SAUDADES

A gente vive para sentir e deixar saudades. Claro, imagine que vazio deve haver naquele que não tem de que, nem de quem sentir saudade. Acho até impossível que exista alguém assim…

O poeta Rubem Alves diz que saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar. Que coisa linda! Melhor que qualquer definição de dicionário.

Gosto também da ideia de que a saudade é uma dor da ausência que temos prazer em sentir. Que coisa interessante, sentir prazer na dor. Acho que a saudade é assim mesmo.

Saiba o leitor que eu não fiz uma profunda pesquisa, mas por todo o lado encontrei a afirmação de que esta palavra, com o sentido que tem para nós, só existe na língua portuguesa. Que maravilha se for verdade. É mais uma riqueza do nosso idioma que nos permite expressar em toda extensão este sentimento complexo, mágico, alegrador e também entristecedor, mas sobretudo encantador.

Entretanto, tenho duas questões com esta palavra.

Primeiro, que até hoje não sei ao certo quando usar o singular ou o plural. Para mim parece ser indiferente sentir saudade ou sentir saudades… Não vejo como fazer flexão de número, identificar unidades deste sentimento. Sendo impossível quantificar, me permito usar uma ou outra, sem muito critério nem regras gramaticais.

Outro aspecto, este sim relevante, é que parece faltar uma palavra para expressar o sentimento contrário. Para o amor, o desamor, para o prazer, o desprazer, para a afeição, a desafeição. E para a saudade?

Note o caro leitor que os contrários não significam apenas a ausência do sentimento, mas sim um outro sentimento, em oposição àquele. Por exemplo, não ter amor por alguém é bem diferente de sentir desamor por aquela pessoa. Não sentir prazer em algo, também não equivale a experimentar um desprazer. Uma coisa é não sentir, outra é sentir o oposto.

Portanto, não ter saudades também é bem diferente de sentir, se me permitem, dessaudades. Talvez eu devesse escrever (des)saudades, mas prefiro não carregar estes antipáticos parênteses. Por favor, concedam-me esta liberdade. A crônica é principalmente um estilo livre.

Vou tentar me explicar melhor. A saudade é do passado, a dessaudade é do presente. É o prazer de fazer algo hoje de um modo bem melhor que no passado, é desfrutar hoje de algo mais prazeroso do que outrora existia.

Por exemplo, eu tenho dessaudades de carro sem ar condicionado, de alugar cartuchos de filmes e ter que rebobinar para devolver, das longas filas de banco antes da era da internet, de tentar dormir no verão do Rio de Janeiro com apenas um ventilador soprando ar quente nos meus ouvidos…

Sempre que me sento num acolhedor restaurante, de toalhas de pano, talheres e louças de boa qualidade sinto dessaudade dos restaurantes à quilo.

E agora, depois que deixei as obrigações da vida profissional, sinto dessaudade sempre que faço uma siesta após o almoço, quando acordo às 9 da manhã, quando estando gripado posso passar o dia na cama e, o melhor dos melhores, quando acordo na segunda-feira como se fosse domingo!

Na minha morada atual tenho muitas dessaudades de uma churrasqueira do prédio vizinho ao meu que fazia barulhentas festas todo final de semana, de ter morado, quando jovem, numa casa com 6 pessoas e 1 banheiro…Ah, eu sinto dessaudades de muitas coisas dos tempos idos.

Como pode notar o leitor, não se trata de lembrar acontecimentos ruins da vida, mas sim do alívio de estar livre de certas circunstâncias, quase como desfrutar da cura depois de ter passado pela doença.

Esta semana fui fazer um teste ergométrico. Ao final, o médico disse:

— Os resultados estão bons, sem alterações. Ainda bem que o senhor não fuma.

— Quem disse que eu não fumo, doutor?

— Os exames, ora.

— Eu parei de fumar há mais de 40 anos.

— Fez muito bem.

