DEU ÁGUA

Quando comecei a escrever crônicas, pensei que seria uma atividade mais voltada à introspecção, algo mais interior, que exige foco e concentração, como um sistema de produção fechado: a mente elabora e os dedos traduzem os pensamentos em palavras. Em parte continuo achando isso, tanto que preciso de silêncio e solidão para escrever. Quando a casa está vazia, como agora, é o ideal.

Devo dizer ao caro leitor que escrever se tornou para mim uma forma de liberdade até então nunca experimentada. Sim, escrevo o que desejo, sobre o tema que quiser, formulo as frases à vontade e deixo a minha pessoa interior falar o quanto queira e da forma que entender como a melhor. É uma sensação muito boa!

Não posso negar que depois faço um filtro, aparo arestas, refino ideias e, claro, modero revelações e outros excessos. Afinal, não é um diário pessoal e secreto.

Entretanto, aos poucos fui percebendo que uma coisa é escrever e outra bem diferente é publicar. Em marketing, há a ideia de que o problema não é produzir, mas vender. Faço um certo paralelo disto com a escrita: se produzir só se justifica pela venda, o escrever também só ganha significado quando se torna público.

Acontece que nem sempre é confortável deixar a segurança da solidão e mergulhar na incerteza de revelar seus pensamentos, expor-se ao público e arriscar-se à críticas e desaprovações. Se escrever exige introversão, publicar requer extroversão.

Ou seja, é como na vida em geral. Precisamos ser introvertidos ou extrovertidos mais em função das circunstâncias do que pelo nosso temperamento.

Deixo por aqui as reflexões e convido o caro leitor a conhecer minha última colheita de catador e contador de histórias.

Eu precisava comprar carne e cheguei ao açougue, que aqui em Portugal denominam talho. Havia uma pessoa sendo atendida e precisei aguardar um pouco. O tal cliente conversava em alto e bom som com o talhante, que se dedicava a desossar uma perna de peru. O tipo parecia falar apenas para ocupar o tempo de espera:

— Isso é coisa de políticos. São todos iguais, nenhum presta. Muda o partido, mas são todos farinha do mesmo saco.

O talhante, talvez desejando abreviar a conversa politizada, que possivelmente já vinha de comentários anteriores, levantou brevemente os olhos e redirecionou o assunto para o futebol:

— Deixa esse pessoal para lá. E o nosso time, hein? Como foi o jogo ontem?

— Perdemos de novo. Já não tenho mais gosto. Vou parar de acompanhar. Só tem jogador ruim, não salva um. Mas a culpa é do técnico. Ele é péssimo!

— Aí cabe aos dirigentes tomarem uma providência. Não se pode deixar o time assim.

— Piorou. Os dirigentes não valem nada. Um bando de corruptos, como é por todo o lado. Só querem saber do dinheiro de patrocínio das empresas. Aliás, são todas empresas mercenárias. É uma tristeza!

Neste ponto da conversa, tão negativa, pensei em me afastar antes que começasse a ter pensamentos suicidas…

Felizmente, logo a seguir o osso foi para o lixo, o peru para a embalagem e o sujeito para casa.

Fiquei ruminando como deve ser difícil conversar com pessoas como esta, que tudo generalizam, que simplificam as análises, reduzindo-as a um denominador comum. Estão convencidos de uma igualdade que inexiste na natureza humana.

Ocorreu-me que é um caminho fácil. Não exige estar a par da situação, dispensa conhecer nomes, fatos e dados. Sim, o manto da generalização excessiva cobre tudo. Sequer é preciso memória e inteligência. Um único discurso serve para qualquer situação, qualquer área da atividade humana. É como um trator que passa por cima de ervas daninhas e canteiro de flores, sem fazer distinção, nivelando tudo.

Com meu pacote de carne embaixo do braço, resolvi que passaria a prestar mais atenção nestes excessos de generalização, tanto para não as fazer em demasia, como para observar os que as fazem como hábito. Aprendi no talho que não há o que desossar quando tudo é osso.

De fato, a generalização pode ser o cemitério da argumentação.

Sigamos com o passeio. E vejamos o grande contraste.

