ATENÇÃO

Um amigo me convidou para comemorar seu aniversário em uma pequena aldeia espanhola próxima a Barcelona. Ali passei um final de semana interessante. Deixar uma cidade média ou grande e viver, mesmo que poucos dias, em uma outra realidade, menor, mais calma, com outro ritmo e outros hábitos é uma experiência a ser repetida com mais frequência.

Os dias parecem maiores, o tempo se multiplica e experimentei manhãs calmas, tardes longas e noites repousantes.

Muitas casas de pedra, ruas pequenas e tortuosas, árvores e animais por todo o lado, enquanto um perfume de natureza banhava cada recanto. Para completar, uma maravilhosa padaria artesanal espalhava aromas que despertavam um insaciável apetite.

Notei também uma casa de repouso bem no centro da aldeia, onde aos domingos familiares compareciam para visitar seus parentes. Com eles, se espalhavam pela praça central, formando pequenos grupos em torno dos bancos e lotavam um barzinho de mesas na calçada. A vila antiga era acolhedora para pessoas antigas.

O ambiente calmo e agradável convidava a passeios a pé, pela manhã e à tarde. Assim, saímos algumas vezes na companhia dos amigos, sem rumo, sem querer chegar a nenhum lugar, apenas pelo prazer de andar levemente, conversando, respirando o local e desfrutando da convivência. Costume antigo, sem espaço na nossa vida moderna, digital e tecnológica, onde não se pode perder tempo. Sim, coisa do passado, coisa obsoleta, coisa maravilhosa…

E foi em uma dessas andanças que vimos um senhor nos aguardando à beira da estrada. Tinha cerca de 80 anos, talvez um pouco mais. Vestia uma calça azul marinho, uma camisa clara e um suéter sobre os ombros, que lhe conferia um ar de descontração e juventude. Em uma cidade grande ficaríamos ressabiados, suspeitando de alguma má intenção, mas ali naquele ambiente nada inspirava desconfiança.

Ao nos aproximarmos, ele nos ofereceu um sorridente boa tarde e disse:

— Se vocês tiverem alguns minutos eu gostaria de mostrar-lhes uma coisa.

Ora, se tem algo que naquele momento não nos faltava era tempo. Antes de respondermos, ele complementou:

— Quero levá-los até o jardim da minha casa que fica a 50 metros daqui. Venham comigo.

Disse isso e não esperou a resposta. Virou-se em direção ao caminho e o seguimos sem vacilar. Claro, quem não gosta de se surpreender, de conhecer algo novo, de ver alguma coisa pela primeira vez. Só o medo nos impede disto e neste passeio não levamos este inconveniente companheiro.

Era um pequeno trecho plano que me lembrou muitas pinturas, daquelas que retratam um caminho estreito margeado de árvores, com mato nas laterais e ao centro e duas trilhas desenhadas pelos pneus dos raros carros que por ali passam.

Em pouco tempo e sem esforço chegamos à entrada da casa do tal senhor, que a esta altura já sabíamos chamar-se Garcia. Em nossa conversa pelo caminho a comunicação foi fácil, pois sem combinar nada, cada um falava em sua língua natal e nos entendíamos perfeitamente, como se a mútua empatia funcionasse como uma tradução simultânea.

Passamos o portão e logo à direita vimos uma pequena caminhonete de cabine simples, muito antiga, mas ainda em boas condições. Reconheci que este veículo passou por nós em uma rua próxima dali, quando provavelmente o Garcia avistou suas próximas “vítimas”.

No jardim da casa nosso anfitrião parou e começou sua história.

Por muitos anos dedicou-se a recolher pedras, muito comuns na região, colocou-as uma a uma na caçamba da caminhonete e levou-as ao seu jardim. Ali esmerou-se em fazer estruturas, apenas apoiando as pedras umas sobre as outras, sem argamassa, rejuntes ou colas. Trabalho difícil e lento, pois encontrar encaixes entre pedras irregulares exige além de esforço físico, talento artístico e paciência de mestre relojoeiro.

Garcia erigiu quatro obras com mais de três metros de altura cada e as descreveu uma a uma, tal qual um guia de museu, apontando simbolismos e inspirações que motivaram as formas e detalhes.

Pela ordem, Garcia ergueu estruturas para representar o início da vida, a evolução e, desdobrado em dois, o destino final: o céu e o inferno.

Em cada estrutura pudemos entrar, examinar por dentro, rodear e apreciar a riqueza do seu trabalho. Apenas na última, Garcia recomendou não penetrarmos no interior, pois, segundo ele, não se deve entrar no inferno nem mesmo em uma representação terrena…

Apreciamos de perto e de longe a criação daquele artista anônimo que por anos, pedra a pedra, dedicou-se à sua obra com o intuito exclusivo de criar e revelar, com seus inspirados arranjos, a beleza escondida nas pedras. Para mim, uma arte original e única, perdida naquela pequena vila espanhola.

Despedimo-nos do Garcia agradecidos por ter enriquecido tanto o nosso passeio.

