive nos perseguindo, revezando-se uma após a outra, numa sucessão infinita. Atender às próprias vontades é evitar dizer não a si mesmo: tenho vontade de comer um doce, depois beber alguma coisa, mais um pouco e preciso de um cochilo, depois vou dar um passeio, então um café, em seguida quem sabe um programa na televisão ou uma passada nas redes sociais. Ora, deixar essas vontades agirem é como navegar em círculos.

É certo que há necessidades que precisam ser atendidas, mas em geral saciar tais vontades traz apenas um pouco de prazer, sempre efêmero e superficial. Ficar ao sabor das vontades, entregar-se a elas, é um bom caminho para nos afastar de tudo que realmente pode fazer diferença na nossa vida. Quantos talentos são sepultados pelo coveiro das vontades fúteis e inúteis…

O querer é diferente, este sim, profundo e amplo. É a busca do importante, do essencial, dos grandes objetivos de vida. Aquelas pessoas que formavam a orquestra só estavam ali, brilhando, produzindo fina arte e desfrutando da glória da aclamação, porque renunciaram a muitas dessas vontades para alcançar o que queriam. Aqueles músicos, ao receberem os aplausos, ao sentirem que a peça foi bem executada, que participaram de uma criação única, experimentaram um sentimento próximo daquilo que se pode chamar de felicidade.

Penso que seja assim para quase tudo na vida. A vontade atendida traz satisfação, o sonho alcançado traz realização.

Ocorreu-me então que as matérias que estudamos, da escola à universidade, são chamadas “disciplinas”. Não é por acaso. Em ambos os sentidos da palavra, é a disciplina que nos faz crescer, que nos conduz a patamares gratificantes, que nos enriquece e pode trazer sentido à nossa existência, que nos permite experimentar sensações que fazem a vida valer a pena.

Deixar a vontade nos guiar não nos faz livres. Talvez seja apenas sinal de pouca maturidade. Quando ouço a expressão “força de vontade” procuro interpretar como força de querer, pois para atender a vontade não é preciso força. A vontade é ladeira abaixo, o querer é ladeira acima. E é no alto que está a recompensa de sentir orgulho de si mesmo.

Aprendi com a visita à casa da música que só realizam seus sonhos os que lutam contra a própria inércia e resistem às vontades e distrações. Enfim, aqueles que aceitam pagar o preço da disciplina.

Concluo com uma frase do escritor Augusto Cury:

Sonhos sem disciplina produzem apenas pessoas frustradas.

Antonio Carlos Sarmento

22 comentários em “A ORQUESTRA”

  1. Querido amigo.
    Essa crônica foi das melhores que escreveu.
    Fica muito difícil tecer qualquer comentário sobre o tema pois a sua abordagem foi perfeita em todos os sentidos.
    Perfeita na descrição do belo espetáculo que presenciou assim como nos comentários acerca de disciplina,liberdade e vontade…
    Achei tudo perfeito. É difícil entender como alguém escreve que disciplina é antônimo de liberdade.
    Vivi isso intensamente como militar e professor.
    Mesmo exercendo a de militar e sob a égide de regulamentos que podem até serem questionados nunca me senti com minha liberdade cercada.
    Belíssima crônica e parabéns.
    Grande abraço nessa linda família ❤️😘

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    1. Meu querido amigo Nei,
      Fico muito feliz que tenha apreciado a crônica.
      Sem dúvida que você, nas vivências de militar e de professor, teve que lidar bem de perto com a questão da disciplina. Sendo assim, sua opinião ganha ainda mais relevância.
      Obrigado pelo seu generoso comentário, querido amigo.
      Desejo uma excelente semana à você, Jaciara e toda a sua amada família!
      Grande abraço!

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  2. Prezado amigo
    A música perpassa a vida, atribuindo a cada gesto, a cada fala, a cada sentimento ou sonho um valor especial. Basta ter olhos atentos e ouvidos apurados para poder ouvi-la.
    Como é bom assistir a um espetáculo musical!
    Sua crônica é fruto de uma observação profunda sobre o comportamento das orquestras, raramente percebido. ¹⁰Isso permite uma análise sobre o espetáculo e a obra musical.
    A beleza está nos olhos de quem vê.
    O universo é música, disse Rubem Alves, concordo com ele.
    Também Fernando Pessoa diz que se ouvirmos a música do universo, isso nos dá grande alegria: não estamos sós.
    Parabéns, suas crônicas continuam lindas!
    Um abraço saudoso a toda a família, desta velha amiga ou…amiga velha.

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    1. Querida amiga Helena,
      Olhos atentos e ouvidos apurados não lhe faltam. E as citações dos dois poetas tornam seu comentário ainda mais rico.
      Muito obrigado por suas palavras, sempre gentis e amorosas.
      Um carinhoso abraço para esta velha amiga, cheia de vida e energia positiva!
      Sonia manda saudosos beijos!

