SEM DISCUSSÃO

Recentemente meus olhos foram atraídos por notícias a respeito de duas pessoas muito idosas. Depois que fiquei velho, velhos passaram a me interessar. Não resta dúvida de que a velhice é nossa única alternativa à morte, a fatalidade indesejada. A ideia de que precisamos viver como se sempre houvesse um amanhã, serve durante toda a nossa existência, até o fim. O astrônomo Carl Sagan dizia:

Somos como borboletas que voam por um dia e acham que é para sempre.

A gente sabe que não é, mas precisamos viver como se assim fosse. Sempre, até o último dia.

Mas vamos às tais notícias.

A primeira foi sobre uma vizinha, cujo endereço desconheço, mas constatei que moramos na mesma região, aqui no Porto. Vi que há poucos dias celebrou 108 anos. Celebrou e virou celebridade, pois até o presidente da Câmara da cidade foi visitá-la. Chama-se Ivete do Céu Lopes. A notícia me tocou de modo especial por duas razões. Primeiro, porque a senhora tem o mesmo primeiro nome de minha mãe, que entretanto viveu exatos 20 anos a menos que esta sua homônima. E segundo, por ela já ter o céu em seu sobrenome, mas ainda preferir estar por aqui. Espero que ambas as Ivetes estejam felizes, assim na terra como no céu.

Curiosamente, no mesmo dia, soube daquela que seria a pessoa mais velha do mundo. Uma senhora chamada Ethel Caterham que alcançou a idade de 118 anos. Esta matéria era mais rica em detalhes, dos quais vou poupar meu caro leitor para não o cansar com velhices. Conto apenas que ela é de origem britânica, teve duas filhas e, claro, tem netos e bisnetos. É óbvio que a perguntaram sobre o segredo de sua longevidade. Eu esperava aquelas respostas já muito conhecidas, como alimentação saudável, vida ativa, cuidados com a saúde e outros clichês. Mas a Ethel me surpreendeu ao dizer que atribuía a um lema que adotou em sua vida: nunca discutir com ninguém.

Isto soou diferente para mim, algo original e interessante.

Passei a prestar atenção neste lema. Pensei que, embora existam discussões produtivas e interessantes, são muito mais comuns aquelas que nada trazem, além de desgaste e irritação. São estas que estão sempre à espreita no nosso dia a dia e nos armam ciladas em cada esquina. E até dentro de nossa casa…

Dias depois de ler sobre a Ethel, fui a uma lavanderia que funciona junto ao meu supermercado favorito. Lá chegando, já havia um senhor que aguardava. Todas as máquinas estavam ocupadas, girando monotonamente, fazendo lembrar aquelas rodas de hamster no interior de gaiolas.

Cumprimentei o senhor, deixei minhas roupas na fila e, para aproveitar o tempo de espera, fui comprar alguns poucos itens no mercado, validando o arranjo inteligente dos dois estabelecimentos.

Retornei uns 15 minutos depois e o senhor ainda aguardava, enquanto duas máquinas já haviam encerrado seu ciclo e aguardavam que o dono das roupas as recolhesse. Ele disse:

— Já encerraram há 10 minutos, mas ninguém aparece para retirar.

Encolhi os ombros e ergui as sobrancelhas em um protesto contido. Fui colocar as compras no carro e retornei para a arrastada espera.

Demorou ainda mais uns minutos até que uma moça chegou e encaminhou-se às máquinas já desligadas. O senhor não se conteve:

— Já terminou há mais de 20 minutos e estamos aqui a esperar.

A moça, com a tampa da máquina aberta e recolhendo suas peças, voltou o olhar e largou um desculpe no ar. Imaginei que a reação dele seria o início de uma discussão recheada de palavras como falta de respeito, pouca educação e perda de tempo. Mas desconfio que o tal senhor conhecia a Ethel. Em tom de voz calmo, disse apenas:

— Desculpas não se pede, se evita.

Foi um ponto final. A moça ficou muda. Ainda antes de ter acesso à máquina, aquele senhor lavou a roupa suja. E deixou gravada em minha mente esta frase curta e cortante.

Dias depois, me vi trocando o papel de coadjuvante pelo de protagonista numa outra situação propícia à discussão. Claro que, a esta altura, esquivar-me de discussões inúteis já era uma intenção firme.

Foi assim: fiz uma rápida parada no carro para minha mulher desembarcar, coisa de 5 ou 6 segundos, e o carro atrás de mim protestou com um buzinaço sem fim. Estendi a mão em pedido de desculpas, pois afinal foi um erro, era algo a evitar… O motorista, com cabelos tão brancos quanto os meus, esbravejou e gesticulou, inconformado com o acontecido.

Apressei-me em partir e, mais adiante, decidi entrar à esquerda em busca de um local para estacionar. Liguei a seta para entrar e imediatamente voltei a ouvir a mesma buzina insistente e a voz do meu colega de cabelos brancos a gritar pelo vidro aberto. Entrei na rua o mais rápido que pude e parei o carro numa vaga.

