Há alguns anos eu estava num bar de praia, afastado da cidade e fui buscar algo no carro, que se encontrava num estacionamento próximo a uma mata. Quando ainda abria a porta do carro, ouvi um ruído proveniente das folhagens e notei que era um cachorro caminhando entre os arbustos. Não dei muita atenção. Parecia um desses cachorros sem dono, abandonados e magros, que frequentam os arredores de bares na esperança de conseguir um resto de comida. O típico vira-lata.
O cão pareceu perceber a minha presença, mudou de direção e rumou ao meu encontro. Fiquei alerta. Ele veio andando lentamente e quando chegou a cerca de uns dois metros parou. Levantou a cabeça e me olhou fixamente. Pude então notar que ele estava cravado de dezenas de espinhos no focinho e em torno dos olhos. Uma cena que eu nunca havia visto. Os espinhos me deram um frio na espinha, mas o que mais me impressionou foi o olhar do animal. Estava desnorteado e ao mesmo tempo padecia de dor e desespero. Passei de alerta a comovido.
Ficamos ali, um diante do outro, paralisados como num duelo, nos olhando fixamente. Um duelo não de morte, mas de salvação. Eu queria ajudar, aliviar o sofrimento dele, mas não sabia como agir. Ele queria ajuda, aliviar-se do sofrimento, mas também não sabia como agir.
O cachorro era o afogado e eu o salva-vidas, mas tudo dependia de ele querer pegar a boia, acreditar em mim. A súplica e o desespero exalavam daquele olhar fixo e um oceano de medo afogava o animal. A única coisa possível e plausível a fazer, com os recursos que eu dispunha, seria chegar bem perto e retirar os espinhos um a um. Mas isso exigiria dele um autocontrole difícil para cachorro…
O mais provável era que ele reagisse com a mesma incompreensão de uma criança diante da seringa de uma vacina. Por medo, quer recusar, reluta e chora sem saber que em troca da dor vai receber a imunidade, a vida.
Resolvi dar um passo na direção do meu paciente, pois precisava fazer uma tentativa, por menor que fosse a chance de sucesso. Como preparação, ergui os braços à altura do peito, abri as mãos com as palmas voltadas para ele, movendo-as lentamente para cima e para baixo, pedindo calma. Ele permaneceu imóvel. Animei-me. Como aceitou o gesto, achei que poderia acrescentar um som e, na falta de uma ideia melhor, usei o pedido de silêncio: shshshshsh…
O pobre cão permanecia imóvel. Encorajado, como numa dança de paz continuei balançando os braços e sibilando enquanto dava um passo lento e curto em sua direção. Eu gostaria muito de contar ao leitor que o animal permaneceu imóvel como uma serpente encantada e que eu consegui aproximar-me, dando outros passos lentos. Que então, como quem arranca um esparadrapo, eu teria retirado em movimentos rápidos cada um daqueles espetos torturantes. E ainda que, ao final, o cãozinho agradecido e aliviado me lamberia os pés e, após receber uma carícia no dorso, teria se despedido alegremente, balançando o rabo e deixando-me a gratificante sensação de tê-lo salvo.
Mas não posso mentir para contar uma história com um final feliz. Nada disso ocorreu: o animal ferido reagiu ao meu primeiro passo com uma disparada mato adentro, em direção à sua provável morte. Fugiu do alívio e da salvação para ir ao encontro de mais dor, sofrimento e do fim de sua vida. Eu era a sua última chance, mas o instinto de autopreservação, paradoxalmente, funcionou contra a sua própria sobrevivência.
Inconformado e triste, ao chegar em casa, fui pesquisar sobre o acontecido. O mais provável é que o desafortunado cão houvesse entrado em luta com um porco-espinho, resultando no quadro que presenciei. O olhar dele ficou na minha memória.
Sempre que me recordo desta passagem fico imaginando que, às vezes, em nossas vidas, batemos em uma retirada suicida como aquele cachorro. Sim, mesmo sendo seres racionais, dotados de uma inteligência muito superior, também é possível que por medo ou falta de confiança, façamos a opção de não tratar e sim ocultar certas dores, especialmente as de nossa alma. E em nosso escuro interior, aprisionada e solitária, a dor cresce ou, no mínimo, não arrefece.
Em certas circunstâncias, preferimos trocar a dor aguda de enfrentar uma situação, pela dor crônica de conviver eternamente com o problema. E aí só nos resta esconder o sofrimento, tentar ignorá-lo, aprender a conviver com ele, passar aos outros a aparência de que ele não existe e remoer solitariamente o martírio. Isto pode até não nos levar à morte, mas tem chance de tirar a alegria de nossa vida, o que é quase o mesmo. Buscamos refúgio e encontramos prisão.
Aquele cachorro não tinha capacidade de compreender o seu real problema e enfrentá-lo com coragem e determinação. Muitas vezes, nós também não. Como aquele vira-lata, acontece de fugirmos instintivamente para o nosso mato interior, e ali, a salvo das soluções, ficarmos eternamente destilando as amarguras. Vida de cão…
Antonio Carlos Sarmento
Lindo texto! De mexer com a alma. Obrigado por gastar seu tempo expondo um pouco a sua alma e nos fazendo refletir com a nossa. Bom domingo e Deus nos abençoe e as nossas famílias.
