PENSANDO BEM…

Saí de casa ali pelas cinco da tarde para minha caminhada diária. As circunstâncias eram ideais. O clima estava ameno, eu me sentia bem-disposto e não havia nenhum compromisso posterior. Ou seja, tudo certo para uma caminhada perfeita.

Durante muito tempo, para me sentir mais livre, eu não levava o celular na caminhada (em Portugal ele é chamado de telemóvel, mas prefiro a versão brasileira, pois é mesmo quase uma “célula” do nosso corpo…).

Recentemente resolvi acatar os argumentos de familiares, alegando que a falta de comunicação, em determinadas situações, poderia ser uma grande lacuna. À partir daí, sempre o levo, mas praticamente não utilizo. Talvez seja o único período do meu dia em que o aparelho possa ser chamado de telefone.

Ainda na porta de casa, lembrei-me de um podcast que eu desejava ouvir e que em breve sairia do ar. Como estava interessado no assunto, sem refletir muito, cedi ao impulso, enfiei um par de fones nas orelhas e parti para caminhar ouvindo o tal conteúdo. Foi fato inédito, pois nunca fiz isso nas caminhadas, nem para ouvir música.

Pois bem. Segui o percurso que normalmente faço e andei no ritmo que estou acostumado. O áudio durou uns cinquenta minutos, ocupando quase o tempo todo da caminhada.

Bem próximo de casa, já com os fones desligados, percebi que a caminhada havia sido diferente. O bem-estar que normalmente sinto estava ausente, as reflexões que normalmente surgem não aconteceram, a arrumação das ideias na bagunça da minha mente deixou de ser feita. Caminhei só com o corpo.

Meu espaço de pensar, deixar aflorar ideias e sentimentos, destampar a caixa de memórias, fazer avaliações e tomar decisões, foi ocupado por um palestrante que eu nem conhecia. Calei o meu interior para ouvir um estranho.

Não foi bom.

Eu poderia ouvir o áudio em outro momento, sem subtrair a preciosa oportunidade de estar inteiramente comigo mesmo. Concluí que preciso sempre andar de corpo e mente.

Claro que é uma situação particular, mas cheguei à conclusão de que, mais uma vez, fiz uso excessivo do celular. Arrependi-me deste pecado, mesmo sabendo que somos todos pecadores.

Não vou entrar no mérito do assunto, mas esta superexposição à tecnologia digital é um fenômeno mundial e seus incontáveis efeitos estão sendo estudados. São preocupantes. Sinto isso em mim, em minha família, em meus amigos mais próximos, nas pessoas que observo e até nas crianças.

Já havia notado, em outras caminhadas, que nas mesas externas dos restaurantes e lanchonetes é quase impossível ver alguém sentado sozinho, que não esteja com os olhos fixos na telinha. Não vejo mais ninguém olhando para o tempo, voando em pensamentos, envolvido em devaneios ou reflexões. Independe de idade. Seja um café ou um fino (é assim que chamam o chopinho aqui em Portugal) todos os solitários estão entregues às telas. Ninguém fica mais sozinho, ninguém fica sem fazer nada, ninguém deixa a mente parada.

Lembrei da famosa escultura “O Pensador” de Rodin. Não haverá hoje, pelo menos no espaço público, uma só pessoa que dê a impressão de estar imersa em pensamentos.

Não sei se neste mundo veloz e tecnológico estamos encontrando o nosso espaço de paz para pensar. Talvez, com o uso excessivo das telas, estejamos trazendo o caos do mundo para dentro de nós. É possível que haja um grande estreitamento do espaço para pensarmos nas grandes decisões que precisamos tomar, nos sonhos que possuímos, nos caminhos que queremos trilhar e em nossos próprios sentimentos.

Em que momentos paramos para pensar na vida?

Não sei a resposta. Claro que não é quando estamos excessivamente ocupados, cumprindo compromissos. Claro que não é nos intervalos, por menores que sejam, pois estes estão preenchidos com telas, que vemos e ouvimos da hora em que acordamos até o último momento antes do sono nos apagar.

Esta semana fui ao banheiro de um restaurante depois de tomar dois finos. De repente, o sujeito ao meu lado começou a falar. Olhei para ele achando que estava se dirigindo a mim e estranhando que quisesse conversar com um estranho naquele momento tão privado. Na realidade ele estava numa ligação via celular com ajuda de um dispositivo pendurado na orelha. Ou seja, nem as necessidades fisiológicas escaparam…

É certo que hoje já renunciamos à nossa privacidade. A questão agora é avaliar se, sem perceber, estamos também limitando o espaço da nossa individualidade. Podemos estar perdendo a nossa própria companhia. E aí, sem o voltar-se para si, para o nosso interior, fica difícil encontrar sentido no que fazemos.

