PEDRA POLIDA

Não vejo meu neto Guilherme há quase um mês, depois de estarmos juntos diariamente por quase seis meses. A falta que sinto dele trouxe à tona algumas passagens da nossa convivência recente.

Guilherme levou uma bronca da mãe por atrasar a saída de casa, agarrado aos brinquedos e alheio aos horários. A mãe, após várias tentativas, acabou por abandonar a delicadeza e elevou o tom de voz. Ele não gostou, enrugou a boca, entrefechou os olhos e parecia na iminência de chorar. Foi a hora de deixar a aspereza e voltar à delicadeza:

— Eu te chamei muitas vezes, meu filho, e você não atendeu. Não pode ser assim, Guilherme. Nós temos horário a cumprir.

A resposta dele foi imediata e me surpreendeu:

— Tudo bem, mas eu sou pequeno, tenho só 5 anos. Vocês têm que me treinar.

Sendo impossível discordar, a mãe deu-lhe um abraço apaziguador e saíram para o compromisso.

Fiquei perplexo com a capacidade de uma criança tão pequena elaborar uma resposta tão consistente. Não me refiro ao Guilherme em particular, mas as crianças em geral. É fascinante imaginar como aprendem as coisas, de onde tiram as ideias, como formulam conexões e raciocínios. Que coisa formidável!

Mais alguns dias e, à mesa de refeição, ele conta alguma coisa ocorrida na escola. Usa expressões um tanto sofisticadas e mistura deliciosamente o português de Portugal, aprendido na convivência escolar, com o português do Brasil, aprendido em casa. Foi tão peculiar que os adultos presentes riram da forma graciosa como ele se expressou. Guilherme não gostou:

— Não tem piada. De que estão rindo?

— Achamos bonitinho as palavras que você usou — tentou a avó.

— Vovó, não é assim. Palavras são só palavras.

A vontade de rir foi multiplicada, exigindo de nós um esforço ainda maior para não piorar a situação. Meu Deus, palavras são só palavras. Ah Guilherme, se os eleitores pensassem assim, quantos políticos estariam fora da vida pública…

Peço desculpas ao leitor por contar estas passagens. Elas estão no texto mais para criar contexto. Acho que é o efeito saudade. Os que têm netos hão de me perdoar logo e os demais, para me compreender, talvez tenham que aguardar a avovescência (permitam-me designar assim a fase que estou vivendo).

Vamos então à passagem principal.

Eu estava com Guilherme na praia e ele me convida a catar pedras para formar uma pilha. Aceitei descansar carregando pedras e me entreguei à tarefa, muito mais pela companhia que pela atividade, claro.

A pilha de pedras foi crescendo junto com a minha dor nas costas de tanto abaixar para pegá-las na areia. Mas eu não podia decepcioná-lo.

Aos poucos as pedras foram escasseando e cada vez tínhamos que ir mais longe, chegando próximo à beira d’água. Foi lá que Guilherme viu uma pedra que o encantou: era completamente lisa, cantos arredondados, sem nenhuma aresta ou rugosidade e com uma cor rosada, diferente das demais.

Perguntou-me por que aquela pedra era tão singular. Expliquei-lhe que a ação das marés, o vento, a chuva e o sol se encarregaram de, ao longo de muitos e muitos anos, dar-lhe aquelas características.

— Então ela deve ser muito velha — concluiu.

— Sim, Guilherme. É bem velhinha.

Ele pareceu aceitar a explicação e saiu correndo, pois viu o pai ao longe e preferiu jogar bola.

Lembrei que ele tem só 5 anos e precisamos treiná-lo. Também não sei se compreendeu minhas palavras, mas afinal, palavras são só palavras.

Fiquei com a pedra na mão.

Passei-a na água e me detive em pensamentos enquanto acariciava aquela superfície tão agradável ao toque, com curvas suaves e formas harmônicas. Que trabalho maravilhoso a natureza produziu. Olhei o mar, o céu, a areia, senti o sol, todos coautores daquele trabalho artístico.

