MONTAGEM

Não recuso convite do meu neto para brincar. Claro, ele tem agora cinco anos e não sei até quando vai desejar minha companhia em suas diversões. É possível que não seja por muito tempo.

Ali pelos doze ou quatorze anos, imagino, os convites poderão rarear e minha carreira de companheiro de brincadeiras talvez seja mais curta do que eu gostaria. Então trato de aproveitá-la ao máximo.

— Vamos brincar de montagem? — sugere ele.

Deixo logo o que estou fazendo e me sento ao seu lado no chão — o que é quase um contorcionismo para alguém cuja coluna tem 70 anos. Mas Guilherme quer estar em igualdade de condições, como convém aos bons companheiros. Até já tentei, em outra ocasião, usar numa pequena cadeira de assento bem baixo, mas ele não se conformou. Brincadeira tem que ser entre iguais.

Ele então derrama uma caixa com blocos e peças que, encaixados da forma certa, acabam por transformar-se em um caminhão. Claro que minha participação na construção é pífia, limitando-se a vê-lo fazer os encaixes, sem interferir. Os dedinhos se movem com rapidez e vão edificando a obra.

Em certo ponto, algum encaixe errado acaba por levá-lo a um impasse:

— Hummm. Não deu certo — exclama, revelando certa irritação.

— Vamos tentar outra vez  — digo.

Ele desmonta tudo e recomeça a tarefa. Mas segue exatamente a mesma sequência, esbarra na dificuldade e repete-se a frustração. Guilherme agora fica irritado. Procuro então ajudar:

— Vamos de novo.

— De novo! — reclama.

— Sim. Não é outra vez, é de novo. Agora vamos fazer de uma forma nova, ok? Tem alguma peça fora do lugar, então não adianta fazer do mesmo jeito.

O pequeno entende que houve um erro e recomeça a tarefa, agora mais atento e pensando bem antes de colocar cada peça. Está disposto a mudar. Vai encaixando os blocos com cuidado, sempre avaliando se faz sentido e seguindo passo a passo. Em pouco tempo chega na tal peça que provocava o desarranjo. Pega ela, olha bem, experimenta no local e então descarta:

— Essa não é aqui.

— Ótimo, Guilherme. Você descobriu onde estava o erro. Isto era o mais difícil. Agora é corrigir.

Rapidamente ele encontra a peça correta  e o trabalho segue fluido. Logo temos o caminhão pronto. Ele se alegra, admira a obra e, animado, começa a desmontar para em seguida refazer o caminhão.

Agora sim, vai fazer outra vez.

Continuamos a brincadeira por mais um tempo, até a hora do jantar. Depois ele foi dormir e me deixou pensando sobre este episódio tão corriqueiro. Os 65 anos que nos separam em nada impedem que eu aprenda muito com meu neto.

No caso da nossa brincadeira, fazer outra vez e fazer de novo não tiveram o mesmo significado. Aos 5 anos, Guilherme entendeu que quando a gente erra, não adianta fazer outra vez, da mesma forma. É perda de tempo e só produz frustração.

Ah, mas quantas vezes fazemos isso pela vida afora. Repetimos comportamentos inadequados, insistimos em roteiros que não produzem resultados, seguimos padrões de pensamento e ação que nunca nos ajudaram e, no fim, ficamos surpresos com os fracassos.

Parece ser uma falha da nossa racionalidade. Em muitas ocasiões, somos cegos aos erros que cometemos e, sem vê-los, prosseguimos às bengaladas pelo mesmo caminho, que inexoravelmente nos leva à um beco sem saída.

O episódio me fez lembrar que, certa vez, em uma empresa na qual trabalhava, fui encarregado de selecionar um profissional para ocupar uma função importante. Entrevistei várias pessoas e, ao final, fiquei entre um rapaz com bom perfil, mas excessivamente jovem, ainda precisando de mais maturidade e um outro profissional com mais vivência, já na faixa de uns 45 anos.

Quanto a este último, de nome Marcelo, restou-me uma preocupação por ele haver sido demitido de seu último emprego. Fui explícito em perguntar-lhe o motivo e Marcelo respondeu sem pestanejar:

— Foi uma questão pessoal com o dono da empresa, que nunca gostou de mim. Arranjou um pretexto e me demitiu.