Senti uma grande dessaudade do tempo em que eu fumava. Claro que havia algum prazer naquele hábito e, na época até um certo charme, mas os efeitos sobre minha saúde já se manifestavam e tornavam necessários medicamentos, exames e preocupações com a saúde.

Com certa timidez e pudor devo confessar ao leitor que também tenho este sentimento em relação à algumas pessoas, felizmente não muitas, a quem não desejo mal, mas com quem sinto certo alívio em não ter que conviver. Eu poderia dizer que são os meus dessaudosos amigos…

E hoje, em maio de 2022, não vejo a hora de sentir dessaudade da pandemia do coronavírus. Espero que este dia esteja próximo para o mundo inteiro. Ao andar sem máscaras, parar de melar as mãos com álcool gel e voltar a frequentar festas e locais cheios de vida, acho que sentirei muitas dessaudades

Termino lembrando a escritora Clarice Lispector, que disse certa vez:

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida. Quando vejo retratos, quando sinto cheiros, quando escuto uma voz, quando me lembro do passado, eu sinto saudades…

Eu sinto também dessaudades, Clarice!

Antonio Carlos Sarmento

31 comentários em “SAUDADES”

  1. Bom dia amigo Antônio Carlos, ótima crônica! Você me fez lembrar e sentir muita saudades de tantas pessoas, lugares e coisas que presenciei na vida, como por exemplos, os meus queridos pais (que saudade deles sempre juntinhos), os lugares que eles me levaram na infância e presentes que com muita dificuldades me presentearam, mas nada mais importante ainda do que a nossa presença, minha e da Reginia, na criação dos nossos dois filhos, Rosana e Rodrigo. Vejo hoje, com saudade, estes tempos que se foram! Acho que tive muito pouco dessaudades! Mas uma me lembrei AGORA, que deixou uma dessaudade enorme, que era no tempo em que acordava de madrugada para pegar o trem de Madureira para a Central do Brasil, para trabalhar, super lotado, que para entrar no vagão tinha que usar do meu corpanzil, senão ficava ba plataforma!! Que dessaudade!! hahahaha…. Abraços e fiquem com Deus.

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    1. Meu querido amigo Aylton,
      Que beleza a crônica ter lhe despertado estas saudades dos bons momentos de sua infância e de sua vida.
      E as dessaudades que sentiu foram muito bem justificadas: do trem da Central para um agradável trailer em Teresópolis!
      Muito obrigado por compartilhar suas histórias, meu amigo.
      Uma ótima semana!

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  2. Sempre otimista. Até pra criar neologismos. 🙂 Tb sinto dessaudades de muitas coisas. Bom lembrar que a gente deixa pra trás coisas boas mas outras nada boas, né? Não vejo a hora tb da dessaudade da pandemia. \o/

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    1. Queridinha Fefe,
      Pois é, me arrisquei a criar um neologismo para tentar expressar um sentimento. E, pelo seu comentário, constato que conseguiu captar perfeitamente o sentido da dessaudade…
      Obrigado por comentar.
      Beijos no Tom, comedor de manga, e uma ótima semana para vocês!

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  3. Cacau, saudades é um tema que logo me chama atenção.
    Sinto saudades de muita coisa em minha vida, porém, isso não me entristece porque me faz agradecer.
    De modo particular, acho que podemos escolher saudades e afastar os pensamentos que não são bem vindos, como também resignificar muitas situações que nos trouxeram desabores.
    Saudades é sentir que o coração tem memória.
    Cacau, agradeço pela linda crônica.
    Até Domingo, já começo a sentir saudades!
    Abração

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    1. Chico,
      Pelo que te conheço você tem maravilhosas lembranças do tempo passado e vive a saboreá-las.
      Talvez pela sua capacidade de ressignificar os acontecimentos, habilidade rara.
      Obrigado pelo comentário e pela infalível presença por aqui.
      Beijos na Helen e no Pedrão!

