ALMOÇO INÚTIL

Eu estava na mesa do restaurante e aguardava minha mulher que vinha de outro compromisso. A monotonia de quem espera. Aliás, acho que este verbo corre o risco de ser abolido do vocabulário. Na realidade acho que ninguém mais espera. O celular não deixa.

Qualquer intervalo entre ocupações é logo preenchido pela telinha, até mesmo com banalidades ou coisas desinteressantes, mas inexoravelmente é para lá que vão os olhos de quem precisa aguardar. Já percebi que, até mesmo no curto espaço de tempo necessário para chegar um elevador, o celular é sacado do bolso ou da bolsa. Sinal de trânsito vermelho hoje em dia é luz verde para uma conferida na telinha. Até os atletas fazendo exercícios na academia dão aquela espiadinha durante as breves pausas.

Não queremos mais esperar sem fazer nada. É incrível, mas o celular virou uma extensão do nosso corpo e, entre outras coisas, preenche todos os vazios de tempo. Acabou o esperar!

Fico pensando que, com isso, a nossa mente não tem mais um segundo de descanso enquanto estamos acordados. Mas este é outro assunto. Voltemos ao restaurante.

Em certo momento, ainda antes da chegada da minha companhia, percebi uma pessoa aproximar-se. Era um senhor de cabelos brancos bem penteados, trajando um terno azul marinho e sapatos pretos brilhantes. Devido à proximidade com um centro empresarial, era comum naquele restaurante o chamado almoço de negócios.

— Dr. Ivan!!!!! — exclamou o senhor, abrindo os braços para mim e exibindo um sorriso mais brilhante que os seus sapatos.

Foi tão caloroso e amável que lamentei não ser o Dr. Ivan…

Olhei para ele, provavelmente expressando surpresa e, claro, não correspondi à tamanha efusividade, pois afinal, eu não era o Dr. Ivan.

Ele percebeu de imediato, mudou a expressão e murmurou em voz baixa, para si mesmo:

— Não é o Dr. Ivan…

No mesmo segundo desviou o olhar e, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, virou-se para vasculhar as mesas próximas em busca do seu alvo. Quanta frieza. Todo aquele calor da saudação transmutou-se instantaneamente em indiferença, com pinceladas de desprezo.

Era um ator que iniciou sua interpretação, mas logo percebeu que estava no palco errado e retirou-se. Acabou por encontrar a pessoa certa em uma mesa um pouco mais distante e provavelmente lá desenvolveu a sua performance.

Deixou-me a certeza de que não procurava alguém e sim algo. Buscava um interesse vestido num terno  e chamado Dr. Ivan. Estava atrás de benefícios, não de relacionamento humano. Foi por isso que me tratou, não como uma pessoa, mas como uma coisa que procurava e não achou. Claro que ele poderia ter sido gentil comigo, mas imagino que considerou isso inútil.

Ele não sabia que só coisas podem ser vistas como utilidades, pessoas não…

Com o episódio concluído voltei ao inevitável celular em busca de alguma mensagem daquela que eu aguardava com expectativa. Encontrei um aviso de que precisaria de mais uns dez minutos.

Deixei a telinha e voltei ao mundo real.

Bem próximo havia uma mesa com outro almoço de negócios. Eram três jovens e uma quarta pessoa de mais idade, que falava de modo contínuo e interminável. Em pouco tempo, mesmo sem conseguir ouvir direito o que dizia, fiquei entediado com tanta falação. Os jovens me pareceram igualmente fartos da verborragia, mas permaneciam firmes, balançando cabeças, sorrindo amarelo, engolindo em seco e concordando em silêncio. Imaginei que o falastrão seria alguém com quem pretendiam assinar um contrato.

Logo me desinteressei daquelas mesas de negociações e foquei em duas senhoras que acabavam de chegar. Arrumadas caprichosamente, trocavam sorrisos espontâneos e dialogavam com o garçom. Eu estava tão próximo que pude acompanhar. Bisbilhotar conversas alheias é uma opção para o solitário.

