Muitos acham que por volta dos 60 anos a pessoa começa a ficar com a memória ruim. Pode até ser, mas acho que também vai ficando mais seletiva. A gente vai trocando de lembranças, dando menos valor às mais recentes e voltando-se para as mais remotas, de preferência as da infância que são as melhores.
Se assim for, não perdemos memória, apenas mudamos o foco. É uma opção pela qualidade, já que não existe fase tão boa na vida quanto os nossos primeiros anos. Por isso, eu não gosto da denominação de “melhor idade” para aqueles que, como eu, passaram dos sessenta anos. Para mim, a melhor idade foi quando eu era criança!
Vejo agora meu neto Guilherme, completando 3 anos e se divertindo com tudo, o tempo todo. Sua mais nova brincadeira é simular um tombo. Chama a atenção do pai, faz um pequeno percurso com a bicicleta e cuidadosamente se joga no chão fingindo um acidente. Fica ali estirado, inerte, a demandar socorro. O pai vem correndo, imitando o som de uma ambulância e presta o desejado atendimento: massageia o peito, puxa os braços, estira as pernas, faz cócegas, dá leves tapinhas no rosto, enquanto Guilherme tenta, sem sucesso, conter o riso. Depois o levanta, ajeita sua cabeça e alisa seus cabelos. O moleque dá largas risadas e sai sacudindo pernas e braços como a complementar o tratamento recebido e demonstrar plena recuperação. A brincadeira então se repete, apenas umas 40 vezes…
Estou lendo um romance escrito por Érico Veríssimo em 1933 e não resisto a reproduzir uma breve passagem sobre a infância da protagonista:
“Clarissa! Agora ela é poesia, ingenuidade, ternura, incompreensão, encantamento… Para ela a vida está cheia de surpresas e de atrações irresistíveis. Mas, amanhã, que virá? Amanhã? A dissolução, a deformidade do corpo e do espírito. Hoje — a menina verde, fresca, risonha. Amanhã — a matrona gorda, senhora respeitável, que sabe em que mês devemos plantar couves, que não acredita nessas bobagens dos poetas e que nem sequer há de saber ensinar aos filhos a mentira bonita dos contos de fadas.”
Esses pensamentos sobre a infância me ocorreram devido a uma reunião recente na casa de um amigo, que resolveu comemorar seus 65 anos com os companheiros de meninice. Maravilhosa e rara escolha.
Compareceram sete, todos mais ou menos na mesma faixa etária. Em poucos minutos juntos, demos risadas, lembramos brincadeiras, recordamos pessoas, passagens engraçadas e acontecimentos de 50 ou 60 anos passados. Passamos a ser meninos de cabelos brancos.
Não posso deixar de levar ao leitor pelo menos uma das histórias contadas naquele dia. Afinal de que serviria toda esta introdução? Vamos ao relato.
Quando crianças, não sabíamos o que era bullying e, portanto, usávamos apelidos sem moderação, ainda mais se havia dois garotos com o mesmo nome. E moravam na nossa rua dois vizinhos chamados Jorge. Um era bem branquinho e ganhou o codinome de Jaleco. O outro, de pele bem mais escura, amorenado, passou a ser conhecido como Feijão. Nunca se incomodaram muito com as alcunhas. Assim, o nome oficial praticamente ficava em desuso, sendo mencionado apenas quando se apresentavam a alguém ou fora do contexto da turma.
Certa ocasião, veio do Maranhão para visitar a família, um parente de um dos meninos — que foi quem contou o caso para nós ali na celebração do aniversário, sentados os sete em roda, muito atentos à história.
O tal parente passou então algumas semanas convivendo com a garotada, participando do dia a dia e deixando lembranças marcantes entre todos, especialmente no Jaleco.
Uns 20 anos depois, Jaleco tendo uma viagem para o Maranhão, lembrou-se do visitante e sentiu o desejo de reencontrá-lo. Confirmou com a família que ele ainda morava por lá, anotou o telefone e na véspera da viagem fez contato:
— Eu sou o Jorge, lembra de mim? Estivemos juntos aqui no Rio de Janeiro há muitos anos, quando você veio visitar sua família.
— Claro, Jorge. Que prazer falar contigo. Lembro sim.
— É que eu vou à sua cidade aí no Maranhão e gostaria de encontrá-lo, bater um papo.
— Claro! Com o maior prazer!