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    1. Caro Adilson,
      É muito bom receber um comentário como o seu, espontâneo e verdadeiro.
      Percebo que assimilou exatamente o sentido da reflexão que sugeri na crônica.
      É maravilhoso quando escritor e leitor se encontram no texto: foi isso que aconteceu!
      Uma ótima semana a você e sua família!

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  4. Caro Antonio Carlos:
    Acredito que existem coisas que nos parece “desagradáveis” nos dias de hoje, mas que ainda deixam “saudades”. Por exemplo, a máquina de escrever, o carro antigo e tantas outras.
    Realmente a sua dessaudade da vida profissional é plenamente explicável. Eu, por exemplo, devo dela me despedir no final deste ano, depois de 65 anos de trabalho ininterrupto, para desfrutar daqueles prazeres que o ócio nos proporciona, sem limites e que você bem os conhece.
    Um abraço do seu amigo e intrépido admirador,
    Sds,
    Carlos Vieira Reis

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    1. Amigo Carlos,
      No exato momento em que estava escrevendo esta crônica e citei “carro sem ar condicionado” pensei: o Carlos vai puxar minha orelha… hahahahaha
      Mas prossegui para não perder a espontaneidade do texto. Desculpe por este atentado aos carros antigos que tanto admira!
      Quanto ao encerramento de sua vida profissional é o verdadeiro descanso do guerreiro, merecido e oportuno. Se fizer uma despedida, desde já me convido a estar presente e compartilhar a alegria desta realização de toda uma vida, sempre com muita competência e integridade.
      Do seu admirador e amigo,
      Antonio Carlos

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  5. Querido amigo.
    Nessa bela crônica você conseguiu dar um grande nó quando fala do sentimento saudade ,da análise do plural da palavra na nossa e da linguagem e da dessaudade.Quanto ao primeiro fico com a frase ” saudade é uma dor de ausência que temos prazer em sentir”. Isso é muito lindo. Acho a saudade um sentimento sublime… A polêmica do plural da palavra, única na nossa língua, por ser um substantivo abstrato, acho uma grande bobagem… Vamos usar o plural pois assim temos muitas histórias para contar e recordar…. Quanto a dessaudade só mesmo na sua fértil imaginacao , querido amigo. Parabéns.

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    1. Querido amigo Nei,
      Compartilho do seu destaque para a frase sobre a dor da saudade proporcionar prazer: isso é muito interessante.
      A questão do plural de fato não tem importância. Vamos fazer o seguinte: deixamos a “raiva” sempre no singular e as “saudades” sempre no plural, ok?
      Uma ótima semana e manda um carinhoso beijo para a Jaciara!

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  6. Meu jovem amigo e irmão, Antônio Carlos.
    Gostei muito e permita concordar com a sua sabedoria ao definir: “A crônica é principalmente um estilo livre”, como também livre é a nossa imaginação e pensamentos.
    Em nosso coração ❤️ reside também a caridade, princípio das nossas atitudes em lidar com a vida do próximo e de como agimos.
    Obrigado!

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    1. Meu querido amigo Osluzio,
      Seu comentário destaca a liberdade, algo imprescindível em nossa vida. E de fato a crônica tem esta qualidade.
      Como você bem disse, esta liberdade destrava a nossa imaginação e pensamentos. Isso mesmo!
      Muito obrigado, meu amigo.
      Desejo uma semana maravilhosa a você, Nazaré e suas meninas!

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  7. Se eu pudesse eleger só uma das suas crônicas como a melhor, seria essa, sem duvida!
    Estava ouvindo uma coletânea de Chico Buarque a quem tenho imensa admiração como musico e compositor, e sentindo uma imensa saudade de momentos que vivi, da qual agradeço a Deus por te-los vivido. Obrigado pela sua inspiração nessa crônica. Hoje lhe desejo profundamente que Deus o abençoe. Boa semana.

