RARIDADE

Recentemente, precisei utilizar com muita frequência o serviço de carros de aplicativo. Durante cerca de um mês no Rio de Janeiro, todos os meus deslocamentos foram feitos usando esta modalidade. Não tive foco em aspectos do serviço, pois meu interesse maior é sempre o ser humano, os comportamentos, as opiniões e as reações.

Em todas as viagens, infalivelmente, entabulei uma conversa com o motorista, facilitada pelo fato de saber de antemão seu nome, o que vem a ser o melhor quebra gelo possível. Sim leitor, lembrei-me da  famosa proibição em veículos coletivos que recomenda “não fale com o motorista”, mas não consegui me conter.

A cada viagem, lá ia eu, tal qual um pescador que joga a isca e fica esperando um peixe morder. Na maior parte dos casos não peguei peixes grandes e nem poderia ser diferente, afinal era uma conversa entre estranhos e por tempo limitado. Entretanto, pude notar que de modo geral, os motoristas de ambos os sexos, não estavam satisfeitos. Tinham reclamações de todos os tipos e quando entravam neste assunto era difícil sair. Ficavam a citar intermináveis exemplos e casos para legitimar sua insatisfação.

Até que, certo dia, a pescaria foi diferente.

Ingressei em um carro mais limpo e bem tratado que todos os que até então havia utilizado. Logo que embarquei com minha esposa, a motorista chamada Helen, saudou-nos com um sorriso, um breve cumprimento, confirmou o destino, perguntou se estava tudo bem e se podia seguir viagem. Uma gentileza e cordialidade que ainda não havíamos experimentado. A mesma cidade, o mesmo contexto, o mesmo aplicativo, o mesmo preço e tudo tão diferente.

Aguardei um breve tempo e cedi à minha própria curiosidade:

— Helen, você está fazendo este trabalho há muito tempo?

 — Faz três anos.

— Bastante tempo. E de modo geral você está satisfeita?

— Sim. Está tudo muito bem. Comprei este carro e já recuperei o investimento. Em mais algum tempo vou migrar para uma categoria acima da minha e espero resultados ainda melhores.

— Interessante. Você parece ser uma exceção. Só encontrei insatisfação até agora.

— Sim. Faço parte de uma minoria.

Pensei na pescaria:

— E a que você atribui ser um peixe fora d’água?

­— Eu vou contar a vocês: quando escolhi seguir este caminho sabia que precisava me preparar. Não conhecia o trabalho e queria dar passos firmes, não apenas fazer uma tentativa. Disse a mim mesma: se é para fazer isto, vou fazer direito. Então busquei um curso preparatório e só iniciei a atividade após concluir esta etapa. Aprendi muito ali com pessoas de vasta experiência e que foram bem-sucedidas neste trabalho.

— Nem sabia que havia curso disponível para carros de aplicativo.

— Tem sim. E depois do curso, formamos um grupo de estudos para troca de experiências. Diariamente me atualizo e também contribuo com os colegas. É muito bom e estamos sempre buscando melhorar.

A esta altura já estávamos a chegar no destino.

— Perfeito, Helen. Parabéns pela forma como conduziu o seu trabalho. Ninguém precisa ser perfeito, mas todo mundo precisa de consistência. Desejo muito sucesso e que seus planos se realizem.

Ela sorriu orgulhosa e seguiu seu próspero caminho.

Fiquei pensando na possível relação entre consistência e satisfação. É possível que, em muitos casos, sejam mesmo companheiras inseparáveis. Da mesma forma que seus antônimos, inconsistência e insatisfação…

Passados dois dias fui ao centro do Rio de Janeiro para trocar uma peça dos meus óculos, o que foi feito bem mais rápido do que minha expectativa. Com uma folga de tempo, fui dar uma volta pelas redondezas, pois era a área próxima de meu antigo escritório. Quis recordar minhas andanças nos horários de almoço, os locais que costumava visitar e rever ambientes de boas recordações.

Em determinado momento passei em frente a um prédio que conhecia muito bem. Ali, no último pavimento ficava um restaurante que eu frequentava com muita assiduidade. Sem diminuir o passo, meio de relance, vi na portaria um rosto que me pareceu conhecido. Parei e voltei. Ao retornar à entrada principal, o porteiro levantou-se, me olhou sorrindo e disse:

— Sr. Antonio! Há quanto tempo. Como vai o senhor?

Fiquei surpreso. Sua voz fez aflorar na minha memória a exata lembrança da pessoa:

— Carlos! Não acredito. Você ainda trabalha aqui. Que prazer te encontrar.