Fui pelo caminho pensando no que teria feito ele nos levar até o jardim de sua casa. Passou por nós, vislumbrou a possibilidade de transformar-nos em uma pequena plateia, foi até a casa, estacionou sua camionete companheira de anos de trabalho, voltou à beira da estrada e ficou à espreita para capturar-nos, arriscando-se a receber um não ou a ser mal interpretado.

Tudo isto apenas para mostrar sua obra, para receber um pouco de atenção, que foi apenas o que tínhamos a oferecer. Lembrei de uma frase que diz:

A atenção é a forma mais rara e pura de generosidade.

Era isto que Garcia buscava. Não havia interesse financeiro, não era apenas para saciar uma vaidade, estava longe de ser um exibicionismo. Interpretei que Garcia almejava algum reconhecimento pelo seu trabalho, mas isto, longe de ser ruim, era uma demonstração de vida e energia. Só os cansados desistem e aceitam a indiferença.

Ali estava o combustível que Garcia precisava para se manter ativo, lúcido, fazer a sua vida andar e também dar alguns saltos sobre o muro da solidão.

Um trabalho sem admiradores é uma semente que não germina, pois falta o sol do olhar dos outros. A atitude do Garcia deixou claro que a arte precisa se mostrar, senão é uma obra incompleta, frustrante, assim como escrever um livro e guardar na gaveta ou pintar um quadro e mantê-lo coberto.

Cheguei a pensar que isto vale para a arte e também para toda a vida humana. Na essência, o reconhecimento não é vaidade fútil, é nutriente para a vida.

Quantas relações humanas acabam pela dureza da indiferença.

Sim, distração é uma coisa, desatenção é outra. Às vezes deixamos de notar algo importante de alguém das nossas relações, mas é apenas um lapso, um ato ocasional, muito comum em nossa vida. Mas a desatenção é diferente. Ela caracteriza um comportamento, uma forma de agir constante e sistemática, um olhar sem ver e um ouvir sem escutar. Essa é que dói, machuca lá dentro de nós. A desatenção quase sempre é pior que a crítica…

Quando falta atenção e reconhecimento, as relações entre pessoas, sejam casais, sejam amigos, sejam colegas, esfriam, ficam vazias e, por ficarem ocas, se fragilizam e podem acabar perecendo.

Muitos jovens com quem converso mostram-se insatisfeitos com o trabalho, reclamam da empresa, do patrão, da fadiga, da pressão. Posso estar errado, mas tenho a impressão de que muito desta insatisfação vem da necessidade de ser percebido, de ter seu trabalho visto, de sentir que construiu algo, que é autor de uma tarefa realizada, por mais simples que seja. A necessidade do Garcia é a de todos nós.

Quantas vezes, no trabalho ou nas relações humanas, os erros aparecem e se destacam, enquanto os acertos são ignorados, não mencionados, quase passam despercebidos. É como se olhássemos os erros com o binóculo na posição correta — ampliando-os — e os acertos com o binóculo ao contrário, afastando-os até quase sumirem. Erros são como fogos de artifício e acertos, vagalumes indecisos…

É fato que todos somos falíveis, mas às vezes esquecemos que também todos somos capazes. Devíamos ser míopes às falhas e olharmos de lupa as capacidades, mas infelizmente é mais comum fazermos o contrário.

Finalizo com uma frase do grande pensador e psicólogo americano William James:

A mais profunda necessidade humana é a de ser apreciado.

 

Antonio Carlos Sarmento

13 comentários em “ATENÇÃO”

  1. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. A busca pela perfeição é comum, ou deveria ser, a todos nós, seres humanos. Todos os dias, lutamos para sermos melhores, mas aí surge a indagação: ser melhor em quê? Tenho tido a oportunidade de aprender com González Pecotche que, ser melhor é ser mais consciente. Penso ter encontrado nesta sua crônica de hoje, um exemplo duplo, deste ensinamento de González Pecotche que citei acima. O esmero com que o Sr. Garcia criou as estruturas que você tanto apreciou, são, a meu juízo, uma prova da busca pela perfeição, feita pelo Sr. Garcia e, nesta busca, ele conseguiu transmitir à você o exemplo das infinitas possibilidades que cada ser humano possui de evoluir à perfeição, cada qual com o seu próprio esforço. Alcançar a perfeição é o norte, contudo, a beleza e o propósito é apreciarmos e vivermos o processo e, além disso, compartilhar com os demais seres à nossa volta, esse nosso júbilo. Meu queridíssimo Amigo, quase ia esquecendo de destacar o trecho que, também, me toca muito: “Ora, se tem algo que naquele momento não nos faltava era tempo”. Isso, o tempo, que tantos seres passam vida desperdiçando é, a meu juízo, o bem mais precioso que temos e você, mais uma vez, demonstrou para mim, um perfeito aproveitamento do tempo, ou seja, atendeu a um convite, com serenidade, apreciou, com emoção o que lhe foi apresentado, deu valor, com a sua admiração e interesse, ao esforço do artista e, não menos importante, dividiu essa experiência vivida, com seus semelhantes. Finalmente, eu poderia lhe dar parabéns, mais uma vez, entretanto, lhe peço que continue admirando o belo, o simples e dividindo, com nós outros, essas observações. Recomendações à querida família.