Marcelo tinha muitos pontos positivos e fiquei a refletir sobre sua resposta. Muitos em seu lugar teriam dito que fizeram um acordo para serem demitidos, pois estavam insatisfeitos na empresa, ou alegariam que a empresa não ia bem e precisava cortar custos. Assim, concluí que a razão apontada por Marcelo parecia ser uma resposta honesta. Era verossímil. Uma falta de afinidade ou uma antipatia sem razão poderia levar àquele final indesejado.

Fiz a opção pelo Marcelo e assumi uma expectativa positiva em relação ao seu trabalho.

Mas tive uma grande surpresa. Cerca de dois meses depois, quando eu acabava de chegar em casa, recebi uma ligação de um diretor da empresa, relatando que foi tratar um assunto com o Marcelo e a conversa foi muito ruim. Estava muito irritado. Contou alguns detalhes e disse que, ao final, não teve alternativa senão colocá-lo para fora da sala. Obviamente não restou outra possibilidade que não fosse dispensá-lo imediatamente.

Para mim foi como um filme que eu já tivesse visto.

No dia seguinte, chamei o Marcelo e entreguei-lhe a carta de demissão. Por incrível que pareça, ele explicou:

— Este diretor não gostou de mim desde o primeiro dia.

Eu já tinha visto o filme, Marcelo não…

Se aos 45 anos, ele já tivesse um neto e brincasse de montagem, saberia que reconhecer um erro é passo essencial para fazer mudanças e encontrar novos caminhos. Enganei-me ao escolher: Marcelo tinha idade, mas não maturidade.

Teve a oportunidade de fazer de novo, mas acabou por fazer outra vez…

Desde que isto ocorreu tornei-me mais atento aos meus próprios comportamentos repetitivos, mesmo aqueles adotados de modo inconsciente, mas que acabam por resultar em insucesso. Fazer este tipo de reflexão, voltando como um caranguejo sobre nossos próprios passos e atitudes, podem nos ajudar muito mais do que o caminho fácil de buscar culpa nos outros ou em fatores fora do controle. Pode ser uma forma de recolher sabedoria nas experiências e, aí sim, amadurecer de verdade.

Pouco tempo depois, encontrei uma frase do escritor Deepak Chopra, que resumiu o ensinamento:

Sempre que se sentir tentado a reagir da mesma maneira, pergunte a si próprio se quer ser um prisioneiro do passado ou um pioneiro do futuro.

 

Antonio Carlos Sarmento

25 comentários em “MONTAGEM”

  1. É ótimo ocupar parte do que ainda é noite de um insone com um texto tão maravilhosamente escrito e cheio de sensibilidade e sabedoria.

    Os seres humanos são extremamente previsíveis e a mudança nos causa pânico pois perdemos parte de nós tão durante construídas.

    Com a idade vem a maturidade dos hábitos e reflexões sobre o passado e a resposta nem sempre são as desejadas por outrem, e sim, na maioria das vezes, uma solidificação de nossas convicções.

    Ser flexível e trocar hábitos dói muito.

    Parabéns por mais esse belo trabalho.

    Aproveite bastante o domingo construindo um legado de memórias com seu neto e quem sabe, um dia será recompensado com alguns belos textos sobre essa relação.

    Bom dia.

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    1. Caro Rômulo,
      O fato de estar insone fez com que inaugurasse os comentários da crônica deste domingo. Confesso que fiquei surpreso com o horário (aqui estamos 4 horas na frente).
      Obrigado por suas observações, sempre cheias de conteúdo e vivências.
      Realmente ser flexível pode doer e nossa tendência é evitar a dor. Não tinha pensado nisso…
      Quanto a deixar um legado de memórias, confesso que trabalhar nisso tem me dado grande prazer. E com o incentivo de leitores como você, este prazer aumenta ainda mais!
      Desejo uma maravilhosa semana e agradeço suas gentis palavras!!

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  2. Parabéns Cacau. Muito boa a reflexão. Precisamos lembrar a todo momento que, nas mãos de Deus, somos os escritores de nossas vidas e desse modo poderemos reescrevê-la sempre com olhares diferentes, conforme o nosso momento de vida. Nessas mudanças com novas perspectivas é que acaba surgindo o verdadeiro aprendizado. Abraços saudosos. Guimo.

