CORÔNICA

A história passa-se no Rio de Janeiro em 2020, no inédito momento de isolamento social praticamente em todo o planeta, por causa da pandemia do corona vírus.

Decididos a cumprir rigorosamente as recomendações das autoridades de saúde, Agenor e Tânia permaneciam em casa. Claro, ambos com mais de 60 anos, não poderiam correr riscos.

Ali pelo oitavo dia, numa quarta-feira à noite, quando escovava os dentes, Tânia exclamou:

– Essa não!

– O que foi?

– Arranquei um bloco do dente…

– Engoliu?

– Não. Está aqui. – disse ela, exibindo a peça, que parecia uma pérola deformada.

– Problema em dente não há quem aguente!

A lacuna molar era quase uma cratera lunar. Tânia então, na mesma hora, enviou uma mensagem ao dentista. Este, muito prestativo, disse que abriria o consultório só para atendê-la no final da manhã do dia seguinte. Agenor animou-se com o motivo de força maior, que lhe proporcionava a justificativa para uma saída de casa, mesmo que por período breve.

No dia seguinte, adotados os devidos cuidados, partiram para a operação de salvamento dentário. Ruas muito vazias, comércio fechado e quase nenhum pedestre. Chegaram ao consultório e o dentista os recebeu com festivos esguichos de álcool 70 para todo o lado.

Na realidade, era um grande incômodo com uma solução simples. Em menos de dez minutos, com um novo cimento um pouco mais resistente, o bloco foi reinstalado firmemente em seu lugar e Tânia ressuscitou!

Ao sair, ainda desejando um pouco mais de aventura, resolveram passar no posto de vacinação contra a gripe e tentar obter logo a imunização.  No caminho pararam num sinal fechado. Havia ali, avenida normalmente muito movimentada, apenas 3 carros, incluindo o deles. Agenor percebeu um vendedor ambulante oferecendo algo em embalagens escuras de plástico, parecendo ser a tal pipoca come-come, produto que nunca havia experimentado e nem tinha intenção de fazê-lo.

Na realidade, nunca comprava nada em sinais, para não incentivar este tipo de comércio. Mas naquele dia, foi tomado por um impulso de comprar, apenas para dar alguma ajuda ao homem, que pescava naquele mar sem peixes. Quanta ironia, alguém com fome vendendo come-come…

Havia acabado de pagar o estacionamento no dentista e higienizado as mãos. Sabia que tinha na carteira duas notas: uma de 50 e uma de 2 reais. No Rio de Janeiro, os precavidos têm sempre uma nota de 50 para evitar decepcionar o ladrão.

– Tânia, me dá a carteira.

– Vai pegar em dinheiro de novo?

– Vou. Para ajudar o ambulante.

– Pelo amor de Deus: você vai comer isso?

– A carteira por favor, Tânia.

O sujeito aproximou-se, dando a perceber que já não era jovem. Pela aparência, provavelmente tinha mais de 60 anos. Agenor entregou a nota de 2 reais e o homem estendeu o produto:

–  Não precisa, amigo. É só para te ajudar.

O homem retribui-lhe um olhar de agradecimento e exibiu um leve sorriso numa boca de poucos dentes. Agenor pensou: problema em dente há quem aguente…

O sinal abriu. Já se afastando Agenor olhou pelo retrovisor e viu o homem escondendo o rosto na parte interna do cotovelo esquerdo, como se chorasse.

– Tânia, eu acho que ele ficou chorando.

– Deve ser pela mixaria que você deu. Compra o que com 2 reais?

– Ai meu Deus… Mas eu só tinha esse dinheiro trocado.

Dali ao posto de vacinação foram 10 minutos de silêncio e constrangimento. Na entrada do posto apenas 4 carros:

– Está ótimo. Vai ser rápido. Logo vamos almoçar. – admirou-se Tânia, pois as notícias informavam superlotação.

Entraram na pequena fila. Mas ao passar pelo portão revelou-se a realidade: os carros serpenteavam em um pátio lotado, indo de um extremo ao outro, até chegar ao local efetivo da aplicação da vacina. Foram 45 minutos de zigue-zague.

Ao final, receberam a vacina ainda dentro do carro, iniciativa simples e prática, coisa rara em medidas de governo.

Ainda na pista de saída do posto de vacinação, Agenor resolveu extravasar sua aflição:

– Tânia, estou com um aperto no peito. Vamos voltar naquele sinal. Vou dar os 50 reais para o pobre homem.

– E você sabe se ele ainda está lá? Já deve ter ido embora.

– Eu vou, faço a minha parte. Se ele não estiver lá, paciência…

– Eu queria almoçar. Estou com fome.

– São só alguns minutos. Eu preciso ir lá.

A ênfase no verbo precisar fez a balança pender a favor dele.

Repetiram-se mais dez minutos de silêncio durante o trajeto.

Ao longe, Agenor percebeu que o sinal estava verde e reduziu a velocidade. O homem aguardava de pé, esperando o sinal fechar.

