PROGRAMA DE ÍNDIO

Que delícia passar uns dias num chalé na serra. Para quem mora numa cidade grande, populosa e aglomerada, é até uma necessidade ir ao encontro da natureza. Que delícia ouvir passarinhos ao invés do barulho do trânsito, apreciar cenários naturais ao invés de outdoors, respirar oxigênio puro ao invés de descarga dos veículos e ver um rio correndo ao invés de um mar de gente apressada.

Com este intuito, fiz uma reserva numa pequena pousada em Visconde de Mauá, muito bem recomendada. As fotos revelavam um quarto de casal amplo, uma bela varanda ensolarada e, para completar, uma convidativa e perfumada banheira de hidromassagem, quentinha e envidraçada para permitir, durante a imersão, apreciar a vista de um lindo vale verde.

Por ser uma pousada pequena, de 3 ou 4 chalés, achei melhor reservar direto com a responsável, de nome Clara. Após uma troca de mensagens por celular e um depósito bancário, garanti a hospedagem por três dias.

Malas arrumadas, parti com minha mulher para o tão esperado passeio. A previsão do tempo não era muito animadora, mas quem precisa de tempo bom dentro de uma banheira?

O último trecho da estrada, já na serra, estava péssimo. Surpreendemo-nos com barreiras caídas, tratores trabalhando, encostas cheias de lama e árvores tombadas. Muitos trechos em meia pista, trânsito lento e complicado, enfim, um cenário de destruição.

Para chegar à pousada ainda era preciso entrar por um desvio da estrada principal, deixando o asfalto e enveredando por uma pequena estrada de terra que subia eternamente.  Às portas do céu, finalmente paramos diante da grande placa que anunciava a entrada da pousada. A viagem demorou muito mais tempo que o previsto, fazendo com que o cansaço estivesse em alta e consequentemente a paciência em baixa.

Uma simpática plaquinha dizia para tocar o interfone e aguardar. Foi o que fizemos, ansiosos por chegar. Passado um tempo razoável, nenhum sinal de vida. Aliás, só vida vegetativa. Tocamos novamente. E mais umas três ou quatro vezes, sem qualquer resultado.

Já com certa irritação resolvi usar o celular para ligar ou mandar mensagem para a Clara. Quanta ingenuidade, para não dizer ignorância: perto do céu não existe sinal. O celular deve ser invenção do inferno…

A esta altura, minha paciência também começou a ficar fora da área de cobertura. Apelei então para a estridente buzina do carro. Ela revelava minha indignação. Não sei se o som foi ignorado ou confundido com uma cigarra no cio, se é que isso existe.

Insisti mais umas quatro vezes, até que surgiu um empregado com um facão de cortar mato na mão direita. Muito receptivo.

— O que é? — disse ele, aborrecido por ter seu trabalho interrompido.

— Boa tarde! — ensinei. — Temos uma reserva.

— Entre pelo outro portão — disse, apontando mais para cima da estrada.

Bufei. Mas não havia o que fazer.

Voltamos ao carro, subimos mais alguns metros e ingressamos pelo portão indicado. Passamos por cima de um gramado até pegarmos a pista de acesso à recepção e alcançarmos o estacionamento.

A recepção ficava bem pertinho. Ali chegando, mais uma grata surpresa: não havia ninguém! Uma antipática plaquinha dizia para tocar o sino. Bufei de novo. O sino era irmão gêmeo do interfone, mudos de nascença.

Mais alguns minutos, daqueles que parecem horas, e apareceu um garoto de uns 8 anos, que nos olhou de modo tímido e admirado, como se nunca tivesse visto alguém de cara feia:

— Quem atende aqui, meu filho? — indaguei.

— Eu vou chamar ela — disse apressado e saiu correndo. Parecia um anão indo chamar a Branca de Neve.

Após mais um teste de paciência, vi um carro embicar no portão que ainda estava aberto e, em pouco tempo, estacionar ao lado do meu carro. A Branca de Neve, sem aquele vestido bonito, de sandálias havaianas e com os cabelos desgrenhados, saltou e veio caminhando na nossa direção:

— O senhor cancelou a reserva! — afirmou, olhando um celular enquanto caminhava.

— Boa tarde — ensinei de novo. — Eu cancelei a reserva?

— Sim. Recebi aqui no aplicativo. O senhor cancelou ontem.

— Você é a Clara?

— Sou eu.

Clara de Neve, pensei.