Dias depois, fui a um edifício que possuía garagens no subsolo, onde estacionei meu carro. Elevadores demorados pareciam não querer se rebaixar aos andares inferiores, como se temessem os subterrâneos. Em monótona espera, emparedado em uma espécie de “solitária”, sem sinal de celular, cada minuto parecia dez.

Quando enfim fui libertado, cumpri o compromisso agendado e chegou a hora de novamente aguardar os paquidérmicos elevadores. Um deles parou e abriu a porta. Sem saber se iria subir ou descer, ingressei nele determinado a mudar de ambiente. Achei melhor manter o marasmo, mas incorporar o movimento.

Havia apenas um passageiro. Cumprimentei-o com um bom dia e ele retribuiu.

Iniciado o deslocamento vi que o elevador iria subir e estava marcado o último andar, ou seja, imaginei que seria um passeio longo e desinteressante, mas mesmo assim, melhor do que ficar naquele corredor onde nada acontecia.

Meu companheiro de viagem era um senhor de uns 50 anos, jovem ainda para quem, como eu, tem 71 anos. Viver é observar e além do paletó e gravata, notei que ele portava na mão direita uma garrafinha de água, daquelas de plástico, geladinha e gotejante.

Ora, ali estava o mote de uma conversa que, com um leve sorriso, iniciei assim:

— Esta garrafinha de água até me deu sede.

— É sua! — disse ele prontamente, esticando o braço em minha direção e ofertando gentilmente a água mineral.

Senti-me constrangido. Minha frase havia sido apenas para quebrar o gelo e não para tomar água gelada.

Meu parceiro português havia se excedido em generosidade. Recusei, ainda sorrindo:

— Não, por favor. Eu estava brincando, ou estava a brincar, como vocês diriam aqui.

Ele não se deu por vencido. Aproximou-se mais de mim e insistiu:

— Pode ficar com ela. Eu comprei, mas ainda não abri. Não tenho sede agora e terei prazer em oferecer-lhe esta água. Tome, por favor.

— Muito obrigado. O senhor é muito amável, mas não precisa. Estou indo para casa agora e a sede nem é tanta. Fique com a sua garrafinha para tomar depois.

Ele aproximou-se ainda mais, colocou uma mão no meu ombro com amabilidade e foi definitivo:

— Olhe, Jesus disse: dai água a quem tem sede! — e deu uma risada contagiante.

Não havia mais como recusar. Aquiesci e peguei a água ofertada, enquanto o elevador já chegava ao destino do dono daquele coração bondoso.

A esta altura eu já lamentava ter que me despedir daquela pessoa.

Para agradecer, cheguei ainda mais perto e espontaneamente nos abraçamos. Parece que ambos perceberam que um aperto de mão seria pouco para aquele momento. Foi um abraço lateral e ele, num golpe final de ternura, afagou minha cabeça contra seu ombro.

Foram segundos que eu gostaria que tivessem se prolongado. Eu nunca havia experimentado um momento assim perante um completo estranho.

Tive a nítida sensação de que a fraternidade humana existe de verdade, é real na vida de todos nós e está por todo o lado. Eu já sabia disso, mas uma coisa é saber, outra é experimentar.

Enfim, foi a melhor viagem de elevador que já fiz na minha vida.

O que me faz crer que um outro português, o poeta Fernando Pessoa, tinha razão quando disse:

O valor das coisas não está no tempo que duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.

 

Antonio Carlos Sarmento

NOTA AOS LEITORES

Prezados,

Muitos de vocês têm encontrado dificuldades para comentar as crônicas. Alterei as configurações e agora podem comentar sem colocar dados, nem mesmo e-mail. Basta escrever e para enviar, clicar no botão “Comentário” ao final, à direita.

Peço que experimentem e vejam se o processo está mais simples e rápido pois tenho muito interesse em receber as opiniões dos meus caros leitores.

Apenas peço que, ao fim do comentário, coloquem seus nomes, para que eu possa identificar, ok?

Muitíssimo obrigado!