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Amigo Luigi,
Feliz de ter mexido com a sua alma. Também mexi com a minha ao escrever.
Obrigado pelo comentário!
Um semana de muita paz e alegrias para você e sua família!
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Identificar os “espinhos”de nossa vida vai doer, mas é o princípio para tudo melhorar, caso contrário, estaremos seremos eternamente.
Questione-se!
Valeu Cacau!
Excelente.
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Valeu Chico!
Talvez nenhum de nós escape de ter alguns espinhos deste tipo.
Obrigado por comentar.
Bjs
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O leu seu artigo me lembrei que tenho 05 (cinco) cachorros, todos muito bem tratados, Além disso ainda tenho 4 gatos, igualmente muito bem tratados, Todos vivem em perfeita harmonia e na santa paz.
Parabéns meu ilustre literato.
Sds.
Carlos Vieira Reis
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Amigo Carlos,
Desejo que seus cães não passem por isso. Nem você! hahaha
Grande abraço meu caro amigo e grato por comentar.
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Ontem foi o dia da saúde mental, sua crônica foi cirúrgica pra chamar atenção pra esse tema. E quem quiser se encorajar a tirar os espinhos com uma psicóloga, estou aí! Hehehe…
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Fefe,
Se eu tivesse a ideia já colocaria seu telefone na crônica… hahaha
Bjks
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Grande Meu Amigo, Muito bom dia, Mais uma bela crônica um enredo muito bom e um final apoteótico, haja vista a conclusão, de muita sabedoria. Contudo, gostaria de registrar entendo, agora, o final do parágrafo §4º “. . . difícil para cachorro” ao invés de “difícil prá cachorro”, era um assunto sério sendo tratado. Parabéns!!! Recomendações à Sônia que, foi muito generosa comigo, em comentário no facebook.
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Amigo JH,
Você pode não acreditar, mas quando escrevi esta expressão com duplo sentido, me ocorreu que você iria dar destaque a ela. Não deu outra!
Aos poucos vou conhecendo meus leitores mais fiéis pelos comentários.
Obrigado pela gentileza de sempre!
A Sonia terá que praticar ainda muitas generosidades para empatar com você!
Grande abraço!
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É que às vezes é muito difícil entender que, para extirpar de vez uma dor, talvez seja preciso, primeiro, descer ainda um degrau na escada do sofrimento. Há quem prefira manter-se no mesmo patamar, sem se atentar para o fato de que o alívio pode estar logo adiante.
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Pedro,
Fico contente de receber seu comentário, sempre complementando e aprofundando o tema da crônica.
Muito obrigado!
Abraços!
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Adorei a crônica e seu desfecho comparando com nós mesmos. Realmente: para nos “salvar”, às vezes preferimos fugir. Abraços!
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Nicole,
Com alegria recebo seu comentário e fico contente que tenha gostado.
A opinião de quem também escreve é muito interessante.
Abraços!
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Se enfrentar é somente para os corajosos!!
Linda comparação meu irmão, quantas vezes ardemos os espinhos pra evitar a dor que nos liberta e libera para viver!!!
Excelente, adorei….
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Minha irmã,
Quando terminei esta crônica tive a certeza de que você e a Fefe iriam gostar.
Desejo que seus espinhos sejam sempre pequenos e raros.
Beijos!
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Bom dia Sr. Sarnento. Foi o poat mais lúcido que já li na minha vida. Conheço muita gente igual a esse cachorro. Mas como.ja disse Mark Twain é mais fácil enganar alguém do que dizer a esse alguém que ele está sendo enganado!
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Bion,
Fico muito feliz de receber seu comentário.
Acolho como um elogio que me incentiva a prosseguir nos escritos.
Obrigado por acompanhar as crônicas: sua opinião sempre me interessa.
Um forte abraço!
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Tenho casa próximo a um parque estadual de preservação da natureza e já tive problemas com os ouriços cacheiro que volta e meia vem nos visitar e deixam uma conta no veterinário para extração dos famigerados espinhos.
Mas afinal, quem não tem os famigerados espinhos cravados na alma deixados pelos nossos encontros com a vida?
Alguns, talvez os mais doloridos ou que mais nos incomodam, tratamos ao menos de tentar tirar ou os medicamos para aliviar a dor.
Os demais, são incorporados ao nosso arcabouço e passam a fazer parte de nós e muitas vezes até, é como se fizessem parte de nós.
Um abração.
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Valeu Rômulo!
Talvez tenha sido um ouriço caxeiro no caso que contei. Eu nunca tinha visto aquilo…
Quanto aos nossos espinhos, sem dúvida todos temos e a arte é aprender a conviver com os que não têm “remédio”.
Grande abraço!
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Excelente crônica para reflexão! Você foi muito feliz na comparação da situação do cão com a nossa vida cotidiana e os diversos problemas que vivemos. Cada crônica é um aprendizado. Muito obrigado por nos fazer parar e refletir.
Abraços.
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Meu amigo Newton,
Mais uma vez agradeço seu comentário.
Fico contente que tenha gostado e que a crônica tenha possibilidado uma reflexão sobre a nossa vida.
Grande abraço!
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