INVÁLIDO

Uma palavra me fez interromper a leitura de um ótimo clássico da literatura russa. Na obra, escrita no final do século 19, deparei-me com a palavra “inválido”. Referia-se à uma pessoa adoecida há longos anos, que usava uma cadeira de rodas, pois não mais possuía força para caminhar e precisava de apoio para realizar todas as suas atividades diárias.

Parei a leitura.

A palavra me impactou. Um ser humano pode ser inválido? Fui aos dicionários e, de fato, a palavra estava aplicada corretamente. Na nossa língua este adjetivo pode ser usado para classificar alguém que não consegue trabalhar por velhice ou enfermidade, que esteja fraco e debilitado para a atividade profissional. E a palavra não está em desuso. Há muitos exemplos nos regulamentos de seguros e leis da previdência social.

Mas o termo me incomodou.

No domingo passado, eu estava na missa, sentado exatamente junto ao corredor central. O banco que ocupava e também o da frente eram menores que os demais, restando um espaço vazio, destinado a alguém em cadeira de rodas.

Pois bem, chegou um casal e acomodou-se ao meu lado. Ele estava numa cadeira dessas modernas, elétrica, com assento acolchoado, volante, faróis e até espelho retrovisor. Peço ao leitor que aceite esta explicação mais detalhada, pois, por motivos óbvios, eu não poderia apenas usar a expressão cadeira elétrica…

Era um senhor de uns 80 anos, acompanhado da esposa, aproximadamente da mesma idade. Entretanto, ela se deslocava sem necessidade de ajuda. Logo conseguiu uma cadeira de plástico e sentou-se atrás do marido, bem ao meu lado. Ofereci a ela um sorriso, imediatamente aceito e retribuído com o brilhar de seus olhos azuis e um leve espichar dos lábios.

Enquanto a missa não começava fiquei observando o piloto do veículo. Cabelos bem cortados, penteados, barba feita e cheirando a lavanda. Trajava uma camisa branca com listras azuis escuras, bem passada e de colarinho elegante. Permitam-me continuar na camisa: as mangas eram compridas, mas estavam arregaçadas cuidadosamente, em dobras bem-feitas. Fiquei a imaginar se foi ele mesmo que teve esta habilidade ou se precisou da esposa do sorriso fácil. Notei que tinha movimentos firmes nas mãos, sem tremores ou vacilos e decidi que foi obra dele, sujeito caprichoso e hábil em dobrar mangas de camisa, talento do qual eu careço…

Segui nas conjecturas e no exame do meu vizinho. A calça era preta, de algodão, tipo jeans, mas sem manchas nem desbotados. Desci pelas pernas, notei as bainhas com bom acabamento e terminei minha observação nos sapatos, aliás, o que mais apreciei. Eram de lona preta, sola branca e pespontos diversos em linha grossa também branca, formando um belo calçado. O mais interessante é que estava impecável, como numa vitrine.

Achei admirável tanto esmero no vestir… Era como um jovem, ativo, vibrante com a vida, caprichoso, desejando se apresentar bem e esbanjando boa aparência.

A missa começou e, para não cometer uma heresia, abandonei as distrações.

Mas durante aquela uma hora, confesso que algumas vezes voltei a notar a presença do casal. Ambos seguiam a liturgia com atenção e proferiam as orações. Ela levantava e sentava nos momentos certos, acompanhando tudo compenetrada e atenta. Cada vez que sentava, repousava as duas mãos nos ombros do marido: interpretei que o fazia não por conforto e sim para manter a conexão com ele. Era como ficar de mãos dadas. Coisa bonita.

Prossegui concentrado na missa até o seu final. Ao levantar-me para ir embora, percebi que ela agora alisava os ombros do marido, deslizando os dedos com delicadeza, com a ternura de quem acaricia um bebê. Fazia uma espécie de massagem carinhosa.

Antes de sair, não me contive. Resgatei o sorriso do início da missa, cruzei com o olhar azul dela e disse:

— Um ótimo domingo para vocês.

Ela devolveu um sorriso aumentado, acenou com a cabeça e desejou-me o mesmo. Tive vontade de ficar mais com eles, saber de sua história, da vida que levavam, elogiar o trato pessoal de ambos e dizer que observá-los foi para mim como assistir um filme romântico.

Fiquei imaginando alguém na presença dela chamar aquele homem de inválido. Seria ofensivo e inadmissível: o amor da companheira dava a ele a validade que as pernas negavam.

Me desculpem, mas se eu pudesse aboliria este uso da palavra inválido. Deixá-la-ia apenas para documentos nulos ou ultrapassados e para coisas que tenham esgotado seu prazo de validade, nunca para pessoas.

Não é válido chamar alguém de inválido.

