Era sexta-feira. Ele vinha pela rua cabisbaixo. Sentia uma angústia no peito que atingia todo o corpo e chegava ao fundo de sua alma. Precisava livrar-se daquele mal-estar, tomar uma providência, mudar as coisas. Não poderia continuar vivendo assim.
Aquele romance proibido, paralelo ao casamento, era a causa de tudo. Encontrava-se furtivamente com Marli há uns dois meses. Conheceu-a no metrô. Sentaram-se lado a lado e a bolsa dela caiu no chão. Nunca teve certeza se caiu ou foi jogada, mas o fato é que ele gentilmente abaixou-se para pegar e ali começou uma conversa, que terminou com troca de telefones e um encontro marcado. Foi tudo muito espontâneo, no impulso.
Detestava as palavras traição e adultério. Para ele, o caso era apenas uma aventura passageira, sem consequências ou sentimentos envolvidos. Sim, Marli era passageira no metrô e em sua vida. Era assim que pensava desde o primeiro encontro.
Porém, após três ou quatro semanas, passada a novidade, a situação começou a pesar. Percebeu que estava minimizando tudo para justificar seu comportamento indevido. Mas o que realmente importava para ele era o seu casamento de quase 6 anos com Bianca, uma pessoa boa e doce, sua companheira de vida, quem realmente amava. Daí provinha sua angústia…
Não tinha alternativa. Fosse um mau caráter e talvez mantivesse a vida dupla tranquilamente, mas para ele estava virando, cada vez mais, motivo de sofrimento. Naquele momento, andando na rua, decidiu colocar um ponto final na história e assumir as consequências de seu erro. Era a única coisa digna a fazer.
E teria que ser de uma forma limpa e íntegra: primeiro terminaria tudo com Marli, o que não seria complicado. Em seguida, aí sim, a parte difícil e imprevisível: contaria a verdade à Bianca, sem detalhes, claro. Depois mostraria arrependimento profundo e imploraria o seu perdão: tinha que lembrar de pedir perdão e não desculpas, pois a falha era muito grave. Finalmente, reafirmaria o seu amor por ela e garantiria que jamais isto voltaria a ocorrer. Havia falhado, fraquejado, mas fora uma única vez e desejava redimir-se, voltar à vida normal e salvar o casamento, tão valioso para ele. Este seria o enredo da conversa. As palavras traição e adultério não poderiam participar!
Claro que temia pela reação da mulher. Mas apenas terminar com Marli e omitir o ocorrido não o deixaria em paz: precisava do perdão de Bianca. Não era um canalha: necessitava limpar aquela mancha em sua vida, reerguer a cabeça, voltar a ter orgulho de si mesmo e realmente retomar a sua vida de casado de forma plena.
Chegou em casa ainda envolto nestes pensamentos.
Sua cabeça parecia uma ambulância em disparada, piscando luzes, tocando sirene e serpenteando entre ideias e palavras, ações e reações, causas e consequências. Estava em crise!
Seu semblante alterado foi percebido por Bianca. Na mesa do jantar ela indagou:
– Está tudo bem? Parece sem apetite.
– Ando um pouco enjoado de macarrão. – disfarçou ele.
– Como? Não combinamos de comer uma massinha uma vez por semana, nas sextas à noite?
– Pois é. Mas estou sem fome.
A angústia dele derramava-se sobre a mesa, transbordava do prato. Era evidente demais que algo não ia bem.
– O que está acontecendo? Me conta. Eu sou sua mulher. Não confia em mim?
Estava ficando sem saída. Seu plano de primeiro terminar com a Marli estava indo por água abaixo. Mas como poderia revelar os acontecimentos à Bianca e já ter que mentir? Começou a suar. A ambulância estava numa velocidade estonteante…
– Claro que confio! Vou te contar depois. Agora vamos terminar nosso jantar. – disse ele para ganhar tempo e poder pensar um pouco.
Daí para frente o jantar transcorreu em silêncio. Nada mais cabia, até que chegasse o “depois”. A falta de apetite contagiou Bianca e ambos ficaram arrastando garfos, enrolando macarrão e esperando um pouco para dar o jantar por encerrado. Era uma daquelas ocasiões em que o silêncio incomodava muito mais que o barulho.
Enquanto ela calava por estar ansiosa para saber o que ia ser contado, ele decidia que seria este o momento. Não iria mentir já que pretendia ser honrado e digno para resolver aquela situação. A Marli ficaria para depois: bastariam algumas palavras e fim de papo. O difícil era acalmar-se e encontrar as palavras certas. Mais que as palavras, o tom, os gestos e o olhar…
Passaram ao sofá.
– Pronto. Pode falar. O que houve? – indagou ela, tentando criar um clima propício.
– Nem sei por onde começar.
– Fala o que vier à cabeça, espontaneamente. – orientou ela.