Antonio Carlos Sarmento

24 comentários em “DEU ÁGUA”

  1. Mais uma bela crônica, e nesse caso estou generalizando, todas são muito boas.
    Mas, voltando a crônica. O talho, o talheiro e o papo… Quem generaliza distorce essa é a conclusão, além de ser muito difícil conversar ou escutar quem tudo generaliza, tipo : ” Ninguém presta”, mas ninguém é quem?… Muito chato!…..e o restante da crônica também é uma delícia, como a água da garrafa e o significativo abraço ao final…os momentos inesquecíveis duram para sempre, assim como as verdadeiras amizades que são eternas, mesmo com aqueles que partiram esses momentos ficam eternizados em nossa memória, e devem sempre nos trazer alegria, acredito que a saudade seja uma alegria, desde que você foque nos melhores momentos…tenho muitas saudades da sua presença e da Sonia, porém vocês estão sempre presentes com boas lembranças. É eterno! ….hoje estiquei demais, é a saudade! Um grande abraço. CHICO

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  2. Caríssimo Amigo Sarmento, muito bom dia. Acordei, hoje, pensando se você nos brindaria com a sua crônica na próxima semana. E, para surpresa de ninguém, você se antecipa e nos brinda com uma semana de antecedência. Muitíssimo agradecido, pela crônica e pela publicação antecipada. Mais uma brilhante constatação: Aprendi no talho que não há o que desossar quando tudo é osso. Mas, você não ficou por e, mais uma vez, nos deu uma prova do ser sensível que é e o que provoca com esse comportamento, no diálogo generoso, para ambos, na curta viagem de elevador. Eu poderia listar algumas frases costumeiras, como por exemplo: Colhe-se o que se planta. Gentileza gera gentileza. Mas, a meu juízo, o seu comportamento não se trata de algo tão raso. A sua sensibilidade, sempre pronta a captar a sensibilidade de outrem, é a responsável por esta vivência relatada. Só posso dizer: Parabéns!!! Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Príncipe Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu querido amigo JH,
      Envolvido até a alma com as Bodas de Rubi, atrasei-me na resposta aos meus leitores, dos quais você é dos mais fiéis. Peço desculpas…
      Amigo, a frase que você gostou sobre o desossar também me agradou quando surgiu em minha mente e assim coloquei-a na crônica. A Tati também notou a frase e a destacou. Agradeço muito seus comentários, que tanto aprecio.
      Desejo à você, Sueli, Júnior, Luizinho e à rainha Catarina um maravilhoso final de semana!
      Grande e afetuoso abraço, meu querido amigoJH!

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  3. Neste mundo tão cruel, ainda bem que existem pessoas amáveis e generosas.
    Saudações acolhedoras deste seu amigo e admirador,
    Carlos Vieira Reis.

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    1. Amigo Carlos,
      Não sei se vai receber esta minha resposta já que dispensamos a identificação por e-mail. Fica aqui o meu agradecimento pelo seu generoso comentário e o desejo de que você e sua família estejam muito bem.
      Receba o meu afetuoso abraço!

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  4. caro amigo, sempre leio suas crônicas com atenção. A de hoje foi das mais profundas para transformar meu domingo num dia mais especial. Sinta, da minha parte , um abraço tao afetuoso quanto as suas palavras me abraçaram. Veja, minha agenda para 2026 contempla uma ida a Lourdes (Fr) via Portugal e farei questão de encontra-lo e a suacesposa

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    1. Imagino que este comentário seja do meu caro amigo Luigi.
      Assim sendo, já aguardo vocês para um encontro aqui no Porto. Já estivemos em Lourdes e vale a viagem: um impacto na nossa espiritualidade!
      Obrigado pela gentileza de seu comentário e deixo um forte braço!

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  5. Diante da grande movimentação que está havendo em entender sobre comportamento humano, me peguei sendo levada por ela, e com os achados que consegui tive a mesma percepção sobre essa questão de generalização das pessoas. Um ponto positivo nisso é que ao sabermos dos motivos das pessoas agirem assim, podemos observar de longe, entender e deixar de lado sem absorver tanto. Sou nova por aqui e estou adorando conhecer. Obrigada por compartilhar. Me chamo Lene, sou de Boa Vista/RR.