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “INVÁLIDO”

  1. Destaco nessa maravilhosa crônica o cuidado e esmero com que você dedica a descrição do casal. Belo senso de fina observação. Coisa, creio eu, de um cronista com “C” maiúsculo. Que beleza, que delicadeza.
    Que satisfação ler sua descrição, quase poetica. Só me resta, feliz, deseja-lo uma boa missa nesse domingo e aguardar a próxima crônica.

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    1. Amigo Luigi,
      Seu comentário também é rico em beleza e delicadeza. Deixa evidente sua fina sensibilidade.
      Obrigado pelas generosas palavras!
      Grande abraço e uma maravilhosa semana a você e sua família.
      Deus os abençoe!

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  2. Querido amigo Antônio Carlos, bom dia, depois de ler a crônica de hoje, lembrei que “inválido” é a pessoa que vive sem um objetivo na vida ou então que nunca teve um sonho ou deixou de sonhar, independentemente do seu estado físico. Este senhor com certeza ainda sonha, pois senão não iria “conversar” com Deus na missa!
    Aproveitando, parabenizo pelos três anos de excelentes crônicas. Rogo a Deus que continue lhe dando saúde, inspiração e tranquilidade para a continuação deste trabalho maravilhoso. Um grande e afetuoso abraço e fiquem com Deus.

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    1. Meu querido amigo Aylton,
      Muito obrigado por suas generosas palavras.
      Sei que acompanha as crônicas todos os domingos e agradeço por sempre comentar e me incentivar neste trabalho.
      Gostei do seu conceito de inválido…
      Grande abraço!!!

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  3. Você como sempre atento aos detalhes, que só olhos do coração enxergam.
    Cacau, eu só não tiraria a palavra inválido de uso em virtude de tantas pessoas que não tem os mesmos desafios que o senhor citado, mas não fazem nada por ninguém e nem por eles mesmos.
    Esses são os inválidos que não acordaram para a vida, para o amor e que merecem apenas a nossa compaixão.
    “Deus nos deu vida e vida em abundância.”
    Ótima crônica!
    Beijos

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    1. Amigo Chico,
      Muito obrigado pelas palavras. Sei que você vê o mundo com os olhos do coração, como mencionou.
      Você e o Aylton possuem uma opinião parecida sobre os verdadeiros inválidos…
      Grande abraço e uma ótima semana!

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  4. Verdade. Por isso de tempos em tempos mudam-se os termos: criança atípica, afrodescendente, homossexual, etc. Não temos que achar mimimi porque o termo coloca muito sentimento no que se diz.

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  5. Concordo com você, amigo, o termo não deveria ser usado para pessoas.Com o envelhecimento, as limitações chegam e outras potencialidades aparecem, como a capacidade de perceber as pequenas maravilhas da vida.
    Todo ser humano tem sempre algo importante para partilhar, temos que observar isto atentamente.
    Quanto vale um sorriso, um gesto carinhoso, um olhar benevolente?
    Linda crônica, lição de sensibilidade!
    Um excelente domingo!

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    1. Querida Helena,
      Isso mesmo! A vida é sempre rica: basta ter olhos para ver e coração para sentir.
      O amor tudo embeleza e confere validade a todas as pessoas, não é?
      Muito obrigado pelo constante incentivo aos meus escritos.
      Uma maravilhosa semana, cheia de sorrisos, carinhos e olhares bondosos!!!

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  6. Excelente. Na SBBA, onde fazia aulas de pintura, tinha uma sala de aula para pintores com a boca. São histórias de vida maravilhosas e de muita superação, um exemplo para todos. Inválidos? Não são, como muitos outros também não são. Chega até a soar esquisito, pois são artistas de primeiríssima qualidade. Amei essa crônica

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    1. Cris,
      Ainda outro dia assisti a um filme baseado em fatos reais em que uma pessoa fica tetraplégica, sem voz e o único movimento que possui é o piscar dos olhos. Pois bem, com ajuda de uma pessoa e um código, escreve um livro contando toda a sua história. Ninguém é inválido!
      Bem lembrado sobre os pintores com a boca e os pés: fazem um trabalho maravilhoso! Recebo cartões produzidos por eles e são belíssimos.
      Beijos e grato por comentar!

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  7. Linda descrição Cacau,quanta sensibilidade ao descrever a cena e tocar nossa alma pra validar as múltiplas habilidades de todos os seres humanos.
    Parabéns e obrigada pelos 3 anos desse deleite dominical !!!

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    1. Oi minha irmã,
      Um texto só consegue tocar a alma de quem também tem muita sensibilidade, como é o seu caso.
      Obrigado por me acompanhar nestes três anos e sempre comentar. Você está entre aquelas pessoas que me incentivam a continuar o trabalho!
      Beijos e que sua semana seja uma música em Tom menor…

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  8. Prezado Amigo Sarmento, Muito bom dia, Mais uma espetacular crônica, me impressiona a sua riqueza de detalhes, de forma tão sensível. Com certeza, o ser observado transcendeu a aparência física . . . Parabéns!!! Recomendações à Sônia e demais familiares.

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