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    1. Querido amigo Guimo!
      Com grande prazer recebo seu comentário. Reconheço em você esta busca do verdadeiro aprendizado. É isso que nos mantém ativos, vivos e enriquecidos. Como diz uma frase que gosto muito, a gente envelhece quando para de aprender…
      Um afetuoso abraço, meu amigo.
      Tenha uma maravilhosa semana!!!
      Saudades…

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    1. Fefe,
      Isso mesmo. Às vezes a lição é dada, mas a gente não aprende. Ou não consegue aplicar, pois pode implicar em fazermos mudanças, algo difícil. Mas certamente é o caminho para adquirir maturidade.
      Obrigado por comentar!
      Beijos e uma maravilhosa semana. Curta muito a viagem com seus queridos!
      Beijos pro Tom e Mariana!

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  3. Meu caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Que alegrias, mais uma vez, ter a oportunidade de ler um texto de sua lavra que me remete aos estudos que venho realizando nos últimos 18 anos. “O erro é o começo do acerto, na medida em que busquemos aprender com ele”. Você foi magistral durante a sua “brincadeira” com o pequeno Guilherme, ensinou-o com “algo” que ele jamais esquecerá; fazer de novo é diferente de fazer “outra vez”, ou seja, na minha compreensão: “fazer de novo é a oportunidade de aprender com o erro”. E, com certeza, a repetição dos erros que cometemos, a meu juízo, deve-se exatamente a este fato, repetirmos a realização de algo, da mesma forma, na expectativa de obter um resultado diferente ou o resultado desejado. E, outro ponto muito importante: recordarmos, sempre que possível, a criança que fomos um dia. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno Guilherme e demais familiares.

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    1. Queridíssimo amigo JH,
      Mais uma vez temos uma perfeita comunhão de pensamentos e valores. Isso é maravilhoso, meu amigo!
      Obrigado por suas observações, com destaque para “O erro é o começo do acerto”. Sensacional!
      Desejo ao amigo uma maravilhosa semana.
      Abraços para você, Sueli, Luizinho, Junior e uma beijoca especial na encantadora Catarina!

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  4. Querido amigo Cacau.

    Mais uma vez você nos brinda com crônica tão rica na convivência com os netos e os ensinamentos que ela encerra.

    Deus me presenteou com cinco netos e tive a graça de viver esse sublime momento que você descreveu . É de uma riqueza imensa. Como aprendi com a convivência com os eles e isso ainda continua com na fase adulta ou ainda adolescentes.

    Tive o privilégio de como professor ajuda-los nas tarefas escolares e assim ainda mais acrescentar os inúmeros ensinamentos que recebi.

    Agradeco também sua inteligente comparação do fazer de novo ou outra vez.

    Nos faz meditar quantas vezes estivemos em situações que envolveram a escolha de uma outra linha de ação.

    Muito obrigado querido amigo por mais esse presente.

    Grande abraço muito saudoso a todos .

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    1. Querido amigo Nei,
      É sempre um prazer receber seus comentários e saber que continua a acompanhar meus escritos com total assiduidade. Fico feliz, de verdade!
      Sei bem da sua felicidade e encanto com os 5 netos que Deus colocou na sua vida e da Jaciara. E eles ainda tiveram a sorte de contar com um professor amoroso e pronto a ajudar a qualquer momento. São uns sortudos!
      Amigo Nei, desejo uma maravilhosa semana à você e Jaciara e renovo aqui meu carinho e amizade por vocês.
      Fiquem com Deus!

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  5. É uma dificuldade do ser humano, reconhecer erros. Resiliência é uma sabedoria a desenvolver todos os dias. Por outro lado, praticar contorcionismo com os netos é diversão pura mas que dói, dói (rsrsss).

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    1. Amiga Yara,
      Vamos em frente nos contorcionismos… hahahaha Vale a pena, não é?
      Muito obrigado por comentar e por acompanhar minhas publicações. É um prazer!
      Abraços e uma excelente semana, cheia de contorcionismos!!!

