VIDA SEM FILTRO

Estava em casa e ouvi um barulho de água escorrendo. Segui a trilha sonora que me levou à cozinha, onde encontrei um início de inundação. Meu aparelho de filtrar e gelar água vazava por todos os lados.

Fechei o registro (os portugueses diriam “registo”), sequei o chão e telefonei para a assistência técnica. Eles já conheciam o problema. O excesso de pressão da água havia rompido o reservatório principal, o coração do equipamento. Não compensava substituí-lo, já que o custo seria quase o mesmo que um aparelho novo.

Bebi água mineral por dois dias até que o aparelho foi trocado e, desta vez, para evitar a reincidência do problema, foi instalado um redutor de pressão. A diferença é que a saída da água se tornou lenta, sem pressa, ou melhor, sem pressão. O técnico explicou que além de não danificar o reservatório, a filtragem agora ocorria de modo mais eficiente e eu teria uma água de melhor qualidade para beber.

Acreditei e troquei a velocidade pela qualidade. Filtrar bem exige tempo!

Nas primeiras vezes experimentei um pouco de impaciência ao aguardar o copo encher. Uma coisa que era rápida havia se tornado lenta. Era como se eu usasse um micro-ondas e tivesse mudado para um forno a gás…

Mas logo me acostumei e decidi que aquele era um tempo necessário. Passei a encará-lo como uma pausa obrigatória, um momento de calma no meu dia, sem fazer nada a não ser esperar o copo encher para em seguida esvaziá-lo e saciar a sede com água de boa qualidade, bem filtrada.

Acabei por me encantar com o movimento da água e sua limpidez. Vi seu movimento mágico, escoando com graça e ocupando aos poucos todos os espaços do copo de forma homogênea. Percebi beleza na forma, na aparência e na fluidez da água, uma maravilha da natureza. Nunca havia parado para observar um copo se encher de água, muito menos tinha encontrado esta  beleza, escondida pela rotina e pelo meu jeito apressado e distraído.

Pois foi em uma pausa destas, enchendo mais um copo d’água, que me peguei pensando na velocidade dos nossos dias atuais. Ah, se a gente instalasse um redutor de pressão na nossa vida. Teríamos o tempo passando mais devagar, a vida fluindo em nós com calma, mais lentamente, permitindo ser apreciada em detalhes que a velocidade encobre. Uma vida mais pura, de mais qualidade. Viver bem exige tempo!

Estaríamos também preservando o nosso reservatório principal que, submetido a tanta pressão, bate acelerado quase o tempo todo. Na velocidade em que estamos vivendo é como se tudo jorrasse direto do cano, em grande pressão. Vida sem filtro!

Não posso afirmar, mas posso desconfiar que tem a ver com o chamado mundo digital, criado pelos fascinantes avanços tecnológicos. Claro que este possui recursos fenomenais, mas  quantas vezes deixamos de lado o que é bom, útil e enriquecedor para ficar vagueando no mundo virtual sem um objetivo claro, querendo ver tudo sem ver nada.

Acontece até da gente ir para a tela com a intenção de fazer algo e, sem perceber, acabarmos dispendendo nosso tempo em outras coisas que sequer eram do nosso interesse. Há uma tendência irresistível de ficar vagabundeando na internet e nas redes sociais, vendo coisas variadas, porém desconexas e fragmentadas. Ficamos em retalhos que não formam uma colcha, mosaicos que não formam um desenho e, como bêbados digitais, zonzeamos daqui para lá, sem sentido, sem destino e sem consciência. É assim que dissolvemos o nosso tempo na superficialidade e nos afogamos nos excessos que brotam de nossas telas. Muita informação, muita rapidez, muitas imagens, muita coisa boa, muita coisa ruim.

Penso que a tecnologia digital acaba por nos ser oferecida de modo sedutor e ardiloso. Com uma mão nos possibilita ganho de tempo. Não precisamos mais ir aos bancos para controlar nosso dinheiro, as informações que precisamos chegam aos borbotões sem necessitarmos de pesquisas em livros ou documentos, as lojas vêm até nós sem sairmos do lugar e até a comida chega à nossa mesa sem precisarmos ir a restaurantes. Tudo prático, conveniente e rápido. Ganhamos tempo!