– Aquele lá é outro, Agenor. – observou Tânia.

– Acho que é ele mesmo. Quando chegar lá vamos ver. – retrucou.

Quando o sinal fechou, o carro de Agenor era o único do cruzamento. Ele então pode constatar que era o mesmo ambulante.

Abriu o vidro e estendeu a nota de 50 reais.

– Meu amigo. Pegue este dinheiro, compre comida e vá para sua casa.

O sujeito ficou paralisado. Olhava fixamente para Agenor, dele para a nota estendida e voltava os olhos incrédulos para os de Agenor. O segundo zigue-zague do dia, este muito mais dramático. Aos poucos seus olhos se enchiam de lágrimas.

– Pega esta nota e vai para casa. É melhor para o senhor. – insistiu Agenor, temendo que ele não aceitasse o dinheiro.

Já chorando, o homem desabafou:

– Não posso ir para casa. Eu tenho três netinhas para alimentar. – falou, mostrando três dedos vacilantes.

Agenor sacudiu a nota e estendeu o braço ao máximo:

– Então pega este dinheiro e compra comida para elas.

Nesta altura, ouviu uma buzina insistente e percebeu que havia um carro atrás. Mas o sinal estava fechado! Por que este carro buzina tanto? Foi tomado de certa irritação, do tipo que só buzinas são capazes de produzir em humanos.

O homem finalmente deu um passo a frente e pegou cuidadosamente a nota:

– Obrigado. – disse de modo quase inaudível, sufocado pelo choro.

A irritante buzina continuava, repetitiva.

O homem então caminhou para o carro de trás, a buzina cessou e neste exato momento o sinal abriu. Agenor, já em movimento, olhou pelo retrovisor e viu o braço do motorista estendido para fora, com uma nota de 50 reais tremulando na ponta.

– Tânia, o carro de trás deu mais 50 reais.

Foram chorando até em casa. Tem coisa mais contagiosa que vírus!

 

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “CORÔNICA”

  1. Mais uma bela crônica, nesses tempos duros e dificeis que todos enfrentamos Que esse vírus nos ajude a enxergar a nossa vida e enxergar o próximo como Cristo nos ensinou. Sempre me recordo a passagem do evangelho quando ele sintetizou a boa nova resumida a 2 atos: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao seu semelhante como a si próprio. Bom domingo, boa semana, obrigado e que Deus te abençoe e a sua família.

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  2. Linda atitude Cau!!!
    Belo exemplo de quem tem sensibilidade para se colocar no lugar do outro!!!
    Essa é uma grande oportunidade de crescermos como seres humanos e ver nossos semelhantes como irmãos !!!
    Parabéns!!!

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  3. Linda crônica, o que me faz mais uma vez repetir: O mundo será muito melhor depois do corona, pois todos passaram olhar o próximo com mais amor…
    Dentro de todos os segmentos: Família, trabalho, espiritualidade, escola e etc…

    As pessoas passaram a se amar mais, e aí poderemos Seguir Jesus Cristo : ” Amarás o próximo como a ti mesmo “.

    Valeu Cacau!
    O nosso valor está em nossa essência e foi Deus que nos deu.

    Beijos

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  4. Nobre gesto de solidariedade do Agenor.

    Aliás, a nossa sociedade, egoísta como sempre, deveria ser povoada só por gente, com a generosidade do Agenor.

    Sds. e um belo domingo, apesar dos pesares,

    Carlos Vieira Reis

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  5. Caro Amigo Cacau!! Que conto maravilhoso. Vamos torcer que o seu prognostico de sairmos diferentes desse momento se concretize e que realmente possamos ser verdadeiramente contaminados com o vírus de amor ao próximo e da compaixão. Deus nos abençoe! Parabéns.

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  6. Que coisa maravilhosa alguém se incomodar por não ter feito o bem!
    E voltar atrás.
    E ver outros também repartindo.
    É o Espirito Santo se movendo entre nós e em nós.
    Por isso, com certeza, temos motivos para dar lugar à esperança e à alegria de viver. E sobretudo, responsabilidade para honrar o Divino em nós.
    Feliz Páscoa para meu querido primo e sua abençoada familia.

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  7. Caro amigo Carlos Alberto, mais uma vez parabéns por mais uma crônica super interessante, e dessa vez com o pertinente trocadilho no Título. Siu generis.

    Pegando uma “corona” no que os amigos escreveram, esse período de quarentena nos traz a consciência de que a nossa pequenez diante a grandeza desse vírus, requer o espírito coletivo para superarmos esse momento.

    Grande abraço!

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  8. Meu querido amigo Antonio Carlos.

    Infelizmente até Jesus Cristo conviveu com pessoas assim. O exemplo de Judas.
    Não vamos deixar de fazer o bem, mesmo que tenhamos que presenciar atitudes como essa descrita em sua crônica. Parabéns!

    Um fraterno abraço para todos da familia.

    Oslúzio Félix Fonseca

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