A cada vez que ia no tal restaurante eu conversava com este rapaz. Na ocasião, devido ao intenso movimento de pessoas no horário de almoço, havia um elevador que funcionava exclusivamente para atender ao restaurante e este rapaz era o ascensorista: organizava o ingresso das pessoas que formavam uma longa fila, observando o limite de ocupação e, através do acionamento de botões, assegurava que o elevador não parasse em nenhum outro andar.

Era neste trajeto, de barriga vazia para cima e de barriga cheia para baixo, que nossas conversas se desenrolavam. Aos poucos ganhamos intimidade e ele já mostrava retratos dos filhos e comentava aspectos pessoais de sua vida. Fizemos uma amizade improvável e agradável.

O Carlos contou-me então que o prédio ainda passava por grave crise, iniciada na pandemia de Covid e até então não resolvida. Ele era o único funcionário da empresa!

— Foram demitindo um por um. No dia em que me chamaram, fui preparado e já fazendo as contas de quanto deveria receber na rescisão do contrato de trabalho. Para minha surpresa, o dono da empresa disse que contava comigo e me ofereceu uma promoção, aumentando as minhas responsabilidades. Aceitei na hora, claro. E aqui estou até hoje. Já são 24 anos de empresa.

Lembrei da Helen. Ali estava outra pessoa consistente. Somente com um comportamento firme, estável e coerente se constrói confiança. E foi isso que o Carlos fez.

Talvez seja mais comum nos depararmos com muita aparência e pouca consistência. Esta última requer mais esforço e determinação, é caminho mais longo, que busca preparo, quer crescimento e não se deixa seduzir por atalhos de oportunismos ou acomodações. Mas, sem sombra de dúvida, pode fazer a vida valer a pena.

Concluo com uma frase do filósofo inglês Jeremy Bentham:

A mais rara de todas as qualidades humanas é a consistência.

Antonio Carlos Sarmento

17 comentários em “RARIDADE”

  1. Quando o querer é do coração e não apenas mais um objectivo racional, tudo fica humanizado e consistente. São projectos associados à vontade, que criam “raizes” e que a seu tempo darão verdadeiros frutos.

    Mais uma excelente crónica, como nos foi habituando ao longo do tempo. Bom domingo, António!

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  2. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Que alegria voltar a receber sua crônica. O fato é que, quem sabe o que quer, sempre alcança seu objetivo. Como de costume, além de meu apreço pelos dois personagens citados na coluna de hoje, a Helen e o Carlos, não posso deixar de registrar uma frase que me encantou: “A esta altura já estávamos a chegar no destino.” Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao príncipe Guilherme e demais familiares.

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    1. JH,
      Você percebeu que começo a adquirir um pouco do estilo verdadeiramente português de escrever, principalmente em aspectos que aprecio.
      Muitíssimo obrigado por comentar, meu querido amigo!!!
      Abraços à você, Sueli, Júnior, Luizinho e à Rainha Catarina!

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  3. ”…já estamos a chegar ao destino…” bem “lusitano” .

    Obrigado por mais essa bela crônica e lhe digo que talvez voce seja o unico amigo, que vive no exterior, que consegue tratar o assunto do centro do Rio sem uma imensa dose de saudosismo e pena daquela tao outrora bonita regiao.

    boa semana!

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  4. No quadro O chefe no dominical programa Fantástico um funcionário que treinava o chefe pensando ser um novo funcionário foi chamado no escritório e se revelou parabenizando pelo carinho e dedicação ao treinar o “novo funcionario” . O que mais marcou o chefe foi quando recebeu a seguinte orientação: tudo quanto for fazer faca5 como se fosse para Deus. Isso valeu uma promoção e reconhecimento da empresa.

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  5. Querido Cacau,Acredito que essa mensagem vá encontra- lo entre bolos, docinhos e ricos gestos de carinho, em meio ao aniversário de TatiIsso porque, nessa familia, o amor é compartilhado com excelência .Quando li seu texto, três imagens me vieram à mente: a primeira foi o servir. Oferecer um serviço de qualidade é proporcionar a outrem satisfação e bem estar.A segunda foi a apresentação do caráter e dos valores que compõem a essência do trabalhador: o desempenho revela quem você é.A terceira foi o comprometimento com a ordem do próprio Deus:“Tudo quanto te vier às mãos para fazer, faze- o conforme a tua força.”Plagiando um poeta, pensemos em autografar nossas obras com excelência.Sobretudo em família.

    Beijos em todos dessa família querida

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    1. Querida Gena,
      Agradeço muito seu comentário, cheio de ricas observações.
      De fato, me pegou entre comemorações, mas sem nunca me afastar dos escritos e de meus leitores.
      Desejo um maravilhoso domingo à você e seus queridos!
      Fique com Deus!

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