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    1. Meu querido amigo Jorge Haroldo!
      Só posso agradecer que muitas vezes faça esta correlação entre minhas modestas crônicas e o saber da Logosofia, que você tanto aprecia.
      Concordo que a nossa riqueza é sermos mais conscientes, buscarmos mais cultura e conteúdos que sejam base para nossa formação e desenvolvimento. Talvez, a perda de tempo a que você se refere, seja passar pela vida sem buscar o autodesenvolvimento e a compreensão do mundo que nos rodeia.
      Obrigado por enriquecer as crônicas com seus comentários, meu amigo.
      Fico feliz por tê-lo como leitor assíduo há muitos anos!
      Um fraterno abraço e lembranças aos seus queridos familiares!

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  2. Prezado sr. Sarmento;

    Obrigado por nos brindar com esse bálsamo que é o seu blog.

    Esse ser relato me fez lembrar da primeira vez que fui aos EUA visitar uma amiga no Tennessee. Ela estava trabalhando durante o dia e encarregou um amigo de nos levar para passear. Advinha aonde ele nos levou? Até uma exposição de arte. Por mais que eu seja um professor de inglês e aprecie passeios culturais eu não estava preparado para isso pois não fazia parte da minha realidade. E fiquei admirado com a postura dele parando diante de cada quadro, lendo a plaquinha explicativa, chegando para trás para poder ver o quadro de longe e ficar admirando aquela pintura que para mim não fazia o menor sentido (desculpe a minha sinceridade) mas como o senhor mesmo disse, vivemos em um mundo digital e cheio de pressa e perdemos o gosto pela contemplação pura e simplesmente.

    Que a idade possa nos trazer mais tempo para contemplar o belo e dar a devida atenção não só aqueles que nos são caros bem como aqueles que cruzam o nosso caminho como o senhor Garcia.

    Um bom domingo!

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  3. Mais uma sensível crónica do António baseada num acontecimento muito curioso e num personagem que certamente nunca esquecerá, tal como essas estruturas sui generis por ele construídas.
    Acrescentemos um pouco mais de atenção à atenção… e tudo e todos ganharão com isso.
    Boa partilha!

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    1. Dulce,
      A visita àquele “museu” a céu aberto foi mesmo marcante. É de impressionar tanta dedicação à um trabalho duro e de longa duração sem nenhuma outra ambição que não fosse o gosto artístico, a realização pessoal.
      Mais uma vez agradeço seu comentário e o acompanhamento constante de meus escritos.
      Desejo que desfrute com sua família de um ótimo final de semana!

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  4. Que linda narrativa! Ela nos cativa primeiramente com a descrição de um refúgio natural, longe da correria do cotidiano. Depois, nos surpreende com a obra de arte feita de pedras, fruto da dedicação de um homem que queria provar que estava vivo, que sua criatividade era a força que o mantinha em movimento. A reflexão profunda sobre a importância de parar para ouvir, ver, prestar atenção, valorizar o trabalho, a arte e as pessoas é tocante. Foi um passeio maravilhoso, e consigo imaginar o cenário sereno, onde há espaço para respirar e tranquilizar a mente. Agradeço por compartilhar conosco esses momentos. Desejo um final de semana abençoado!
    🙂🙏🏻✨✍🏻📚🌌

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    1. Adriana,
      Percebo que também fez um passeio pela crônica e sua sensibilidade lhe permitiu alcançar aspectos que vão além dos que pensei e senti.
      Agradeço muito seu comentário e fico contente, pois sou admirador do seu trabalho.
      Desejo-lhe um final de semana de “respiro e tranquilização da mente”…
      Muito obrigado!

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  5. Meu Querido Amigo Antonio Carlos!
    Perdoe-me pela demora em comentar sua bela e agradável crônica, o motivo você sabe, nosso Flamengo tem tomado muito o meu tempo.
    Hoje, domingo 07/12, desejaria muito estar numa cidadezinha com dias maiores, manhãs calmas, tardes e noites repousantes, passeando com seu Garcia, é claro sem entrar no inferno.
    Meu entendimento da sua linda Crônica, se baseia muito em relacionamento humano, hoje em dia tão distante na sociedade. Como é agradável saborear as histórias dos mais experientes como o Sr. Garcia.
    Parabéns queridão.
    Com sua permissão : MENGOOO

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    1. Meu querido amigo Luiz Carlos,
      Em meio a tantas vitórias do Flamengo, você encontrar tempo para comentar a crônica é motivo de muito agradecimento.
      Esqueci de contar na crônica, mas o Sr. Garcia é flamenguista e teria muito prazer em fazer este passeio que você sugere…
      Muitíssimo obrigado, meu querido amigo!
      Beijos em todos desta família amada!

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