Recuso-me a chamar de erosão, que soa como algo negativo. Procuro na mente uma outra expressão melhor para definir uma obra tão lenta, minuciosa e paciente realizada pelas forças da natureza. Quanta habilidade, quanto talento, quanta beleza. Uma onda varre meus pés e me traz a palavra que eu procurava: não foi erosão, foi lapidação.

Esta palavra me fez refletir que a idade vai fazendo conosco algo deste tipo. Vamos envelhecendo e, apesar de não ficarmos mais bonitos, com a pele lisa, formas elegantes e  agradáveis ao toque, a idade vai nos lapidando. Em muitos aspectos, a ação do tempo vai nos aperfeiçoando, construindo uma beleza interior, escondida na sabedoria e maturidade.

Acho que o envelhecer é assim. Vamos virando pedra polida.

Aos poucos passamos a viver de outra forma, em novo ritmo, mais próprio ao nosso corpo e mais de acordo com a nossa alma. Aquilo que vivemos, as experiências, os relacionamentos, as vitórias e mais ainda as derrotas, vão esculpindo em nós o equilíbrio, a serenidade, a ponderação, o pensamento mais consistente, mais evoluído, mais profundo. Isto torna a vida mais plena.

Volto a olhar para a pedra que ainda repousa na minha mão.

Parece que gradativamente ganhamos a capacidade de ver com mais nitidez a beleza da vida. Ela está espalhada abundantemente por aí, derramada por todos os cantos, mas só a vivência nos faz ver aquilo que antes passava despercebido.

Se assim for, o passar do tempo pode ir nos tornando mais vivos. Que maravilhosa assimetria: ganhar mais vida ao chegar mais perto da morte. Talvez este seja um presente do Criador.

É possível que John Barrymore tenha razão quando disse:

Envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que você sempre deveria ter sido.

Claro que muitos de nós e a sociedade em geral têm uma visão negativa da velhice. Focamos nos aspectos negativos, associamos o avanço da idade ao declínio, confundimos limitações naturais com doenças e assim envelhecemos com tristeza, trocando oportunidades por desalento. Acho que é comum que seja assim, mas não é racional que seja assim. Não há sentido em trocar a oportunidade de viver pela perspectiva de morrer. É pecado capital desperdiçar vida enquanto ela existir.

Noto que sequer encontramos até agora uma palavra na língua portuguesa que possa expressar esta fase da vida de modo positivo. “Velho” carrega um tom depreciativo, “terceira idade” é uma expressão descabida e pouco sonora, “idoso” também não se ajusta bem.

Lembro agora que eu brincava com minha mãe após ela completar 60 anos,  chamando-a carinhosamente de velhinha. Ela sempre reagia em tom bem-humorado e respondia, escondendo um sorriso: velhinha é sua mãe!

Seja qual for o substantivo, prefiro ficar com a ideia de que velhice não é desmoronamento, e sim refinamento. Pedra polida!

Ouço um grito de gol do Guilherme, que tira meus olhos da pedra e meus pensamentos do devaneio.

Vejo ele saltitante e recordo minha infância. Vagueio pelas brincadeiras, passeio pela rua onde morei, abraço os amigos que tive, rememoro aventuras e desventuras, desfruto por instantes o sabor intenso da minha vida de criança. Obrigado Guilherme, por me levar a revisitar a infância. É algo maravilhoso que as crianças despertam no nosso coração.

Vou retornando a passos calmos pela praia, sentindo-me feliz. Como disse certa vez o escritor Gabriel Garcia Márquez:

A idade não é como você está, é como você se sente.

Enquanto a areia macia massageia meus pés busco um ponto final nos pensamentos que me acometeram.

A brisa do mar faz então um cochicho no meu ouvido:

Velhice não é decadência, é uma nova cadência.

 

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “PEDRA POLIDA”

  1. Seu texto me fez viajar pelo tempo. Recordei o mio nonno e nossas caminhas. Quando somos crianças, a idade tem outro significado e creio que não caiba em palavra alguma. Talvez por isso todas as que encontrou não façam sentido. Veglio (é uma palavra que eu gostava e dizia combinar com o nonno porque a idade dele não cabia nos dedos das mãos. Eu era a bambina de 07 anos e ele o signore de 79 anos).