— Que coisa interessante. Eu cancelei minha reserva e depois vim para a pousada…

— Pois é. Está aqui no aplicativo — disse ela, estendendo o celular em minha direção.

— Isto me parece um fenômeno. Cancelei pelo aplicativo uma reserva que nunca fiz lá. Eu reservei direto com você — disse eu, também estendendo meu celular na direção dela.

— Comigo?

— Sim, se você é a Clara, responsável pelas reservas da pousada. Há poucos dias ainda pedi confirmação e você informou que estava tudo certo e até me forneceu o nome do chalé.

Ela não se deu por vencida. A tentativa frustrada de botar a culpa no aplicativo, mudou de rumo.

— Eu não tenho nada disso no meu celular — exclamou.

— Outra coisa interessante. Eu tenho aqui tudo que conversamos, o depósito que fiz e a sua confirmação, mas nada disso existe no seu celular. Deve ser algum fenômeno paranormal.

— Só se alguma criança mexeu e apagou tudo — tentou ela.

Eu tive vontade de dizer que devia ter sido um dos sete anões. A culpa saiu do aplicativo, passou pelo celular e atingiu uma criança.

— Se você quiser pode olhar aqui no meu celular e ver as informações que precisa — ofereci.

— Não. Vou ver no sistema de reserva.

Disse isso e sumiu por uma porta. Ficamos ali apatetados. Lembrei que Ghandi dizia que perder a paciência é perder a batalha. Continuamos aguardando…

Ela voltou transtornada e ainda mais descabelada.

— Não tem nada no sistema. Só se deu alguma pane.

 Ai meu Deus! A culpa saiu do aplicativo, passou pelo celular, atingiu a criança e desaguou no maior culpado de tudo no mundo: o sistema!

— Clara, eu cheguei aqui depois de uma viagem complicada, com a estrada cheia de interrupções e …

— Choveu muito. A estrada ficou fechada por dois dias.

— É mesmo? E você não me avisou nada, confirmou a reserva e até indicou o chalé. Aí eu chego, toco o interfone e fico sem ser atendido.

— É que nós estamos sem luz. Caiu um poste.

Eu nunca escrevi um palavrão em minhas crônicas, mas agora me deu uma vontade danada. Vou resistir.

 — Ah, que ótimo. Como posso me hospedar aqui se está sem luz?

— Eles estão consertando, mas são muito lentos. Antes de anoitecer deve voltar.

A culpa saiu do aplicativo, passou pelo celular, atingiu a criança, desaguou no sistema e agora alcançou a companhia de eletricidade.

Ghandi, me desculpe, mas chega um ponto em que a paciência deixa de ser virtude. Preferi perder a batalha do que insistir diante de tantos indícios negativos.

— Clara, estamos indo embora. Agora a reserva está de fato cancelada.

— Por que? — reagiu, inconformada.

Preferi não responder.

— Não foi minha culpa — ainda insistiu.

Dei de ombros e pedi que estornasse meu depósito mesmo sem acreditar que isso fosse de fato ocorrer. Retornei à estrada, amassei de novo o mesmo barro de uma hora antes e fomos dormir em Penedo, cidade próxima e já livre do trecho de estrada acidentado.

No dia seguinte Clara me enviou o comprovante do depósito e abaixo escreveu: Feito!

Esta única palavra e, principalmente, este ponto de exclamação me doeram. Parecia que ela se vangloriava de um “feito”, como se fosse uma grande obra, um grande favor e aguardasse o meu agradecimento.

Fiquei pensando que talvez um pedido de desculpas dela, na hora certa, pudesse ter levado esta história a um desfecho melhor. Aliás, é possível que a maior parte das desavenças entre as pessoas pudesse ser resolvida com um sincero pedido de perdão, coisa simples e tão difícil. Afinal como é possível alguém que não assume a sua culpa, pedir “des culpa”?

Quanta razão tinha Millôr Fernandes quando disse:

Errar é humano, botar a culpa nos outros também!

Antonio Carlos Sarmento

38 comentários em “PROGRAMA DE ÍNDIO”

  1. Otima crônica. Mas… aconteceu ou não o “banho de banheira???” Kkkkkkkk . Tenho uma história muito semelhante passada em Prado, BA, que um dia te conto. Programaço de indio, tambem… Bom domingo e Deus nos abençoe, e nos livre dessas frias.