Porém, com a outra mão, a tecnologia nos subtrai todo o tempo ganho e muito mais, cobrando-nos juros elevados por aquilo que nos deu. Exige fixação inclemente na tela digital, por onde derrama doses cavalares de conteúdo de todo tipo, lança mão de recursos viciantes aos quais não conseguimos resistir, capta nossas informações pessoais para nos conhecer até mais que nós mesmos e assim escraviza-nos em um cárcere virtual do qual quase ninguém escapa.

Independente de idade, classe social, nível cultural ou qualquer outro critério que se possa cogitar, estamos quase todos hipnotizados pelas telas. É o maior ladrão de tempo de todos os tempos!

Nossa vida, assoberbada pela tecnologia, faz com que nossas tarefas sejam sempre realizadas com pressa, nossos encontros sejam rápidos, nossas conversas breves e nosso tempo de reflexão pessoal reduzido ao mínimo ou a quase zero. Passamos a dar abraços sem braços, fazer contato sem tato e dar amor sem calor.

Parecemos estar dominados por um implacável senso de urgência que nos estonteia. Fazemos coisas sem muito foco, já pensando em outras e preocupados com mais algumas do nosso inesgotável estoque, suprido fartamente pelo mundo digital.

Este excesso de pressa e o volume avassalador de informações tem consequências, claro. Já vejo por aí pessoas que mais parecem zumbis digitais, como as que protagonizam os casos reais que passo a contar.

Peguei o elevador do meu prédio e dois andares abaixo entrou um rapaz de uns 25 anos com o rosto aparafusado em um celular. Na realidade, seria melhor dizer que entrou no elevador um celular, trazendo anexo um rapaz de uns 25 anos.

Ele, sem me olhar, claro, pois jamais trocaria o encanto de uma tela colorida pela monotonia de um ser humano sem graça como eu, fez a gentileza de proferir um cumprimento com voz monótona e desinteressada:

— Boa tarde!

Eram nove da manhã!

Tive a impressão de que se o celular tivesse dupla face, a imagem dele apareceria na parte traseira e eu o veria e ouviria num aplicativo de cumprimentar vizinho. Deve faltar pouco para chegarmos a isso.

Por educação, respondi desmotivado:

— Bom dia!

Ele me devolveu apenas indiferença e deixou-me a nítida impressão de que sequer se deu conta do engano. Seguiu até o térreo vidrado no aparelho como se ali estivesse desvendando o segredo da vida eterna.

Ainda antes do almoço recebo uma mensagem de uma clínica médica confirmando a aplicação de uma vacina para uns 15 dias depois, quando na realidade estava agendado para 3 dias depois. A mensagem não aceitava resposta, então só me restou telefonar, hábito praticamente em extinção, para buscar corrigir o erro.

A resposta foi imediata, sem que fosse feita qualquer verificação:

— A data é esta que o senhor recebeu, independente de quando estava marcada.

— É que na nova data eu não posso.

­— Então eu vou cancelar e depois o senhor liga para outro número para remarcar.

Foi tão frio e insensível que até tive dúvida se era uma atendente virtual ou real. Acho que cada vez mais será difícil termos este tipo de certeza.

Fiquei contrariado, pois não me foi oferecida qualquer alternativa. Pois bem, três dias depois, no horário agendado, uma moça da clínica tocou o interfone do meu apartamento e minutos depois aplicava a minha vacina. Fiquei imune à doença, mas não aos erros e desatenções da pessoa que me atendeu.

Já no final do dia fui ao supermercado em busca de alguns poucos itens. Lancei mão daquela cestinha para pequenas compras e pousei-a no chão, ao meu lado, enquanto escolhia um mamão para o café da manhã do dia seguinte. De repente, notei um sujeito caminhando em minha direção teleguiado por um celular que ocupava seu rosto e comandava o movimento robotizado de suas pernas.