    Vez ou outra, durante nossas conversas, ele arregavala os olhos e parecia surpreso com alguma coisa que eu havia dito. Uma observação do meu tamanho feita a partir de coisas muito maiores que eu. Cresci embalada por aqueles papos entre um passo e outro por dentro do bosque, recolhendo gravetos e folhas (hábito que não se perdeu e toda vez que vejo uma bela folha no chão, recordo nós dois).

    Seu texto me emocionou e me devolveu aos passos pelo bosque, a companhia do meu gigante que ria com o corpo todo. Não, ele gargalhava e a barriga tremia feliz.

    bom domingo para você

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  2. Gostei muito mesmo dessa crônica! Será pelo convívio com o netinho, sempre uma alegria em nosso coração?   Será pela nova cadência? Será pela grande verdade: “A idade não é como você está, é como você se sente.”? A verdade é que sua crônica mais uma vez fez meu domingo mais feliz!  Bom retorno amigo. Beijoca especial no Gui!

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  3. Adorei a crónica, como pessoa e como avó. Tudo o que é fundamental está aí, sendo certo que com os netos vamos entrando em meandros do nosso pensar e sensibilidade que por vezes esquecemos e que eles, na sua simplicidade, nos levam a encarar de outra forma.
    O importante na vida é mesmo este estar atento e receptivel aos detalhes que nos vêm parar “às mãos”!
    Bom domingo e boa semana!

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    1. Dulce,
      Estar atento e receptível aos detalhes é a sua marca, seja em desenhos, fotografias ou textos. É fato que a beleza da vida muitas vezes se esconde nestas pequenezas cheias de grandeza.
      Muito obrigado por acompanhar minhas publicações e comentar.
      Desejo uma ótima semana!

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  4. É meu amigo, a saudade de seu neto Guilherme levou-o a uma belíssima reflexão. Lembro da minha neta Rafaela que pudemos acompanhar de perto ao longo dos seus atuais 24 anos e que hoje é uma boa advogada, quantas alegrias, quantas coisas divertidas e bem pensadas ela falou para nós e hoje penso nos meus 78 anos de idade a felicidade que ela transmitiu para nós, e que na realidade nos fez chegar a esta idade com ótimas lembranças. Infelizmente, e como você sabe, não conseguimos a mesma felicidade com a nossa outra neta Maria Eduarda, hoje com 14 anos que foi criada longe de nós após os 7 anos, devido a separação do meu filho Rodrigo da mãe dela. Raramente encontramos com ela e quando isso acontece, ela nos trata com frieza e distância, como não fossemos avôs dela e isso nos traz muita tristeza. Mas “Deus está no controle de tudo” como diz um amigo que tenho. Não sabia que vocês já tinham retornado provisoriamente ao Brasil. Tendo tempo, vamos tentar encontrarmos para um almoço como fizemos em Portugal. Um grande e afetuoso abraço e fiquem com Deus.

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    1. Meu querido e saudoso amigo Aylton,
      Muito obrigado por seu comentário. Fico feliz em saber que lhe trouxe boas recordações da Rafaela.
      Viemos ao Rio para um casamento e já vamos retornar hoje, daqui a pouco. Infelizmente não pudemos nos ver, mas digo “até breve” para o amigo na esperança de que estaremos juntos em pouco tempo.
      Beijos para você e Regínia e que Deus esteja sempre com vocês e toda a família!

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  5. Caro amigo Antonio Carlos!

    Sempre viajo no tempo com suas crônicas!

    Obrigado por mais uma vez pensar na idade de forma positiva, pensar no tempo de criança e viajar pela adolescência e juventude.

    Quanto tempo meu Deus! Agradeço muito pela experiência e aprendizado ao longo do tempo.

    Obrigado querido amigo pelas viagens frequentes.

    Uma excelente semana para você e Sônia!

    Abraços.

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    1. Amigo Newton, leitor infalível,
      Mais uma vez agradeço a gentileza de seu comentário e me alegro em ter despertado bons pensamentos. Precisamos mesmo olhar o mundo de forma positiva e há realmente belas coisas à apreciar.
      Desejo ao querido amigo e à Nuri uma semana excelente.
      Fiquem com Deus!