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    1. Caro Luigi,
      Muito obrigado por comentar.
      Interessante como alguns leitores relataram casos semelhantes. Eu nunca havia passado por isso…
      Grande abraço e uma ótima semana para você e sua família. Fiquem com Deus!

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  2. Francamente….Clara como comerciante está “escura” de habilidade pra lidar com seus clientes.
    Me fez lembrar um provérbio chinês que diz:
    “O homem que não sabe sorrir 😀 não deve abrir uma loja “.
    Ainda bem irmão que vocês sabem resiguinificar e curtiram a graciosa Penedo!!!
    Pra Clara: bem feito ✔!!!hahahaha

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  3. Caro Amigo, Muito bom dia, Só uma palavra: Hilária. Sim, esse programa de índio “azarado”, foi (olhando de fora, hoje), de fato hilário. Recomendações à Sônia, à Tatina, ao Gui e ao Jean.

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  4. No princípio, pensei em algum tipo de golpe com pefil falso da pousada que iria ser esclarecido no final, mas errei.
    A Clara certamente pecou mas já conheci estabelecimentos que a característica era o mau humor do dono que no final tornaram-se folclore e eram sucessos, um nicho de clientes que certamente de alguma forma queriam algo diferenciado.
    Nos negócios e na vida as regras são bem flexíveis, cada caso um caso.
    Abraços primo

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    1. Caro primo Rômulo,
      Vivemos na época dos golpes e portanto é compreensível sua primeira impressão.
      Aqui no Rio existe um bar muito famoso pelo mau humor de seus garçons: virou um diferencial e as pessoas acham até engraçado.
      Grande abraço, meu primo e grato por comentar!

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  5. Que sufoco amigo. É por isso que tenho algumas reservas das suas indicações de pousadas e sempre faço severas pesquisas antes de reservar…. Como sempre uma crônica do cotidiano e muito interessante. Destaco,como sempre, os seus comentários adicionais. Hoje dizer que perto do céu não tem sinal, que o sino é irmão gêmeo do interfone e a presença da Branca de Neve foi muito legal. Parabéns mais uma vez e …… Tá feito…..

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    1. Amigo Nei,
      Eu já sabia de suas restrições às minhas indicações, tanto que, salvo engano, nunca seguiu nenhuma… hahahaha
      Seus destaques sempre me interessam muito e agradeço por citar aquilo que te chamou a atenção.
      Muito obrigado e mantenha sempre este saudável bom humor.
      Feito também!
      Grande abraço e um beijo pra Jaciara!

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  6. Meu irmão, que furada!
    Sinceramente, achei que até o dinheiro você ainda estaria aguardando.
    Nesse PDI, só faltou o cocar.
    Eu fiquei com pena de quem te indicou a pousada, pois com certeza, a situação foi bem outra quando da ida dessas pessoas… e naquela região o estado do tempo é fundamental… Com uma lua cheia, céu estrelado e etc… deve ser o paraíso, com
    toda a nautreza, romântico e etc…
    No seu caso, a banheira térmica virou uma ducha fria…
    Lamento!

    Nesse capitulo da história da Branca de Neve, você fez o papel de um dos anões, o ZANGADO.

    BJS

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    1. Amigo Chico,
      Também achei que nem o dinheiro recuperaria, mas diante do que se apresentou não havia como ficar e insistir ,quando o bom senso recomendava uma retirada estratégica. Optar pelo ruim para não ficar com o pior…
      Interessante como a banheira ganhou a atenção de muitos leitores. No caso, trocamos por uma ducha, mas quentinha também, pois na região a temperatura é sempre baixa, como você bem sabe.
      Quanto aos anões, saí ZANGADO mas pouco tempo depois estava de novo FELIZ!
      Beijos meu irmão e ótima semana!

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  7. Muito boa como sempre. Acho que vc deu azar. Já estive em Mauá e foi muito bom. Ainda bem que curtiu Penedo, outro local muito charmoso. Beijão

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    1. Lucia,
      A gente nunca sabe porque as coisas acontecem. Preferi encarar desta forma e partir para outro programa dentro do possível.
      Como você lembrou, Penedo também tem seus encantos.
      Beijos e obrigado por comentar.
      Uma ótima semana!

