DE JOELHOS

Há uns três meses acordei no meio da noite com uma dor forte no joelho esquerdo. Não caí, não bati, não torci, mas a dor estava ali.

Busquei mudar de posição, esticar, encolher, sem sucesso. Em vez de dormir, a dor me permitiu apenas tirar cochilos sucessivos e breves. Dormir assim, de forma alguma, se compara ao sono contínuo e profundo.

Entendi então o sentido literal da palavra “despertador”…

Pela manhã, o joelho ainda doía. Levantei-me mancando e telefonei para marcar uma consulta com o ortopedista, o que ocorreu apenas após três dias capengando no caminhar e três noites fritando na cama.

Cheguei à consulta com a dor no auge.

O médico era um sujeito agradável e antes de examinar-me trocamos gracejos, falamos de futebol e rimos juntos. Entretanto, na hora do exame físico, o simpático virou um verdugo. Sem aviso prévio, fez um movimento brusco de torção na minha perna que provocou uma dor indizível. Dei um pulo e um grito. O torturador pediu desculpas e justificou:

— É um teste que eu precisava fazer.

— O senhor estava indo tão bem. Agora estragou tudo, acabou a empatia — brinquei.

Ele sorriu e então pediu dois exames para verificar exatamente a situação e fazer um diagnóstico preciso. Ora, pensei, se iria fazer exames para que o teste tão doloroso? Deixa para lá…

Dias depois retornei com o resultado dos exames e, com preocupação, ouvi o que não queria:

— É cirúrgico. Não posso prometer que assim vai se livrar da dor, mas é a melhor tentativa que podemos fazer. Muitas vezes dá certo. A decisão é sua.

Covardemente, respondi:

— Vou pensar.

— Está bem. Por enquanto vou receitar um remédio para tentar aliviar um pouco esta dor.

Fui para casa com a dor no joelho e também uma dor de cabeça, ou seja, cheguei com uma e saí com duas… Tomei o tal remédio e, mal dormido, resolvi deitar um pouco e ler um livro novo que me aguardava desde a véspera.

O escritor é um jornalista americano que aprecio e sua obra havia sido recomendada. Logo após as primeiras páginas me deparei com o inacreditável  trecho que a seguir reproduzo:

O que acontecera fora o seguinte:

Após uma pequena cirurgia no joelho, minha dor, em vez de diminuir com o passar das semanas, fora ficando pior, superando em muito o prolongado desconforto que me levara a decidir fazer a cirurgia.

Quando consultei o jovem cirurgião sobre a piora de meu estado, ele respondeu simplesmente: “Isso acontece às vezes” e, dizendo ter me avisado antes que a operação podia não dar certo, me dispensou como seu paciente. Fiquei com apenas alguns comprimidos para mitigar meu espanto e aguentar a dor.

Esse surpreendente resultado de um breve caso ambulatorial deixaria qualquer um furioso e desanimado: em meu caso o que aconteceu foi pior. (livro Operação Skylab, de Philip Roth)

Mergulhei inteiramente no livro, até o fim do relato.

Vou poupar o leitor de mais detalhes, porém devo contar que nas páginas seguintes o escritor narra outras desastrosas consequências. Em busca de alívio para a dor no joelho e as consequentes noites insones, acabou fazendo uso de um comprimido para dormir, o qual teve a venda proibida algum tempo depois.

O resultado foi que sua mente desintegrou: passou a comer mal, ter alucinações, pensamentos suicidas, chorar compulsivamente sem motivo e não dormir a noite toda. Isso durou quase 90 dias, até que descobrisse a razão de tantos transtornos. Somou-se mais 10 dias de crise de abstinência e nosso escritor alcançou uma centena de dias de sofrimento por uma simples dor no joelho.

Claro que segui na leitura interessadíssimo. Só depois de narrada esta epopeia, o autor entra na história anunciada pelo título ao livro. Porém, neste ponto, parei a leitura.

Claro, nada mais poderia me interessar naquele momento.

Na situação em que me encontrava, pegar para ler um livro que tem “operação” no título foi um risco… Mas não poderia ter sido mais oportuno! Eu estava saciado e impressionado por este texto ter chegado a mim neste exato momento.

Já sabia de muitos aspectos positivos do hábito de ler e muitas vezes em minhas crônicas os exalto, mas desta vez foi um abuso. Algo estatisticamente quase impossível, ocorreu.

Enfim, não precisei decidir sobre a cirurgia. A literatura decidiu por mim.

Lembrei de uma frase de Charles Bukowski:

Sem a literatura, a vida é um inferno.