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  6. adorei como sempre, mas a parte que me alegra o coração é sobre o neto. Sou um avô babão e adoro estar perto dos meus netos. Se soubesse nao teria tido filhos. Pulava direto pros netos… kkkkk brincadeira a parte. Deus te abençoe. Boa semana.

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    1. Amigo Luigi,
      Muito obrigado por comentar. Sua piada de pular direto para os netos me fez lembrar uma frase que brinca com essa ideia:
      “Filhos são um mal necessário para termos netos…” hahahaha
      Uma ótima semana para você e toda a sua família, especialmente seus netos!!
      Fiquem com Deus!

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  7. Excelente texto na Montagem e em seu conteúdo na sabedoria.

    Quando iniciei a leitura do texto foi como estivesse ouvindo a voz desse jovem Escritor, Poeta, Amigo e Irmao em Cristo.

    Eu penso da mesma forma do jovem e querido amigo Antônio Carlos, e com a sua permissão, reflito sempre: Se eu tenho Deus dentro de mim já basta para ser feliz nessa curta caminhada de vida.

    Parabéns, um beijo no coração dessa família iluminada pelo brilho da luz do nosso maravilhoso Deus.

    Com administração, respeito ao jovem Poeta, Escritor e Amigo.

    Osluzio

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    1. Meu queridíssimo amigo Osluzio,
      Sua gentileza e palavras elogiosas são certamente exageradas, mas revelam a beleza deste coração especial que você possui.
      Fico feliz de receber suas observações e mantermos este contato, pois minha admiração e carinho por você e sua família são muito grandes.
      Desejo uma maravilhosa semana a você, Nazaré, Aline, Mateus, Líria e o pequeno Rafael, a nova alegria da família!
      Fiquem com Deus!

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  8. Mais uma reflexão preciosa sobre nossos comportamentos crônicos nem sempre ao nosso favor!

    Muito bom poder buscar novos caminhos pra chegar onde almejamos!!

    Parabéns meu irmão por essa conexão linda com o encantador Guilherme! Vocês são muito especiais!!!

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    1. Minha irmã,
      Muito obrigado por comentar. É sempre útil refletirmos e avaliarmos nossos comportamentos, especialmente os repetitivos.
      Aprender com o que a vida oferece é caminho para a maturidade.
      Desejo uma ótima semana ! Abração em Flávio!

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  9. Meu grande amigo!

    Mais uma crônica para ler e refletir. Crônica que nos ajuda a pensar como é importante a determinação, persistirmos nas tentativas de acerto, cada vez com mais atenção, e com o aprendizado dos erros cometidos, evoluímos. Mas alegria e realização, mesmo,  é termos a oportunidade de observar e participar dos momentos com o netinho, reduzidos com o passar do tempo, é verdade. A receita é aproveitar o presente, como você está fazendo. Abraços em todos, em especial no Gui.

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    1. Caro amigo Rodolpho,
      Certamente suas experiências com os netos são enriquecedoras e amorosas. Temos o privilégio de tê-los por perto, o que nos traz renovação e uma generosa carga de ternura.
      Muito obrigado por comentar, meu caro amigo.
      Desejo uma excelente semana! Lembranças a Idalina!

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  10. Querido amigo Antonio Carlos,

    De uma brincadeira com o seu neto você fala sobre comportamento, recrutamento, seleção e decisão gerencial.
    É uma crônica para refletir sobre o que estamos fazendo.
    parabéns meu amigo por mais este ensinamento.
    Muito obrigado.
    Abraços.

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  11. Mais uma interessantissimo texto sobre formas de estar/sentir/actuar que nos podem ajudar a sentir melhor e a ser melhores pessoas. Gostei muito desse repetir o erro ou inovar, para que algo possa mudar. E
    Quanto aos netos…aproveitemo-los enquanto somos avós com piada e capazes de nos sentarmos no chão e alinhar com eles. Porque o tempo passa demasiado depressa, neles e em nós.
    Em resumo caro António, gostei muito desta sua crónica saída da ternura!

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    1. Cara Dulce,
      Agradeço seu gentil comentário e fico contente que tenha apreciado o texto, as reflexões e se identificado com a beleza de podermos sentar no chão a brincar com os netos. Somos privilegiados!
      Desejo um ótimo final de semana, com o calor do verão ainda na Primavera.
      Abraços!

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