— As senhoras querem pedir algo para beber? Cerveja, vinho, um drink…

— Eu queria tomar um vinho — disse uma delas.

Ah, meu Deus, finalmente uma conversa interessante.

— Ótimo. Eu te acompanho — completou a outra sem vacilar.

— Tinto ou branco? — perguntou o garçom.

— Branco, bem geladinho. Como é mesmo o nome da uva que você mais gosta? — perguntou uma amiga à outra.

— Sauvignon Blanc.

— Nós temos um muito bom. Posso trazer? — adiantou-se o garçom.

— Claro! — respondeu a primeira.

— Ótimo — concordou a segunda.

Achei curioso. Não escolheram pela carta. Estavam tão animadas em almoçar juntas e compartilhar uma garrafa de vinho que não queriam perder tempo em escolhas demoradas, detalhadas e, às vezes, infelizes. De certa forma, a carta de vinhos parece com filmes de streaming: a gente demora muito tempo para escolher e muitas vezes se arrepende…

O garçom logo voltou com a garrafa e um balde de gelo. Um presente no verão do Rio de Janeiro que ferve a 40 graus. Exibiu o rótulo, sacou a rolha com elegância e ofereceu a prova. As amigas se envolveram numa disputa, cada uma querendo que a outra tivesse o privilégio. No fim, uma delas realizou a degustação, aprovou a bebida e foram fartamente servidas. Brindaram alegremente tilintando as taças suadas.

Agora sim, estava havendo um almoço, sem negócios, sem utilitarismo. Um encontro de pessoas, uma fazendo companhia à outra, reunidas unicamente para desfrutar da convivência e do prazer de uma refeição. Uma verdadeira relação humana. Um almoço inútil.

Pensei no pobre Dr. Ivan…

Neste momento minha mulher chegou e demos início ao segundo almoço do restaurante. Mudei o foco e os pensamentos, mas antes me lembrei de uma palestra que assisti há muitos anos, na qual a plateia era convidada a repetir dezenas de vezes a seguinte frase:

As pessoas são mais importantes do que as coisas.

Como nos enganamos com esta verdade tão óbvia. Não é incomum que andemos por aí concentrados na busca de coisas, colocando-as em prioridade máxima e acabando por negligenciar as pessoas, ou até pior, tratando-as apenas como meio para alcançar um fim. A triste inversão de amar as coisas e usar as pessoas.

Termino com uma passagem do escritor Machado de Assis, em seu livro Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.

Antonio Carlos Sarmento

24 comentários em “ALMOÇO INÚTIL”

  1. Bom dia Cacau.
    Transformou água em vinho, e vinho dos bons, como aquele escolhido na crônica.
    O importante foi a metamorfose de um momento de espera em um belo presente para nós leitores.
    Que a sua inspiração continue abençoada nos proporcionando momentos alegres e prazerosos de leitura.
    Um abraço pra vc e família.

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    1. Caro primo Rômulo,
      Como você bem percebeu, momentos simples do cotidiano podem nos trazer observações e lições.
      É este olhar que ficou um pouco mais aguçado desde comecei a escrever.
      Obrigado por suas generosas palavras, Rômulo!
      Desejo uma ótima semana à vocês!

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  2. Muito boa!
    As pessoas são mais importantes do que as coisas. Precisamos ter essa frase fixada em nossas mentes.
    Mais uma vez uma leitura deliciosa que nos faz crescer como ser humano.

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  3. O valor de um almoço sem se preocupar com o que vai comer, mas sim com quem você está.
    Lembro que na época de almoços de negócios, estive em restaurantes ótimos, com escolhas de vinhos e pratos, e que muitas vezes não foi nada agradável após o desfecho da conversa “almoço azedo”.
    E lembro de sanduíches no Cervantes com amigos de verdade, em que foram coisas céu.
    Isso confirma a importância das pessoas, o cardápio pouco importa.
    Excelente crônica.
    Parabéns Cacau!