Não sei se ele tem razão, mas certamente sem ler este livro, eu poderia estar adentrando meus 100 dias de inferno.

Optei por consultar uma Fisiatra que me indicou o caminho da fisioterapia e fui melhorando a cada sessão. Após algumas semanas, a dor já era insignificante e a médica me deu alta, tecendo algumas recomendações simples a serem seguidas daí para a frente.

Retomei o sono, o andar e a vida normal.

Obrigado Philip Roth!

Não desejo cansar o leitor com louvores à literatura, mas entristece-me ver como ela vai declinando, perdendo espaço, sendo relegada nestes tempos de pressa e principalmente distrações virtuais. Lamentavelmente estamos trocando profundidade por futilidade.

Diz Goethe:

Quem tem bastante em seu interior, pouco precisa de fora.

Isto me faz pensar que a literatura seria uma das formas mais completas de bem rechear o nosso interior. Há quem ache que ler é mero passatempo, grande engano.

Acabo de escrever a palavra engano e uma conexão aconteceu em minha mente.

Preciso contar ao leitor que, às vezes, alguma frase me ocorre sem mais nem menos, fora do tempo, fora do contexto. Estou num restaurante, ou dirigindo, ou caminhando na rua e até dormindo, quando ela aparece na minha cabeça, vindo sei lá de onde. Se achar que vale a pena, eu anoto para não perder a ideia, seja num guardanapo, no celular ou no bloquinho da mesa de cabeceira. Tem que ser rápido, pois ideias fogem entre os dedos como peixes ensaboados.

Depois preparo a dita cuja, elaboro um pouco mais, tiro as escamas, registro-a no lugar certo e deixo pronta, na expectativa de que possa fazer sentido em alguma crônica. Ter um banco de anotações é útil para quem escreve.

A frase fica ali, como um jogador num banco de reservas, aguardando a hora de entrar em campo.

Atenção frase, prepare-se! Falamos de literatura e, após uma longa espera chegou a sua hora. Peço-lhe, de joelhos, que entre nesta crônica e cumpra o seu papel de fazer um encerramento adequado.

Se for lida mais de uma vez e deixar o leitor pensativo, valeu a pena você ter nascido.

Afinal, uma crônica precisa sobreviver ao seu final, deixando um rastro de reflexão:

O objetivo da literatura é mais o humano que o lúdico.

 

Antonio Carlos Sarmento

18 comentários em “DE JOELHOS”

  1. bom domingo meu amigo. De tudo que voce tao bem escreve o que tem me feito refletir é que cada vez se le menos e isso é catastrófico! Meu filho diz: pai entenda, o mundo de hoje é superficial e ligeiro. Eu digo: que pena… Mas fazer o que? Continuar lendo.

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    1. Amigo Luigi,
      É mesmo lamentável. Permaneço na esperança de que em algum momento esta tendência seja revertida: acredito na humanidade, apesar dos pesares…
      Um grande abraço e uma ótima semana!
      E espero que não desista da vinda ao Porto!

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  2. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. A cada crônica, mais alegria por ser um dos seus leitores/Amigos esta crônica de hoje, um pouco maior que de costume, traz, como já é hábito, vários aspectos dignos de registros. Me detenho nos trechos: Acabo de escrever a palavra engano e uma conexão aconteceu em minha mente.

    Preciso contar ao leitor que, às vezes, alguma frase me ocorre sem mais nem menos, fora do tempo, fora do contexto. Estou num restaurante, ou dirigindo, ou caminhando na rua e até dormindo, quando ela aparece na minha cabeça, vindo sei lá de onde. Se achar que vale a pena, eu anoto para não perder a ideia, seja num guardanapo, no celular ou no bloquinho da mesa de cabeceira. Tem que ser rápido, pois ideias fogem entre os dedos como peixes ensaboados.

    Esse seu senso de observação é algo notável, importantíssimo mesmo. Quantas vezes surgem em nossa mente palavras, como relatado ou, conceitos que tocam a nossa sensibilidade e, por não estarmos atentos ou mesmo conscientes do que vivemos, deixamos passar e perdemos uma grande oportunidade para transcender nosso conhecimento.

    Não canso de parabenizá-lo, não só pela sua verve, como já disse em alguma ocasião passada, mas, sobretudo, pela oportunidade de, ao ler suas crônicas, recordar o processo consciente de evolução que tenho me esforçado em realizar.

    Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean e ao Príncipe Guilherme e demais familiares.