Ajustaram as agendas e combinaram um encontro para jantar 3 dias depois.
Nos primeiros momentos, houve um natural constrangimento após tantos anos sem se verem. Um olhava o outro como a procurar sinais que coincidissem com a memória de anos atrás, apuravam os ouvidos buscando recordar a voz e rastreavam outros sinais daquela época.
Aos poucos, conversa vem, conversa vai, copo cheio vem, copo vazio vai, foram se soltando e já davam amplos sorrisos, recuperando em parte a intimidade do passado.
Entretanto, o parente maranhense ainda tinha um estranhamento.
Desde o contato por telefone, ao ouvir o nome Jorge pensou no Feijão, com quem também tinha algum parentesco. Até agora não havia superado a surpresa de encontrar Jaleco, de quem não se lembrava muito bem.
Ficou ruminando aquele desconforto, não obstante o prazer do encontro e as boas recordações de outrora.
Quando a descontração e a camaradagem chegaram ao ponto certo, o intrigado não se conteve e lascou a pergunta fatídica, que foi seguida de uma meia hora de gargalhadas dos meninos de cabelos brancos:
— Ô Jorge, me desculpe, mas você não era preto??
Antonio Carlos Sarmento
Que delicia de crônica! Sarmento adoro reencontrar amigos da adolescência. Nos tornamos todos jovens adolescentes de novo. E se ri de qualquer lembrança mesmo das, á epoca, amargas. Costumamos dizer que rimos até de “fratura exposta”… Que perigo complicado da vida, a adolescência, mas quão deliciosa é, no futuro. Amigo, obrigado e que Deus nos abençoe.
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Caro amigo Luigi,
Fico contente que tenha gostado e despertado doces lembranças. A juventude é um período ímpar de nossas vidas e lembrá-la traz alegrias.
Muito obrigado por seu comentário e constante apoio ao meu trabalho de escritor.
Um afetuoso abraço e desejo uma semana de muita paz. Fique com Deus!
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Nessa crônica sentimos como é bom o tempo de criança e como são inocentes e puras suas brincadeiras. Nos faz viajar no tempo e relembrar esse período tão gostoso de nossas vidas. Obrigada por mais esse presente.
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Soninha,
Que bom ter gostado. Levar um pouco de alegria à você é muito gratificante para mim.
Como sou muito ruim de presente, fico contente que considere a crônica como sendo um de que gostou…
Beijos
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Kkkkkkk… adorei! Tb morri da simulação do Gui. Você descreve muito bem, parece que estamos vendo a cena!
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Fefe,
Que bom ter gostado. O Gui está uma figuraça mesmo, com novas e interessantes brincadeiras.
Quanto a “ver a cena” é a maior busca de quem escreve e assim fico muito feliz com o seu comentário.
Bjks no Tom e uma ótima semana para vocês!
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Caro Antonio Carlos:
Como é importante relembrarmos da nossa infância, das brincadeiras, dos amigos, colegas e até de desconhecidos.
Naquela época, as brincadeiras eram sadias e nos causavam grandes prazerosas satisfações, preenchendo nosso tempo ocioso.
Depois de tantos anos encontrarmos nossos companheiros de “estrepolia”, causa-nos uma incontida alegria, um prazer incalculável.
Parabéns pela grandeza do texto.
Sds. do amigo e leitor,
Carlos Vieira Reis
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Meu dileto amigo Carlos,
Percebo que a crônica te trouxe boas lembranças. Minha intenção maior foi exatamente esta, fazer-nos voltar um pouco no tempo e olhar com doçura e alegria nosso tempo de criança.
Agradeço muito seu comentário, meu fiel amigo e assíduo leitor. Desejo uma semana de muita paz e alegrias junto aos seus!
Um forte abraço!
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Sim, parece que as nossas melhores recordações estão dentro da nossa fase de descobrir o mundo, avançar, desfrutar sem muitas regras para nós tolhir.
O que vem a seguir são aparas, modelaçoes e … Responsabilidade.
Um mundo lúdico que parece irreconhecível nas fases seguintes.
Acredito que após os 70 anos, já sem barreiras éticas e de responsabilidade, possamos novamente voltar mas sem o mesmo glamour da infância.
Um abraço primo e desfrute dessa convivência maravilhosa e certamente rejuvenescedora com seu neto.
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Caro primo Rômulo,
Pois é, o mundo lúdico de nossa infância que se foi para sempre mas que podemos fazer voltar com as recordações.