Não poderia ser assim, mas ele começou:
– Deixa eu falar tudo primeiro e só me ouve, tá? Eu errei e estou sofrendo muito de remorso e arrependimento. Falhei com você, que eu tanto amo. O nosso casamento é a coisa mais importante do mundo pra mim. Tive um caso por dois meses com uma moça que conheci no metrô. Nada importante, só sexo.
– Só? – ironizou ela.
– Por favor.
Precisou de uma pausa. Aquela ironia o perturbou. A ambulância desviou-se do destino, errou o caminho.
Esfregou as mãos no rosto. Teve vontade de chorar, mas engoliu.
Olhou para ela. Parecia calma, aguardando o desfecho. Animou-se a continuar:
– Não foi nada importante pra mim. Um erro que nunca havia cometido e que nunca mais vai acontecer. Juro por tudo que é mais sagrado. Do fundo do meu coração, eu te peço perdão. Peço não, imploro. Estou muitíssimo arrependido. Foi o maior erro da minha vida.
Olhou para ela em busca da reação, mas encontrou um rosto enigmático. Ela mirava o teto, com o olhar fixo. Parecia pensativa e distante. A ambulância parou, mas a sirene era ensurdecedora e as luzes piscavam freneticamente. Aguardou por quase 5 longos e torturantes minutos. Quando não suportou mais a expectativa, colocou a mão sobre a dela e disse:
– Bianca, não precisa me responder agora. Sei que precisa de um tempo para compreender e interpretar o que contei.
Ela cogitou retirar a mão sob a dele, mas recuou do gesto. Precisava fazer a sua parte. Respirou fundo e começou a falar, calma e pausadamente:
– Você acha que quem deseja o perdão também deve perdoar?
– Sim, claro. – respondeu sem entender, mas a pergunta não admitia outra resposta.
– Pois é. Então eu te perdoo. – disse ela, olho no olho.
Ele exultou, mas apenas por alguns segundos, pois ela prosseguiu:
– E eu também peço o seu perdão.
– Por que? – alarmou-se.
– Eu também tive um caso.
A ambulância capotou!
Ela prosseguiu:
– Foi um pouco mais longo, mas acabou há meses, felizmente. Você tem toda razão. É um erro a não ser cometido, nunca mais.
Ele ouviu, mas não conseguiu processar. Com a ambulância de rodas para cima, só conseguiu dizer:
– Vamos deixar esta conversa para amanhã, ok? Temos todo o final de semana para isso.
Não esperou a resposta dela. Levantou-se sem saber onde iria. Entrou no lavabo. Precisava ficar só, pensar. Seu corpo tremia, as mãos suavam, estava zonzo como quem recebe um golpe na ponta do queixo. Demorou mais de uma hora trancado, sozinho, tentando, sem sucesso, pensar de forma ordenada. A ambulância entrou numa rotatória e girava sem parar.
Quando saiu foi até o quarto. Ela já dormia. Melhor assim.
Não conseguiu deitar. Andou pela casa a noite toda, tentando pensar com mais clareza e equilíbrio.
Mas sua cabeça não correspondia. O coração não deixava. Apenas duas palavras o dominavam: traição e adultério!
Era um poço de contradições. Pensava: ela nem deu detalhes, me traiu e sequer disse o nome do amante. Eu não sei os fatos, os acontecimentos. Teve um caso, nada! É adultério!!! E vem com essa conversinha de perdoar e ser perdoado. Ao mesmo tempo, refletia: eu fiz o mesmo. Não! Foi apenas vingança! Como vingança, se eu nem sabia? Ela foi por mais tempo. O que não tem a menor importância. Mas machuca mais. E daí? Só que eu sou homem, é diferente. Diferente nada, porque?
A ambulância zanzava sem destino…
Amanheceu o sábado e a única ideia que conseguiu formular foi retomar a conversa com Bianca, logo de manhã. Porém, estava descontrolado. Queria saber os detalhes da traição dela. Ideia fixa. Precisava saber como aconteceu, quem era o cafajeste, onde se encontravam, porque terminou e porque ela havia feito aquilo. Precisava saber!
Não deu nem bom dia:
– Como é o nome dele?
– Já te disse que acabou. O nome não interessa. E eu te perdoei sem perguntar nenhum detalhe. Acabou está acabado, página virada.
– Não é assim, Bianca. Eu preciso dos detalhes.
Ela foi firme:
– Não precisa e não vai ter. Ou viramos a página e nos perdoamos ou não vamos conseguir continuar juntos. Os detalhes só nos farão sofrer. Não ajudam em nada.
– Mas eu quero. – disse ele, infantilmente.
– Você me pediu perdão. E disse que quem quer o perdão também deve perdoar. Eu te perdoei. Quero saber: você me perdoa também? Só isso interessa. – finalizou Bianca.
Não sabia o que responder. Necessitava saber de tudo, nos detalhes. E ela lhe negava este direito. Abriu a porta e foi para a rua.
Vagueou pela cidade durante muitas horas. Teve vontade de beber, mas algo lhe dizia para nem começar, pois não teria autocontrole e sua cabeça só iria piorar.