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    1. Grande amigo Jorge Haroldo,
      Da mesma forma que aprecia minhas crônicas, aprecio seus comentários. É interessante a correlação que sempre faz com a Logosofia: isso nos enriquece!
      Também percebo que cada vez nos identificamos mais nas ideias, nos comportamentos e na maneira de ser: é muita afinidade!!!
      Uma ótima semana por aí, meu amigo. Lembranças à Sueli, Luizinho, Junior e a Rainha Catarina!

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  3. Ainda bem que a resposta surgiu…e em prosa!😉 Uma coincidência muito curiosa… ou que sexto sentido bem alerta.

    É sempre bom tentar alternativas a uma operação, pois muitas vezes resultam. O seu caso bem mostra isso.

    Boa partilha e desejo uma boa semana!

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    1. Dulce,
      A leitura foi a melhor orientação médica que eu poderia ter. Sabe que, recebi de amigos e leitores, relatos de város casos mal sucedidos em cirurgia de joelhos que me fazem crer ser isto muito comum. Felizmente a literatura me salvou!
      Muito obrigado por comentar e desejo a você e sua família uma feliz semana, regada de paz e harmonia!

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  4. Meu caro amigo, espero que a dor tenha ficado para trás e graças às palavras não foi necessária a cirurgia. O autor do livro foi cirúrgico na sua decisão. Muito bom ler suas crônicas, traz os amigos para perto. Grande abraço! Saúde!!

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    1. Cara amiga Yara,
      É sempre um prazer receber seu comentário. Também sinto esta “aproximação” com os amigos através das crônicas e desta interação.
      Meu joelho está bem, após 25 sessões de fisioterapia. A cirurgia foi descartada pela literatura!
      Grande abraço Yara, e fique em paz junto à sua família e amigos!

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  5. Meu amigo

    De joelhos me levou ao passado. Passei por momento muito semelhante com um médico doido  para me passar o bisturi.

    Consultando outro especialista me prescreveu muita fisioterapia e voltei a ser feliz. Sou então testemunha de sua dor meu amigo. Agora, cabe ainda registrar que pela sua crônica quase senti meu joelho se manifestar novamente! Ah! Ah! Ah!

    Rodolpho Britto

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    1. Grande Rodolpho,
      Deus me livre a crônica fazer seu joelho doer… hahaha
      Seu comentário chegou sem problema, mas se não houvesse assinado seria de difícil identificação.
      Obrigado pela ajuda: vou orientar meus leitores e passar a usar esta configuração sem necessidade de e-mail, mas com identificação ao final do comentário.
      Grande abraço neste joelho saudável e indolor!!!

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    1. Queridão,
      Este foi o comentário que recebi.
      Acho que não chegou o que você pretendia… Mas agora realizei uma nova configuração de “comentários” que deve facilitar. Vamos ver e testar na próxima crônica, ok?
      Abração, meu grande amigo!

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  6. Meu querido amigo, boa noite!

    Feliz com o retorno da energia em Portugal e consequentemente das rotinas diárias. Tenho a impressão que depois da Internet, das redes sociais e das TI´s, nossa vida tomou outro rumo, com o pior: não temos mais domínio.

    Mas, vamos a coisas mais agradáveis, sua ótima e didática Crônica “De Joelhos”.

    No meu entendimento, ela nos ensina a pelo menos pensar nas solicitações e avaliações dos médicos atuais, seu exemplo, que acredito guiado por uma luz divina, evitou talvez um problema mais sério no futuro.

    Quando a dica divina te disse: meu filho vá lá e leia aquele livro novo, que você encontrará “a solução” do seu joelho.

    Parabéns pela cronica e pela dica.,

    ET: cuidado com o excesso de agachamentos.

    Um forte e fraterno abraço

    Saudades

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    1. Meu querido amigo Luiz Carlos,
      Feliz de receber seu comentário.
      De fato parece ter a mão divina no que aconteceu. O médico era convincente, inspirava confiança e fiquei com tendência a aceitar a cirurgia. Mas o livro ganhou a parada! Quando acabei de ler já não tinha a menor dúvida de que teria que buscar outro caminho. Felizmente no final tudo deu certo!
      Queridão, não se preocupe com os agachamentos: já moderei…
      Um afetuoso abraço e um maravilhoso final de semana para você, Rosa e toda esta amada família!

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  7. Saudades! Estou no Rio passando uns dias com 5 filhos, 7 netos e 1 bisneto. Faltam os amigos: a maioria no céu e um em Portugal. SAUDADES.

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    1. Saudades também, Paulino! Eu já fui na Ilha Bela, agora é sua vez de vir aqui: mas não vai me trazer tantos filhos, netos e bisnetos… hahahahaha
      Você é um privilegiado de ter uma família tão grande!!!!
      Receba o meu afetuoso abraço, amigo!

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