Pois bem, ele também entrou na rua e continuou a gritar e buzinar. Estacionou atrás de mim, depois recuou por notar que ali havia uma entrada de garagem e ficou acertando o carro para frente e para trás, sempre acelerando muito, de forma espalhafatosa. Foi nesta hora que a Ethel cochichou no meu ouvido fazendo lembrança de seu sábio lema.

Decidi que seguiria meu caminho normalmente e só reagiria para me defender de uma tentativa de agressão física, o que até seria possível devido ao excesso de descontrole e irritação daquele senhor.

Desci do carro quase ao mesmo tempo que ele e, enquanto fechava a porta, o ouvi vociferar algo como “não sabe dirigir, não sabe fazer manobra”. Ignorei aquelas palavras, fechei o carro e segui pela calçada em sua direção, já que era para onde eu precisava seguir.

Ele, talvez percebendo a ineficácia de seus gestos e palavras, virou as costas e seguiu na mesma direção. Fomos caminhando pela mesma calçada, duas cabeças brancas. A da frente desgastada pela grande irritação por tão pequena causa. A de trás, embora arrependida pelo pequeno pecado cometido, satisfeita por não se ter envolvido em uma discussão sem sentido, que só poderia tornar a situação pior.

Segui caminhando e pensando que, em certas situações, deixar de discutir não é perder. Pelo contrário, pode ser ganhar. Sim, é possível ganhar uma discussão sem ter discutido. Quantas discussões, até mesmo entre um casal, só produzem perdedores. Através da Ethel descobri algo simples que agora carrego comigo: o vencedor é aquele que sai em paz!

Senti-me bem, na realidade muito melhor do que se tivesse aceitado participar do campeonato de irritação ao qual fui convidado pelo desafiante. É isso, deixar de discutir pode não ser fraqueza, mas estratégia.

Não resisto a encerrar contando uma história passada nos Estados Unidos, que me foi enviada por um amigo.

Um senhor idoso, na casa dos 80 anos, estava no drive-thru do McDonalds. Demorava a escolher seu pedido, causando protestos da moça do carro de trás, que iniciou a buzinar. A pressão teve o efeito contrário e dificultou ainda mais a conclusão do pedido, fazendo com que ela passasse da buzina ao esbravejar em gritos e gestos e a ofender aquele que fazia a fila demorar mais que o normal. Ele não reagiu.

Após algum tempo, o pedido foi finalmente concluído e o senhor passou ao posto da frente para fazer o pagamento. Quando ela concluiu o pedido, o tal senhor ainda estava no local do pagamento. Irritou-se novamente e repetiu com mais ênfase o show de buzinadas e ofensas.

O senhor continuava impassível.

Na realidade, o longo tempo que ele levou para pagar deveu-se ao fato de que quis pagar o seu pedido e também o da moça.

Ao chegar no local do caixa, ela surpreendeu-se com o fato de que seu pedido já estava pago e passou do ódio ao amor. Agora dava pequenas buzinadas e enviava beijos, enquanto gritava agradecimentos pela janela do carro.

Ao chegar no recebimento dos pedidos, o senhor mostrou os dois recibos — e pegou o pedido dela também.

Despediu-se com um aceno de mão e, sorrindo, imaginou como ela se sentiria ao saber que agora, precisaria voltar para o fim da fila e começar tudo de novo.

O vencedor é aquele que sai em paz.

Concluo com a sabedoria do grande escritor moçambicano Mia Couto:

Não me interessa ter razão, não tenho apetência para este tipo de poder, de marcar uma posição, dar um murro na mesa. Se entro numa discussão é à maneira chinesa, simplesmente para sugerir que pode haver outra maneira de olhar as coisas.

Antonio Carlos Sarmento

29 comentários em “SEM DISCUSSÃO”

  1. Bom dia meu amigo
    Acabei de ler sua crônica tão pontual em
    Nossas vidas cheias de stress e de falta de amor ao próximo .
    Então espero que estejam bem .. dia 03.07 iremos visitar Frei Dino . Ele está na casa dos Padres e com a saúde fragilizada .. .. penso que um abraço acalenta e me sinto sempre devedora com ele por tanto ensinar e dar exemplo pra nós
    Rsrs uma vez bati de frente com a mala da M José lembro que depois que, contei o motivo pra ele ,simplesmente abaixou a cabeça triste e eu fiquei com remorso por te lo deixado daquela forma nunca me esqueci , maior verdade discutir é uma grande bobagem mas as vezes é mais forte que a gente porém vou evitar prometo . Bj grande Maju

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    1. Maju,
      Muito obrigado pelo comentário. O caso que contou, acho que acontece com todos nós. Talvez se estivermos predispostos a não discutir possamos evitar pelo menos algumas…
      Espero que a visita ao nosso querido Frei Dino tenha corrido bem. Se puder, dê notícias via whatsapp, ok?
      Abraços à você e Jarbas!