Depois de muitas horas, andando o tempo todo, já quase anoitecendo, uma decisão foi tomando corpo em sua mente, aos poucos. Ia e vinha. A cada vez ele ficava mais calmo. O turbilhão ia diminuindo, como uma água fervendo na panela quando se desliga o fogo: ainda muito quente, mas sem a desordem da ebulição.
Voltou para casa. Olhou o relógio da cozinha: 10 da noite.
Tomou um leite e um banho e foi dormir. Deitou-se com ela, mas de lado, virado para fora da cama. Conseguiu estacionar a ambulância e desligar as sirenes. Dormiu profundamente, conciliado com a ideia. Qualquer caminho é melhor que nenhum! Normalmente, decidir é mais difícil que implementar a decisão.
Quando acordou, ela ainda tomava café. Ele aproximou-se e, de pé, deu o veredito:
– Bianca, pensei muito e não tem como continuarmos juntos. Vou sair de casa hoje e logo te aviso para assinarmos os papéis do divórcio.
Viu um leve sorriso dela com um canto da boca, mas achou que havia sido uma impressão. Ela não olhou para ele, mas balançou a cabeça levemente, concordando.
A primeira coisa que fez, ao sair de casa, foi ligar pra Marli e terminar tudo. Queria limpar o passado e começar uma nova etapa em sua vida. Precisava de paz interior, uma mente calma e silenciosa!
Um mês depois assinaram os papéis. Processo simples, pois não havia bens a partilhar e o casal não tinha filhos.
Na saída, já do lado de fora, divórcio consumado, Bianca o chamou reservadamente e disse:
– Sabe por que não te contei os detalhes?
– Ahn? – resmungou laconicamente.
– Porque nunca tive nenhum caso. Só queria que você sentisse o que é ser traído!
Sorriu com os dois cantos da boca e foi embora segura de si.
Ele ouviu a sirene da ambulância que se aproximava velozmente.
Antonio Carlos Sarmento
Ótima !!!Adorei!!
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Que bom ter gostado Lucia.
Não se admire do horário: estou em viagem, com 5 horas de fuso…
Beijos
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É Sarmento, conheço muitas ”ambulancias”… Genial! Bom domingo.
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Grande abraço Luigi!!
Obrigado por comentar.
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Deliciosa. Coitada da ambulância !!!
Parabéns Cacau…
Mulher esperta…
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Valeu Nei!
Grato por comentar.
Abração
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Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Ótimo para uma reflexão.
Beijos.
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Obrigado pelo comentário, Ana.
Beijos
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Caraca!!! Meu irmão . . . muito bom . . . Tenho um amigo cronista dos bons . . .
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JH,
Fico muito contente que esteja apreciando as crônicas.
Obrigado por comentar.
Grande abraço!!
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Muito bom, meu amigo.
Enviado do meu iPhone
>
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Obrigado meu amigo Luiz Carlos!
Grande abraço
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Gostei muito!
Uma atitude surpreendente da Bianca.
Parabéns, Cacau! Preocupar- se com a empatia foi muito generoso de sua parte – uma abordagem edificante num contexto já banalizado.
Uma crônica inteligente, no mínimo.
Já esperando a de domingo!
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Muito obrigado Gena. Você esperando a de domingo e eu esperando o seu comentário! Hahaha
Beijos!
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Falando a verdade , quando ela disse que havia acontecido o mesmo com ela , eu percebi que ela estava fazendo o teste final , e acredito que minha reação teria sido a mesma .
Ela simplesmente fez com ele se colocasse no lugar dela.
Essa crônica é maravilhosa, porque muitas das vezes queremos que os outros nos entendam , que perdoem nossos erros , mas não fazemos o mesmo quando ao contrário.
É uma grande lição de vida!
Empatia – Se colocar no lugar do outro.
Parabéns Cacau ! Pela sabedoria de colocar essa riqueza de crônica que deve ser lida, relida .
E que as fichas caiam.
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Valeu Chico!
Que bom ter gostado. E ainda ter sido motivo de reflexão. Este é o objetivo: histórias para divertir e fazer pensar!
Bjs
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Muito boa. bjos
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Valeu Lucia!
Grato pelo comentário.
Beijos
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Ótima crônica! Eu estava percebendo que o final seria assim.
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Valeu Newton!
Obrigado por comentar.
Abraços
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Meu bom amigo Antônio Carlos.
Parabéns pela história de amor que terminou com uma lição de sentimento e de duvidoso perdão, visto que, quem quer o perdão, também deve perdoar. Foi essa a lição humanizada colhida do texto.
O texto descreve que no caminho da relação do casal houve um contratempo, finalizado com o não esperado divórcio, mas ocorreu, infelizmente.
PARABÉNS !!!
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Obrigado meu amigo Osluzio!
Beijos em toda a família.
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Quem somos nós? Cada dia aprendemos um pouco mais com elas …na vida real e na ficção.
Forte abraço Antônio prossiga está cada vez melhor!
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Amigo Paulo,
Agradeço muito pelo incentivo. Que bom ter gostado.
Grande abraço!
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