Ele se aproximou, derramou as mercadorias que tinha na mão em minha cestinha e seguiu pelo corredor. Fiquei sem reação.

Olhei na direção em que ele havia seguido e vi que, mais a frente, foi parado por uma mulher, provavelmente a dele, que cobrou o que teria prometido buscar. Ele falava com a mulher, mas olhava para o celular, talvez achando-o muito mais interessante.

Fiquei perplexo por ele ter confundido uma mulher loura de 30 anos, com quem é casado provavelmente há algum tempo, com um homem estranho de cabelos brancos, comprador de mamões, que nunca havia visto. Um pequeno engano…

Vejo pontos em comum nestes episódios. Não me parece tão simples quanto o velho ditado de que a pressa é inimiga da perfeição. Parece mais provável que tantos excessos aos quais somos levados de forma sedutora pelo mundo digital nos confundam e subtraiam, além do nosso tempo, também parte de nossa lucidez. Acabamos por fazer tudo apressadamente. E “a pressa da mente” cobra um preço, que pode ser muito caro.

O mau operário sempre culpa a ferramenta, mas não há dúvida de que a questão não está na tecnologia digital, que criou e continua a criar coisas maravilhosas. É verdadeiramente um novo tipo de vida. Só que a forma de usar a tecnologia depende de nós.

Sem filtro, sem redutor de pressão, sem pausas para encher o copo d’água, podemos chegar a constatação de que não fizemos uma mudança de vida. Fizemos uma mudança indevida.

Antonio Carlos Sarmento

19 comentários em “VIDA SEM FILTRO”

  1. Caro e Grande meu Amigo, muito bom dia. São inúmeros os seus trocadilhos nesta crônica, aliás, essa é a sua especialidade, penso eu. Mas, a meu juízo, o ponto mais importante é a sua observação “… e, como bêbados digitais, zonzeamos daqui para lá, sem sentido, sem destino e sem consciência” (grifo meu). De fato, meu Caro Amigo, descreveste nesta crônica de hoje, o que tenho aprendido serem os dois maiores males da humanidade, atualmente, a inconsciência e ignorância. Muito pouco, ou quase nada, realizamos com consciência após uma reflexão e, sempre, pondo a culpa na falta de tempo, tempo esse desperdiçado nas situações narradas. Como observamos, a culpa não é da tecnologia, ela está aí para nos ajudar mas, por ignorância e inconsciência, acabamos por nos tornar prisioneiros, de mensagens das quais ela é, simplesmente, portadora. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Querido amigo JH,
      Fiquei pensando sobre suas colocações quanto à inconsciência e ignorância como males do nosso tempo. De fato parece haver um abismo entre a inteligência artificial e a inteligência natural, humana, especialmente em nosso país com sua estrutura educacional aparentemente cada vez pior. É um contraste impressionante e imagino um sem número de consequências…
      O que podemos fazer é seguir buscando aprendizados, como é o seu caso, e aguçando nossa capacidade de análise crítica da realidade.
      Obrigado por seu precioso comentário, meu amigo.
      Grande abraço à você, Sueli, Júnior, Luizinho e a graciosa Catarina!

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  2. Querido Cau, no corre-corre dos nossos dias não percebemos a sutileza da água surgindo filtrada e nos inquietamos com ela demorar a encher os copos. Agradeço pela crônica que desperta para tantas reflexões. Estou ainda impactada desde que soube da Inteligência Artificial no WhatsApp, sem ao menos os usuários serem avisados e, o pior sem opção de recusa. Vida com ou sem filtro?

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    1. Beth,
      O corre-corre está por todo o lado. Ninguém escapa. Mas fazer paradas e refletir um pouco sobre a nossa vida só faz bem. Fico contente que tenha despertado em você algumas reflexões. Quanto a sua pergunta no final, infelizmente não há dúvida: sem filtro…
      Uma ótima semana, minha irmã, com calma e pausa!
      Beijos

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  3. Querido Amigo Antonio Carlos!