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  8. Meu caro irmão Cau!!!
    Mais uma divertida crônica, descrita com maestria, que faz a todos relembrar alguma experiência assemelhada e nos remete/aconselha tomar alguns cuidados antes de fazer reservas em lugares desconhecidos.
    Mas, como a maioria dos leitores desta crônica, pelo inicio da narração, nos sentimos induzidos e curiosos sobre como se desenvolveria o propalado e enaltecido banho na banheira quentinha, com linda vista. Deve ter ocorrido em Penedo mas não foi mencionado nenhum detalhe, talvez porque a paciência já havia se esgotado.
    Mas, a curiosidade permanece nos leitores. Portanto, cabe uma crônica, em continuidade, que poderá intitular- A BANHEIRA QUENTINHA DE PENEDO……..

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    1. Meu irmão,
      Já fico feliz só em saber que você se divertiu.
      Aguarde a crônica solicitada, mas tenha muita paciência, pois já sabe que tenho dificuldades com temas encomendados… hahaha
      Beijos em todos e uma ótima semana pra vocês!

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  9. Essa viagem vai ficar marcada em nossa lembrança. A pousada é ótima, demos azar ou sorte de te saído e não ter pego mal tempo na estrada. Perdemos a viagem, mas não o humor e ganhamos um ótima crônica.
    Sua fã nr. 1

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  10. Que frustração após a expectativa de curtir 3 dias de tranquilidade junto ao verde, perto do céu e dentro de uma banheira de hidro. Que ducha de água gelada!
    Ainda bem que a boa companhia da Sonia inspirou a nova hospedagem em Penedo e puderam aproveitar da acolhedora pousada.
    Vou querer saber o nome da pousada descompromissada da Clara para jamais aventurar ir.
    Bom domingo Irmão querido!

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  11. Mais uma crônica sensacional, e para nós leitores até divertida. Mas para o autor, um misto de tristeza, ranço, descontrole e irritação. Muito pior que trânsito, outdors, descargas de carros e pessoas apressadas.
    Tente de novo, vai dar certo.

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  12. AHHAAHAHAHHAAHAHA sensacionais suas tiradas cômicas. Uma pena ter sido tão frustada, porém Deus sabe do que estava te livrando.

    Se eu fosse você se vingava de quem indicou essa pousada, tenho algumas opções em mente.

    Ótima crônica como sempre.

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  13. Boa noite querido amigo!
    Que sufoco heim?
    Depois de estrada, chuva, interfone, sino, etc. Pensar que chegou a hora de descansar e acontece mais essa da dona Clara.
    Ainda bem que tinha Penedo no caminho!
    Ótima crônica, como sempre!
    Abraços.

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  14. Bom dia meu amigo!
    Fiquei por alguns minutos refletindo se algo semelhante havia acontecido comigo,… tive muitas decepções, como todos os seres humanos, por um momento ou outro, acontece.
    Para quem leu sua crônica pode achar engraçado, mas ao se colocar em seu lugar, é difícil não perder a paciência ao perceber a imensa frustração e um atendimento nada cordial.
    Abraços.

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    1. Caro Freitas,
      De fato a frustração ocorreu e na hora foi inevitável a irritação. Mas logo depois superamos isso e preferimos pensar que nada acontece por acaso e muitas vezes nos livramos de circunstâncias ruins pela mão de Deus. Pensando assim, pudemos aproveitar a viagem e buscar alternativas.
      Muito obrigado por comentar e desejo uma excelente semana!
      Abraços.

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  15. Cacau,
    Olhando a ilustração da crônica, imaginamos só delícias : uma cerração ao fundo, um friozinho que obriga a ficar abraçado no querido, uma lareira…
    Mas, que pena! Esse sonho é interrompido com o desrespeito aos compromissos, tão comum em nossa cultura.
    Ainda bem que sabemos dançar na chuva, querido primo. Não outorgamos à frustração e ao aborrecimento o poder de minarem nossa alegria.
    E vocês puderam desfrutar desse lugar tão encantador que é Penedo, onde está uma das melhores recordações de minhas filhas entre as viagens em família.
    Como estão os preparativos para o lançamento do livro tão esperado?
    Sucesso!
    Beijos

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    1. Querida prima Gena,
      Adorei a imagem de dançar na chuva!!!! Esta é a arte de viver, mantendo sempre a legria e vendo a mão de Deus em tudo que nos acontece. Muito obrigado pelo comentário.
      Agradeço também seu interesse pelo andamento do livro. No momento estou ainda no duelo com editoras em busca de assinar um bom contrato, o que poderá acontecer em breve, se Deus quiser. Mas não tenho pressa nem ansiedade: tudo com calma e a seu tempo.
      Um carinhoso beijo, minha prima!!!

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