Como você bem disse, nos cabe agora buscar aquele espírito de descoberta e desfrute. Mãos a obra!
Um grande abraço, primo e desejo que vocês tenham uma maravilhosa semana!
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Delicioso texto e episódio!
Este tipo de traição da memória//confusão está no grupo dos inócuos e que até têm piada. O pior são aqueles que podem provocar constrangimentos aos outros e a nós próprios…
Mas estamos sempre a aprender a dar a volta, com humildade e com a “bagagem adquirida”!
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Dulce,
Agradeço seu comentário e fico contente que tenha apreciado a leitura. Optei esta semana por tentar levar um pouco de divertimento nestes tempos tensos. Nossa alegria foi sequestrada, mas vamos lutando para reconquistá-la.
Cheguei esta semana ao Porto e já estou a aproveitar as maravilhas da “Terrinha”.
Desejo uma ótima semana a você e sua família!
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Muito bom o texto, parabéns!
Um fraterno abraço a todos da família.
Osluzio
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Querido amigo Oslúzio,
Fico feliz que tenha apreciado. E comentado.
Muito obrigado meu irmão.
Um beijo nesta família maravilhosa!
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Sempre muito bom relembrar nossa infância mas, não posso deixar de comentar que após os 60, também, temos muitos bons momentos. Veja a história do Gui.
Muito gratificante suas crônicas de final de semana.
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Querida Ana Lúcia,
Quando você chegar aos 60 vai ver… hahaha
É muito bom dependendo de nós mesmos sabermos aproveitar bem as oportunidades.
E você sabe, tenho certeza, pois está sempre alegre e de bem com a vida.
Muito grato por comentar.
Beijos e uma ótima semana!
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Prezado Amigo, Muito bom dia, Mais uma deliciosa crônica, parabéns!!! Não importa a nossa idade atual, recordar a criança que fomos é regenerador e uma prova de gratidão aos tempos vividos . . . Recomendações à Sônia e demais familiares, principalmente os de além mar (Tatiana, Jean r Gui) . . .
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Amigo JH,
Sempre uma alegria encontrá-lo por aqui. E ler o seu comentário, sempre rico e interessante.
“Gratidão pelos tempos vividos” é algo que nos deixa a pensar – quantas vezes não fazemos este reconhecimento…
Muito obrigado meu caro amigo. Um beijo em toda a família, em especial na Catarina!
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Cau
A história do Gui e seu papai Jean ,que embarca de corpo e alma na fantasia do filho, é maravilhosa!! Quiçá o Guilherme vai escrever uma crônica contando essa linda história no futuro!!☺
Adorei!!!!
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Valeu minha irmã!
Não sei se ouviu esta história do feijão naquela reunião,
Obrigado por comentar!
Beijos
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Sempre muito bom relembrar nossa infância mas, não posso deixar de comentar que, também, temos muitos bons momentos após os 60. Veja a história do Gui.
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Querido cronista de sucesso,
Sabe que eu não conseguiria eleger a melhor idade? na infância, só brincadeiras; na adolescência, a paixão; na maturidade, os filhos, os netos…difícil seleção!!
E, para contrariar a ideia de Érico Veríssimo, com todo respeito, essa matrona gorda aqui ( para começar, nem tão gorda, hehe) permanece com ilusões, adora uma poesia e aproveitou um romance até o fim.
Viver é uma grande experiência!
Mas, para escolher a pior idade, eu não hesitaria: aquela em que se vive sem o amor de toda a vida.
Beijo nessa família bonita do Porto
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Querida prima,
Como sempre aprecio muito os seus comentários.
Sei um pouco de sua vida e compreendo perfeitamente sua afirmação sobre a pior idade.
Mas também sei de sua habilidade para superar dificuldades e seu amor pelas filhas e netos que enchem seu coração de alegria!
Um beijo e o desejo de uma semana cheia de alegrias junto à sua família amada!
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Caro amigo
Foi bom ter atrasado a leitura desta ótima crônica- Feijão Preto – para agora poder curtir em dose dupla.
Realmente concordo com você, deliciosas lembranças são as do passado, que só de lembrá-las concluímos que estamos com muito boa memória. 😂
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Valeu Rodolpho!
É isso mesmo, recordar é viver. E felizmente nossa memória está em pleno funcionamento, né?
Obrigado por comentar, amigo.
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