    Mais uma bela crônica, esta bem atual e com um chamado para seus leitores.

    Pura verdade que a sociedade mudou radicalmente e influenciada pela

    tecnologia das redes sociais comete erros absurdos, mentiras se tornam

    verdades, o ódio ultrapassa o diálogo, a educação e o respeito

    desapareceram.

    Registro ou seria registo? o inicio da crônica marcada pela trilha sonora do

    barulho da água e pela explicação do técnico,, RI MUITO me vendo chegando

    de uma corrida com a boca seca a esperar pacientemente o copo encher.

    Parabéns queridão.

    DEUS TE ABENÇOE

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    1. Meu querido amigo Luiz Carlos,
      Fico contente que tenha gostado da crônica e agradeço seus comentários e observações.
      Como eu não pratico corrida não tenho que passar pelo episódio da boca seca… hahahaha
      Obrigado, queridão!
      Beijos em todos!

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  4. Este rol de situações fazem um pouco parte dos nossos dias. E isso é triste, para não dizer pior. Está na mão dos mais resistentes e atentos – provavelmente os da nossa geração – a alertar, e a trocar a indiferença por atenção e gentileza. Em actos e palavras também.
    Esta crónica é um excelente alerta!

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    1. Dulce,
      Agradeço seu comentário.
      Parece que compartilhamos a mesma preocupação em relação ao mundo digital e à aceleração da vida.
      É desafiante para todos nós e estarmos conscientes pode fazer diferença e nos trazer um pouco mais de paz e bons sentimentos.
      Desejo um ótimo feriado!

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  5. Amei a leitura, tenho 28 anos, e nao estou nada contente com o que vem acontecendo com essa nova geração.

    Saudades de quando tudo era mais “real”.

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    1. Monise,
      Aos 28 anos já ter consciência dos exageros a que o mundo digital nos está levando, é um grande ganho.
      Vamos optar pelo “real” e usar com inteligência e comedimento o “virtual”. E não o contrário…
      Agradeço seu comentário e fico contente que tenha apreciado a leitura.
      Desejo um ótimo final de semana!

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  6. Querido Cacau,Gostei muito desse tema que nos oferece uma tomada de consciência do uso desmedido das redes sociais.Que mais vozes se levantem nesse sentido.Que força é essa que obriga o isolamento, o distanciamento, o desprezo : namorados que não se comunicam, pais que ignoram os filhos, famílias isoladas …todos imersos no mundo virtual, ensismemados, ausentes.Que mistério é esse que faz com que uma pessoa de 10.000 seguidores seja solitária e deprimida?Tenho gratas recordações de amizades iniciadas dentro do ônibus ou mesmo no aeroporto, quando se conversava tanto que, no momento da despedida, havia abraços e troca de endereço.Hoje somos invisíveis: todos estão seduzidos pelas redes sociais .Sinto que sou corajosa ( e não desatualizada, como tentam me convencer) por não ceder a todos os atrativos da tecnologia..Quero mesmo é repetir o caloroso momento que os Sarmento vivenciaram na última semana, quando, numa mesa de restaurante, quase 20 pessoas se abraçavam, brindavam, davam boas risadas e relembravam fatos da vida,, todos unidos por uma história de amor. Celular??? Só para tirar fotos.Queria muito que você também tivesse participado, primo, junto com sua familia bonita.Grande abraço a todos.

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    1. Querida Gena,
      Eu só lamento não ter sido possível estar presente neste encontro. Como eu gostaria…
      Nada pode substituir o contato pessoal, os abraços e as deliciosas conversas.
      Obrigado por seus comentários, minha querida prima.
      Fique com Deus e uma ótima semana!

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  7. Primo, a crônica nos retrata a pura vida de hoje. Mas, eu tento fazer a diferença quando estou com as pessoas…

    Na medida do possível, tento co versar pessoalmente, ligar…mas encontro resistências.

    O importante é não seguirmos os parâmetros atuais, na medida do possível. Bjs

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