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    1. Chico,
      Sei que é uma prática universal, mas talvez fosse melhor se nem existisse os tais almoços de negócios…
      Um sanduíche do Cervantes nos bons tempos é memorável!
      Felizmente todos os nossos almoços até hoje foram absolutamente “inúteis”.
      Obrigado por comentar.
      Desejo uma ótima semana e não esqueça do nosso compromisso esta semana…
      Beijos

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  4. Boa tarde de domingo amigo Sarmento! Estamos, Rose e eu indo a um almoço com 2 casais muito queridos onde as senhoras, jovens ainda, fazem aniversário. Ri e coko de habito adorei sua crônica, ficando triste apenas em só poder compartilha-la poucas vezes, devido seus novos projetos. Mas, que Deus o abençoe em todos os projetos de sua vida.

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    1. Caro Luigi,
      Com muita alegria recebo seu comentário!
      Espero que seu almoço tenha sido bem “inútil” na companhia da Rose e de seus amigos.
      Obrigado por compartilhar as crônicas, agora em ritmo mensal…
      Desejo ao migo e sua família uma abençoada semana!
      Abração, amigo!

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  5. Uma crónica, como sempre bem escrita, que alerta para aspectos importantes: o dar tempo e verdadeira atenção aos outros e, ainda, como é importante o dar tempo a nós próprios, ao olhar e ao pensar…… sem a interferência de écrans!

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    1. Dulce,
      Fico contente que tenha gostado. Realmente depende de nós deixar um pouco os écrans e usar mais o nosso tempo e atenção ao que tem real valor.
      Agradeço muito por comentar e desejo uma ótima semana!
      Abraços!

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  6. Querido Amigo Sarmento, muito boa tarde. Saudades de você e de sua família. Mais uma crônica muito com vários conceitos muito importantes, sobretudo o de que pessoas não são coisas. Como sempre, sua sagacidade se fez presente, com essa tirada sensacional: “Sinal de trânsito vermelho hoje em dia é luz verde para uma conferida na telinha”. Como sabes fico “catando” essas suas “tiradas”, sempre maravilhosas. Caro Amigo, recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno (já crescido) Guilherme e demais familiares. Forte abraço.

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    1. Caro amigo JH,
      Você fica garimpando as “tiradas” que aprecia e isso é muito interessante. Fico contente de verdade que você goste dos meus escritos, meu querido amigo.
      Obrigado por mais este comentário. Agora já não te dou tanto trabalho, afinal é uma crônica por mês…
      Valeu, JH!
      Uma maravilhosa semana à você, Sueli, Luizinho, Júnior e a rainha Catarina!

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  7. Que cara de pau… 🤭 vergonha alheia por essa atitude do conhecido do dr. Ivan.
    Sobre o celular, é assim mesmo. Parece que se estamos parados só esperando, estamos desperdiçando tempo.

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    1. Fefe,
      Concordo. O celular é mesmo muito atraente e seu uso é praticamente imprescindível. Só precisamos dosar a intensidade de uso e deixar espaço para outras dimensões mais importantes, não é?
      Obrigado por comentar!
      Beijos e uma ótima semana para vocês! Manda uma beijoca caprichada para o Tom e Mariana!
      Fiquem com deus!

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  8. Sarmento, caro amigo, estava sentindo falta das crônicas. Bom retorno às palavras, com as quais brincas tão bem. Observar as pessoas é verdadeiramente bem melhor que as telas. Abraço.

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  9. Achei uma excelente crônica e super concordo na desvalorização do contato humano que lentamente é trocado pelas telinhas e acredito que algumas pessoas trocam o afeto por minutos no celular e parabenizo pela bela atitude de provar que nem toda reunião em lugares como esse devem ser sérias e sim descontraídas.
    Ótima crônica!!

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