A tecnologia é maravilhosa, mas há consequências, paga-se um preço. Ao nos mantermos ocupados o tempo todo, podemos estar reduzindo muito o nosso tempo de reflexão pessoal. Que troca desvantajosa. A subtração do espaço da individualidade talvez seja o maior ônus da nossa excessiva ocupação.

Pode ser que nos reste apenas fragmentos de tempo para pensar, intervalos mínimos entre ocupações e não um tempo de qualidade reservado para algo tão importante e nobre. Talvez tenhamos que nos contentar com um pensar desordenado e superficial, sem consistência, sem coerência, sem consciência…

Não resta dúvida de que o telefone se tornou mais inteligente, foi promovido, faz coisas fabulosas, agora é um smartphone. Que evolução! Porém, se o dono dele não tem tempo para pensar, apenas deixa as coisas acontecerem sem capacidade de análise crítica de si mesmo e dos outros, sem imprimir sua própria vontade no que faz, sem buscar seus anseios mais profundos e realizadores, sendo levado de roldão pela maré da vida, poderá estar a caminho de tornar-se um expectador do seu próprio destino, um sujeito passivo, uma vítima das circunstâncias. Que involução!

Sim, porque não ter tempo para pensar é caminhar sem destino, sem intenção, sem propósito.

É deixar-se ficar ao relento, sentar-se em qualquer assento, para mais nada ter tempo, girar como um catavento.

É viver a esmo e não em si mesmo.

Concluo louvando a sabedoria dos filósofos antigos. Estamos no século XXI bebendo na fonte de ideias formuladas antes da Idade Média, como é o caso deste pensamento do grande Sócrates:

Tome cuidado com o vazio de uma vida ocupada demais!

 

Antonio Carlos Sarmento

 

21 comentários em “PENSANDO BEM…”

  1. Maravilhosa reflexão. Vemos, não só solitários em mesas com celular, mas vemos, em mesas e em outros lugares públicos, casais e famílias inteiras solitários, cada um com seu celular em seu mundinho digital. Importante resgatar o tempo com si mesmo e estar presente, junto aos seus, de corpo, mente e alma. Brilhante como sempre. Parabéns!

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  2. Querido amigo

    Quanta sabedoria nas suas análises sobre o uso dos celulares.

    A humanidade está escrava desses aparelhos. Eles vieram para revolucionar nossas vidas. O incrível é que é para o bem e para o mal. O difícil é sabermos controlar essas duas vertentes.

    Quando saímos de casa e temos o sentimento de que algo está faltando com certeza é celular. Você pode esquecer até a sua carteira ou a chave do carro mas a falta do celular é como se você saísse descalço de casa…

    Realmente ele veio trazer muita. coisa boa ,importante e útil em nosso dia a dia mas o grande desafio é ter o discernimento que você teve quando ao retornar da caminhada concluiu que algo foi errado. O mal do celular lhe venceu mas você notou e pode reavaliar as próximas caminhadas.

    É o que devemos fazer..

    Obrigado saudoso amigo. Deus lhe abençoe.

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    1. Querido amigo Nei,
      Eu concordo com você. A tecnologia é maravilhosa e nos encanta tanto que acabamos por exagerar no uso. Esta é a reflexão necessária, a busca do equilíbrio, da moderação. Nada é bom se houver exagero…
      Obrigado por seu comentário, meu querido amigo!
      Beijos na Jaciara e fiquem com Deus!

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      1. Caminhamos pela mesma estrada a das palavras uns mais afrente, outros começando mais o objetivo e o mesmo conquistar leitores para o que escrevemos.

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  3. esse fds estava conversando com uma amiga sobre a dificuldade em ouvir podcast, pq não tínhamos tempo e dissemos que não queríamos lavar louça aprendendo nada, eu nem vou pro trabalho pra ter o tempo de deslocamento, etc. mas nós sentimos na obrigação de sermos sempre produtivos e ainda precisamos justificar qdo não queremos. Eh dose. Concordo muito com você

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    1. Sim, Fefe.
      Ser produtivo 100% do tempo acaba por ser algo improdutivo para nós mesmos.
      Vamos deixar a mente fazer um pouco aquilo que nós mais precisamos: pensar em profundidade sobre a vida.
      Bjks e obrigado pelo comentário!