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    1. Amigo Luigi,
      Talvez eu me estenda um pouco, mas preciso compartilhar com você o impacto de sua primeira frase.
      Você é um leitor especial para mim, pois me acompanha desde a primeira crônica. Além de ler com absoluta assiduidade, ainda dedica tempo a comentar, de modo igualmente infalível.
      Este retorno do leitor é ouro para o escritor… É uma das maravilhas de ser um escritor on line!
      Ao terminar de escrever uma crônica fico a imaginar como irá repercutir (e quase sempre me engano… hahahaha). Esta, em particular, vinha sendo construída na minha imaginação, mas aguardando o momento certo de se concretizar. Ao concluir tive muitas dúvidas se seria bem compreendida.
      Aí vem você, com a autoridade de quem leu e comentou TODAS as crônicas e me surpreende ao dizer que esta seria, sem dúvida, a minha melhor. Luigi, são essas coisas que me encantam na escrita e me levam a desejar escrever mais e mais.
      Você é uma das pessoas que me motivam a prosseguir no ofício. Muitíssimo obrigado por isso!
      Um afetuoso abraço!

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      1. Me sinto honrado, de verdade, pelas suas palavras. Meus comentários sao, somente, fruto dos meus sinceros sentimentos no prazer de ler suas crônicas e de, de alguma humilde forma, incentiva-lo. Abraços meu amigo.

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  8. Meu amigo Sarmento,
    agora você me fez lembrar de uma das muito poucas trovas que meu pai nos deixou em seu livro de memórias:
    “Vou lhe contar uma verdade
    Que aprendi desde criança:
    Só o amor deixa saudade.
    Tudo mais deixa lembrança.”
    É exatamente assim!

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    1. Querido amigo Galvão,
      Com grande prazer recebo seu comentário!
      A graciosa trova de seu pai merecia ser reproduzida neste ambiente de textos e leituras. Não imagino uma melhor forma de diferenciar saudade de lembrança…
      Muito obrigado por compartilhar!
      Grande abraço e uma excelente semana!

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  9. Como é rica a imaginação dos poetas! Mexer com palavras e inventá-las é uma brincadeira gostosa!
    Sua crônica reacendeu um pavio que mantenho em chama baixa com cuidado. O lugar da saudade é campo sagrado, não é só o espaço da lembrança boa de antigamente, mas também o universo onde a vida tem sentido.
    Quanto a dessaudade, vou refletir melhor…
    Parabéns pela criatividade, é um prazer enorme ler seus textos.
    Um abraço afetuoso.

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    1. Querida Helena,
      Entendi perfeitamente seu comentário e o pavio em “chama baixa”…
      De fato mexer com as palavras é um universo divertido e ao mesmo tempo profundo. Mas como é bom deixar a imaginação voar por aí, errante, sem caminho e sem muitos limites.
      Muitíssimo obrigado por comentar. Suas observações são preciosas para mim!
      Uma ótima semana e um carinhoso abraço!

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  10. Ah…que legal!!
    Meu irmão sempre tão criativo e original!!
    Despertando em nós leitores a gostosa reflexão do que realmente dá saudade e das indesejáveis desaudades!!
    Adorei o “balancete”!!!
    Bjo agradecido

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  11. Olá Prezado Amigo Sarmento, Muito bom dia, Mais uma deliciosa crônica, parabéns!!! Recomendações à Sônia e demais familiares, principalmente os de além-mar.

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  12. Gostei do tema de hoje…saudade!! Tenho muitas saudades e dessaudades de tudo que vivi. Mas, confesso que hoje sou o resultado destes sentimentos e estou feliz !!!!Bjs

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  13. Boa tarde prezado amigo Sarmento. Gostei do tema e do neologismo criado para dar sentido as lembranças que nos desagradam. No entanto, creio eu, que as saudades valem a pena serem lembradas e que as des-saudades traz sofrimento e quanto menos forem lembradas, melhor para nossa saúde mental.

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