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  6. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Como sempre, maravilhosa e oportuna a sua crônica. Carlos Bernardo González Pecotche, ensina que a mente da criança é terra fertil; essas manifestações do Guilherme, a meu juízo, é a prova disso, ou seja, são frutos das condições em que ele vive, com os pais e os avós, todos muito sensíveis, inspirando-lhe confiança. Recordarmos a criança que fomos um dia é um exercício, sem saudosismo, para recuperarmos a pureza da infância que, com o passar dos anos, por causa de uma série de acontecimentos, muitas vezes acabamos por perder. Meu Amigo, por conta do esmero que o Luizinho e a Carolina, cuidam da educação da nossa Imperatriz Catarina, assim como o Jean e a Tatiana cuidam do Príncipe Guilherme, por aqui, também, somos surpreendidos frequentemente por manifestações que só seres, como eles, muito bem cuidados e amados, são capazes de produzir, penso que cabe-nos como avós estimular cada vez mais a produção dessas manifestações, sempre, muito oportunas. Quanto a ser “velho”, “idoso” ou “jovem há mais tempo”, eu penso que enquanto tivermos alegria e entusiasmo pela vida, esses termos não significam nada para nós. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Querido amigo JH,
      Você abordou algo que também acho essencial: a criança precisa mesmo de cuidados e amor para se desenvolver. Observar que está havendo este desenvolvimento de forma plena nos dá um claro sinal de que estão sendo bem tratadas e recebendo o essencial para um ser humano nesta fase.
      Felizmente o Luizinho e Carolina se dedicam à filhinha com este amor e cuidando muito bem dela. Graças à Deus está sendo assim!
      Quanto à alegria e entusiasmo pela vida vamos levar apenas até à véspera do cemitério, ok? Tá combinado!
      Meu amigo, sempre um prazer interagirmos por aqui.
      Um grande abraço, lembranças à Sueli, Luizinho e Carolina, Júnior e uma beijoca especial para a Catarina!

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  7. importantíssimo seu texto. As crianças hoje se desenvolvem mais rápido. Na verdade nós é que devemos ser treinados, pois não temos noção do grande conhecimento deles. Por isso ficamos surpreendidos com tanta sabedoria. Por outro lado temos o ápice da vida, quando adquirimos maturidade, mas que dura pouco. Gosto de ver, ouvir, pessoas como nós que alimentamos nosso viver, para que não se torne um fardo, nos aniquilando.

    um abraço

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    1. Guilhermina,
      Um prazer receber seu comentário.
      Realmente as crianças nos causam espanto com tanto conhecimento, não obstante algumas preocupações com este mundo digital que nos assola de informações: todo excesso deve ser evitado.
      Muito bom que estejamos seguindo com um olhar positivo para a vida e seduzidos pelas belezas que ela nos oferece em qualquer idade.
      Guilhermina, envio um grande abraço e agradeço suas observações!

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  8. Meu querido amigo !

    Bem feito pra mim, poderia ter desfrutado dessa linda, poética e reveladora crônica do amor dos avós pelos netos no domingo porém, somente agora consegui lê-la.

    Meu amigo você foi brilhante ao juntar a inocência e inteligência do Gui, as lembranças agradáveis da infância e as sutilezas da idade plena, muito legal.

    Parabéns, com muitas saudades do meu parceirinho querido.

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    1. Queridão,
      Você não perdeu nada, apenas adiou um pouquinho a leitura para ajustar à sua movimentada rotina.
      Falar de amor pelos netos para você é chover no molhado, meu amigo…
      Obrigado por seus comentários e por aqui a saudade também já está presente.
      Beijos para você, Rosa e toda esta querida família!
      Fiquem com Deus!

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    1. Olá Tati,
      Muito feliz de receber seu comentário!
      Sim, as crianças nos surpreendem e ficamos maravilhados com a capacidade do ser humano. É realmente belíssimo acompanhar o desenvolvimento de uma criança de perto.
      Obrigado por suas palavras sempre gentis e estimulantes.
      Abraços!

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