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  4. Grande meu Amigo Sarmento, muito boa noite. Simplesmente magistral essa crônica. A cada dia, fico mais feliz em tê-lo com Amigo. Penso já ter lhe falado sobre os meus estudos, feitos ultimamente, são exatamente sobre o cultivo da individualidade, é justamente preencher o vazio de uma vida cheia demais. Durante cerca de 20 anos, passei na porta a Fundação Logosófica, em Botafogo, vizinha da Dataprev, onde trabalhei nos últimos 36 anos, eis que há 19 anos, já com 57 anos de idade, fui convidado a conhecer esta instituição que tem me proporcionado conhecer-me a mim mesmo e assim, resgatar a minha individualidade das garras da personalidade, essa máscara com a qual, acostumamos a sermos vistos e ouvidos, tornando-nos mais um “homem massa”, dessa civilização em que vivemos. Ao descobrir, como você, que tenho uma vida que está muito mais além do que os meus olhos vêem e, que sem pensar eu atuo sem consciência, tenho tentado, não recuperar o tempo perdido mas, sim, viver uma vida digna de ser vivida, cumprindo o destino que eu desejo, e, sobretudo, buscando evoluir os valores que julgo possuir e eliminando as deficiências que identifico em mim. Que alegria me trouxe a sua crônica. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao pequeno Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu querido amigo JH,
      Nossa convergência de pensamento só aumenta!
      Não conhecia a expressão “homem massa”. É exatamente disso que precisamos escapar. E o jeito é só através de leituras, reflexões e trocas de ideias como esta que estamos fazendo motivados pela crônica.
      Obrigado por partilhar suas experiências e descobertas.
      Lembranças à Sueli, Júnior, Luizinho e à Rainha Catarina!

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  5. Querido amigo Antônio Carlos, boa noite!

    excelente crônica, como sempre.

    Oportuna a sua análise. Me convenço de que estou certo.

    A minha caminhada é sagrada para o meu corpo, alma e espírito. Não permito que a tecnologia atrapalhe. O celular, nesse momento, é somente para emergências.

    É muita informação, muito problema e muita gente piorando o mundo.

    Jesus Misericordioso tenha piedade de nós!

    Um forte abraço e ótima semana para vocês!

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    1. Meu amigo Newton,
      Fico contente em saber que o amigo pratica a caminhada da mesma forma que eu, sem a tecnologia para interferir.
      É muito bom estar só e refletir, sem as perturbações das notícias, quase sempre ruins e negativas.
      Muito obrigado pelo comentário!
      Fiquem com Deus e dê lembranças minhas à Nuri!

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    2. Meu querido amigo, boa tarde!

      Belo texto para refletirmos sobre a submissão tecnológica que nos impuseram com muita habilidade.

      Além de tudo que você escreveu, o celular tira a cada momento, algo que nos deliciávamos : FALAR, CONVERSAR, GESTICULAR E PENSAR. Nossa comunicação restringe-se a mensagens de whatsApp.

      Parabéns1

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      1. Meu querido amigo,
        É verdadeiramente uma submissão…
        Felizmente, em nossa amizade, extrapolamos as mensagens de Whatsapp e temos muito contato pessoal. Isso é muito bom!
        Obrigado pela mensagem, queridão!
        Fique com Deus!

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  6. Mais uma excelente cronica de um tema cada vez mais actual e complexo. Por vezes parece que estamos num processo de alienação colectiva, em que os sentidos têm que estar sempre ocupados com algo. Foge-se do silêncio e do olhar simples para nos inundarmos de sons e e informação.
    Pessoalmente, o que me faz muuuuita confusão, é ver pessoas a passear ou correr no meio da natureza com auscultadores nos ouvidos.
    Por muito que se goste de música… haverá sons e silêncios mais belos do que aqueles que a natureza nos oferece?
    Infelizmente, creio que muitos já perderam a capacidade de os apreciar…..

    Boa semana!

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    1. Dulce,
      É exatamente esta ocupação excessiva dos sentidos que merece atenção. Faz falta o “silêncio e o olhar simples”. Parece que não temos mais momentos de ócio: encaramos tudo como tédio e então nos ocupamos com telas, uma ocupação passiva e muitas vezes inútil.
      Muito obrigado por seu comentário, que revela já haver notado processo e refletido sobre ele.
      Desejo uma ótima semana no verão luso!

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  7. Meu primo,

    bem- vinda seja a solitude que nos reconcilia com nossas emoções: organiza pensamentos, emerge recordações, ilumina decisões…

    Se antes Manuel Bandeira nos apresentou a palavra como uma forma poética da carrancuda solidão, hoje é um termo que evoca o encontro prazeroso com nosso interior, restaurando a alma, para continuarmos a jornada com mais serenidade e força .

    Só à música dou licença para estar comigo nesses preciosos momentos.

    Aqui, um pedido ao querido cronista: não permita que qualquer intruso acompanhe sua caminhada. Deixe- se envolver por todas as percepções que esses momentos lhe inspiram, por todas as ideias que seu interior lhe sussurra, para sermos presenteados com seus textos edificantes e para conhecermos e admirarmos toda a generosidade e a grandeza que seu ser abriga.

    Grande abraço, com carinho.

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    1. Querida Gena,
      Difícil responder este primor de comentário.
      Fique certa que não mais permitirei os tais “intrusos” nas caminhadas e espero continuar produzindo textos que te agradem.
      Seus elogios pessoais são puro exagero, mas recebo com o coração alegre!
      Beijos e uma ótima semana!

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