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  3. Querido Antonio Carlos, a abordagem, o tema, a forma de apresentar a disciplina e a conclusão foram perfeitas. Adoramos e compartilhamos abundantemente.
    Receba o nosso forte e saudoso abraço.
    Armando e Valeria

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  4. Querido amigo Antonio Carlos,

    Crônica perfeita e sem comentários. Acrescento que concordo com as definições de disciplina, vontade, querer, etc……
    Deus continue abençoando a sua capacidade de escrever de forma tão clara e inteligente.
    Abraços e excelente semana!

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    1. Olá Dulce,
      Agradeço muito o seu comentário e fico feliz que tenha gostado da crônica.
      Acompanho o seu belo trabalho, que, com certeza, exige disciplina, não é? Claro, nada se constrói sem ela…
      Desejo uma excelente semana à você e sua família!

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  5. Amigo querido , somente hoje pude ler e fiquei maravilhada: sua percepção e sensibilidade me tocaram profundamente. Beijos em todos vocês

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  6. Caro Amigo Sarmento, muito boa tarde. Mais uma maravilhosa crônica, leve mas, sobretudo, impregnada de um conceito, há muito desprezado, ou talvez, esquecido – a Disciplina. É verdade, muitos confundem a liberdade como oposto à disciplina, nada mais falso. Em todos os nossos movimentos, por incrível que possa parecer, necessitamos da disciplina eis que ela decorre do Respeito que devemos ter a tudo e a todos, sobretudo, a nós mesmos, aos nossos anseios, a nossa própria vida, enfim. Muitíssimo agradecido pelo belo trabalho. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Querido amigo JH,
      Só posso agradecer muito seu comentário e dizer que fico feliz por ter apreciado a crônica. Admiro a sua “disciplina” de sempre ler e comentar os meus escritos.
      Desculpe a demora em responder, meu amigo.
      Um afetuoso abraço à você, Sueli, Luizinho, Júnior e uma carinhosa beijoca na Catarina!

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  7. Sempre gostei desse trecho da música do Renato Russo: “disciplina é liberdade, compaixão é fortaleza”…

    Destaque para os seguintes trechos (que adorei):

    “pois ninguém merece aplauso pelo que ainda não fez.”

    “vejo beleza em toda aquela disciplina.”

    “Quando ouço a expressão “força de vontade” procuro interpretar como força de querer, pois para atender a vontade não é preciso força. A vontade é ladeira abaixo, o querer é ladeira acima.” kkkkkk…

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    1. Fefe,
      Que bom ter gostado. É um assunto um tanto espinhoso, especialmente para os jovens, como você.
      Gostei muito de você ter citado trechos que apreciou – isto vale muito para quem escreve.
      Mantenha a disciplina e siga em frente em direção aos seus sonhos.
      Beijos e duas beijocas especiais no Tom e Mariana.

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  8. Querido primo,
    Até falar de música já é prazeroso.
    Penso que, para mexer com nossa emoção e nossa admiração , não basta ser profissional , tem que ter alma de artista. Este sim: tem disciplina, se sacrifica, é perfeccionista. E sua obra transcende.
    Ótimo exemplo para falar da força do querer.
    Enquanto a vontade nos escraviza aos nossos mimos, o querer nos exige força e superação – e, muitas vezes, o resultado beneficia o coletivo: nosso querido escritor se encantou com o espetáculo e
    a platéia aplaudiu deslumbrada.
    Então, eu diria que a força do querer é altruísta, enquanto a força da vontade é egoísta.
    Palmas e gratidão aos artistas do Clube da Música!
    Beijo no cronista e sua querida família

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    1. Querida prima,
      Um primor de comentário! Ou melhor, outro comentário primoroso, como é do seu estilo.
      Peço desculpas pela demora em responder. Não sei se faltou disciplina, se a vontade prevaleceu sobre o querer ou se um imprevisto que surgiu poderia justificar o atraso. Mas saiba que a satisfação em receber suas opiniões é sempre muito grande.
      Receba o meu agradecimento e carinho.
      Beijos!

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  9. Caro amigo!
    Crônica para guardar nas “Para relembrar e empregar”
    Concordo plenamente com seu entendimento que nada se consegue sem disciplina. Acrescento também a determinação.
    Pessoas que agem com disciplina e determinação conseguem alcançar seus objetivos com maior facilidade e sentem assim satisfação pelas suas realizações obtidas com seu esforço pessoal.
    Forte abraço
    Rodolpho Britto

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  10. Ótima crônica, me senti como se estivesse no concerto com a sua precisa e minuciosa descrição. O gancho que você pegou da disciplina dos músicos foi interessante. Parabéns!

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