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  2. caro amigo

    sua crônica me bateu fundo pois com a idade tenho lutado contra a impaciência e por vezes, algo que me era raro: o mau humor. Graças a Deus que é rapido. Mas essa sua cronica me bateu como palavras de um guru, ou coach ( tenho antipatia pelo nome)…, obrigado e bom domingo

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  3. As vezes a gente até tenta ser” Ethel” mas o entorno está tão difícil que sua cabeça surta sem que vc queira. Aí não há idade que resista tantos anos.

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  4. simplesmente muito interessante principalmente na parte da pegadinha da jovem irritada, acho que ela depois dessa vai procurar ter mais paciência

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  5. Grande Meu Amigo Sarmento, muito bom dia. Outra das tantas maravilhas que a sua mente nos brinda, agora, mensalmente. Comecemos pelo final, eu já conhecia essa história mas, mesmo assim, a reli para rir ao final, da engenhosa ação do idoso. De certo a atitude da Srª. Ethel, (nunca discutir com ninguém.) por poucas palavras que a descreva, contém um enorme ensinamento para a vida e que deve servir de exemplo para todos nós que almejamos uma longa e feliz vida. Tenho aprendido, com os estudos que realizo, que os pensamentos são ditadores instalados em nossa mente e que nos levam, muitas vezes, a manifestar algo com o qual não concordaríamos se fossemos donos dos nossos pensamentos, daí surge a figura, tão comum, do arrependimento. Mais uma vez agradeço-lhe pela crônica que, para mim, sempre é objeto de reflexão. Recomendações à Sônia, à Tatiana e ao bebê, ao Jean, ao Príncipe Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu querido amigo Jorge Haroldo,
      Acho que aprendo e reflito mais com seus comentários que você com minhas crônicas.
      Obrigado por isto, meu amigo!
      Lembranças à Sueli, Luizinho, Júnior e à Rainha Catarina!
      PS: desculpe o atraso da resposta. Estive viajando…

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  6. É uma excelente filosofia de vida, que há muito tento serenamente seguir, pois discussões a quente a nada levam. É evitá-las. E concordo que a passagem dos anos ajuda nesse processo.
    Gostei muito da crónica e também dessa frase do seu colega de lavandaria: “desculpas não se pedem, se evitam”. Basta pensarmos um pouco mais nos outros.
    Desejo uma excelente semana!

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    1. Meu amigo Rodolpho,
      Obrigado pelo comentário e por lembrar de identificar-se. Você é um primor de organização!
      Amigo, me responde se recebeu este comentário, ok? Vou enviar também por e-mail, mas desejo saber de por aqui também funciona.
      Abração e um ótimo final de semana!

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  7. Querido amigo Antonio Carlos,

    Não tenho conseguido responder via blog, não estou acertando.

    Mais uma crônica que sempre me ensina ou lembra alguma coisa.

    Estou mais para Ethel e Mia Couto, ou seja, não quero discutir, pois só desgasta e não leva a nada.

    Obrigado e um grande abraço.

    Newton de Almeida

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    1. Meu amigo Newton,
      Sempre uma grande alegria receber seus comentários.
      Procurei simplificar os comentários via Blog, não exigindo sequer identificação e lamento que tenha encontrado dificuldades.
      Mas o fato é que seu comentário chegou certinho.
      Muito obrigado!
      Abraços à você e Nuri e um ótimo final de semana!

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  8. Pena que esta sabedoria só nos venha com a velhice. Teríamos economizado muitos aborrecimentos e tempo perdido. Um forte abraço do Hélio Mesquita

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    1. Meu querido amigo Hélio!
      Muita satisfação em receber o seu comentário.
      Fico feliz de verdade em saber que continua me acompanhando e tendo a paciência de ler minhas crônicas.
      Espero que este comentário chegue até você.
      Um grande abraço e lembranças à Sioneia. Um ótimo final de semana para vocês!

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  9. Meu querido irmão e cronista de primeira linha,

    Nos deliciamos ao ler mais esta deliciosa crônica que nos traz ensinamentos para o bem viver. Parabéns e obrigado. Me fez lembrar da

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  10. Querido Amigo!

    Primeiramente peço-lhe mil desculpas pela demora em ler e consequentemente comentar esta excelente crônica.

    Obvio que as desculpas aqui solicitadas, são diferentes das pedidas pela menina da Lavanderia. Prometo-lhe que estarei a partir de agora seguindo os conselhos da Ethel, evitarei pedi-las.

    Quanto ao mal educado e apaixonado por buzinas, quero parabeniza-lo pelo gesto pois, somente pessoas equilibradas e abençoadas por Deus teriam a sabedoria em suportar tantas buzinadas e gestos agressivos.

    Parabéns queridão

    Saudades de vocês

    Beijão fraterno em todos e em especial no Gabriel.

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    1. Meu queridíssimo amigo Luiz Carlos,
      Não há porque pedir desculpas, pois eu já lhe dei o prazo de 10 anos para comentar qualquer crônica…
      Fico contente que tenha apreciado, meu amigo.
      De fato foi um desafio me conter e suportar calado as buzinadas e gesticulações no trânsito, mas como escrevi, fez com que o episódio terminasse me deixando uma sensação de paz. Ou seja, valeu a pena!
      Obrigado por comentar, queridão!
      Fiquem com Deus!

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