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  6. Querido Irmão, que reação espontânea e feliz deste companheiro de viagem curta no elevador. Sua provocação gerou reação surpreendente, servindo de um momento fraterno marcante e inspirador para você estar nos contando nesta crônica. Feliz domingo! Beth Sarmento

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  7. Boa tarde meu querido amigo!

    Faltando ainda 3:30’h para o jogo do Flamengo e como sempre fico ansioso, muito mais do que seu companheiro do Talho, resolvi ler sua crônica neste Domingo.

    Foi uma abençoada opção. Sua crônica está brilhante e nos remete a reflexões sobre as generalidades e cordialidade além, de corroborar com a afirmativa de que TODOS OS POLÍTICOS NÃO PRESTAM.

    Excelente parceirinho, Parabéns!

    Beijão em todos.

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    1. Queridão,
      Espero que esta mensagem chegue até você. Fui brindado com sua leitura já no domingo e também com seu gentil comentário.
      Obrigado, meu querido amigo!
      Se receber esta resposta poderia curtir? Assim eu saberia que chegou.
      Obrigado e um maravilhoso final de semana!!

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  8. Cau,adorei!!!

    Esse comparativo das duas situações vividas,nos traz a certeza da importância de manter o bom astral,mesmo frente às adversidades!

    Tive uma amizade conquistada também por uma oferta de um copo d’água. É lindo quando a entrega é simplesmente espontânea e humana!

    Pegou o telefone do portuga gente boa?

    Beijos 😘

    Valeuzezimo!!!

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    1. Oi minha irmã,
      Testando aqui se você vai receber minha resposta. Fiquei surpreso, pois respondi um comentário anônimo e a pessoa curtiu, demonstrando que recebeu.
      Quer dizer que a água já nos rendeu amizade… Maravilha!!!
      Bjks e se puder, sinalize se recebeu. Basta curtir a resposta.

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  9. Deu água foi bem sugestivo no nome, eu fiquei a pensar (como dizem os patrícios) que algo pelo qual você procurava se esvaiu, mas não foi, foi a água mesmo com dose na medida certa da amizade. Legal!! Obrigada amigo pelas palavras e momentos que compartilha aqui. Grande abraço!

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    1. Olá Yara,

      Desculpe o atraso em responder…
      É sempre um grande prazer saber que continua acompanhando meus escritos e também fico alegre em receber os seus comentários, amiga!
      Desejo um maravilhoso final de semana e que tudo esteja muito bem com você e sua família!
      Grande e afetuoso abraço!

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  10. Durante grande parte dos meus quarenta e muitos anos de trabalho vivi com essa frase do Fernando Pessoa no meu olhar, ou seja, colocada no placard que estava junto da minha secretária. Sempre me disse muito.

    Ainda bem que esse momento que o António viveu foi sentido como inesquecivel. São eles que marcam realmente a nossa vida.

    Boa semana!

    (Dulce)

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    1. Olá Dulce,
      Perdão pela demora em responder…
      A nossa sensibilidade foi atraída pela mesma frase do genial poeta. português.
      Por sorte e mero acaso vivi o que o poeta declamou!
      Muito obrigado por seu comentário e desejo um ótimo final de semana!

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  11. Prezado Sr. Sarmento;
    É sempre um prazer ler suas crõnicas. O senhor é um mago com as palavras! Apenas gostaria de dizer que apesar de seu comentário sobre agora ser mais fácil comentar em seu blog, eu preciso discordar. Tentei da primeira vez e não consegui. Daí me identifiquei mas recebi a mensagem que o site não poderia publicar meu comentário! Por fim, resolvi me logar no WordPress e , aí sim, consegui! Devo ser um analfabeto digital.
    Grande abraço!
    Marcello Bion.
    PS: Quando puder, visite meu blog (mesmo estando um pouco desatualizado)!

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    1. Bion,

      Um prazer receber a sua mensagem. Agradeço suas gentis palavras e irei em seu blog fazer uma visita neste final de semana.
      Muitas pessoas relataram melhora no mecanismo de envio de comentários, o que infelizmente não ocorreu com você. Talvez por ser assinante do WordPress…
      Grande abraço e obrigado pela gentileza!

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