PERDIDAS

Nunca podemos dizer que já passamos por todo tipo de experiência. Tem sempre algo diferente acontecendo em nossas vidas.

Foi assim que meu amigo Luiz Antonio começou o seu relato. É tão generoso que lê minhas crônicas, comenta-as e ainda acrescenta suas próprias histórias, compartilhando lembranças e sentimentos.

Com autorização dele, reconto a história usando minhas próprias palavras. Desde logo, dou razão à sua primeira frase, pois reescrever um caso é algo que só agora experimento. Vamos ao episódio.

Era noite de sexta-feira, próximo das 23 horas. Na calma de casa, ele assistia a um filme na televisão, enquanto sua mulher já cochilava no sofá. Meio sonolento, achou ter ouvido um leve toque da campainha, que parecia vir da porta de serviço. Com a audição prejudicada no lado esquerdo, ficou em dúvida e desligou o som da televisão para melhor apurar a ocorrência.

Logo a seguir, escutou um novo toque de campainha, agora mais forte e prolongado, seguido de algumas batidas na porta. Sua mulher acordou com o barulho. Não havia mais dúvida, alguém estava à porta.

Achou muito estranho, já que o porteiro não havia interfonado e não esperava visitas ou qualquer pessoa em horário tão tardio. Veio logo uma sensação de perigo. Pensou que também poderia ser algum vizinho com uma reclamação ou solicitação.

Chegando à porta de serviço, Luiz Antonio percebeu a luz do corredor acesa pela fresta inferior, confirmando a presença de alguém. Recorreu ao olho mágico. Na linha normal de visão nada havia, mas pôde perceber um vulto mais abaixo. Neste exato momento, novas batidas na porta e ele conseguiu então notar que era uma criança, sozinha.

Abriu imediatamente a porta.

Deparou-se com uma pequena menina, de olhos castanhos, morena, com um belo vestido, sapatos delicados e o cabelo trançado, bem penteado, aparentando estar preparada para uma festa. Uma coisinha linda.

Ela olhou-o determinada, séria e sem chorar:

— Eu quero a minha mãe.

— Sim. Você veio de onde?

— Eu quero a minha mãe.

— Sim, pode ficar tranquila. Quantos anos você tem?

Ela estendeu a mãozinha e mostrou três dedos.

Sua mulher a esta altura já ligava para a portaria. O interfone estava ocupado…

— Você sabe o nome da sua mãe? — indagou Luiz Antonio.

— Daniela — respondeu, sem titubear.

Nova tentativa de contato com o porteiro. Desta vez atendeu! Ele já sabia que havia uma menina perdida e a família estava toda lá embaixo, desesperada.

Logo em seguida, uma tia veio buscá-la, pois os pais estavam em choque, abalados e aos prantos.

O fato é que a menina estava com os pais em visita à uma família no décimo andar, mas como havia muita gente na sala, deixaram a porta aberta. Por ali, a pequena saiu, pegou o elevador que provavelmente estava parado no andar, apertou o oitavo e foi parar na porta do Luiz Antonio.

Reproduzo o final do seu relato:

Tive este presente e acho que jamais a verei novamente. Uma menina linda, calma, firme e determinada, que enfrentou esta situação tão difícil aos três anos de idade. Agradeço a Deus por ter contribuído para a solução feliz da história.

Terminei de ler o relato do meu amigo e fiquei pensando nos pais, que viveram momentos de extrema angústia e sofrimento. Voltei mais uma vez à sua primeira frase sobre as experiências que a vida nos proporciona e me veio à mente e ao coração a lembrança de que também passei por algo semelhante.

Foi num supermercado. Estávamos eu, minha mulher e minha filha, que contava uns 3 ou 4 anos na ocasião. Pouco tempo depois de entrarmos e iniciarmos a peregrinação pelas prateleiras, passamos por uma seção de brinquedos. A garotinha correu em direção a eles e encantou-se com um carrinho de compras, de plástico, vermelho e branco.

— Eu quero, eu quero — dizia, já empurrando o dito cujo pelo corredor.

Naturalmente, negamos o presente extemporâneo e prosseguimos na enfadonha tarefa das compras mensais, percorrendo o labirinto de prateleiras, uma a uma, em busca dos produtos desejados.

De quando em quando era necessário pegar a calculadora para comparar preços, bem como recorrer à lista de compras, nunca organizada de acordo com o layout do supermercado, o que torna a tarefa ainda mais trabalhosa.

Seguimos ziguezagueando, até que após uma distração de segundos, demos pela falta da nossa pequena. Um achava que o outro estava de olho e cuidando da menina. No futebol seria aquele famoso “deixa que eu deixo”. Ou a velha história de que cachorro que tem dois donos morre de fome.

Aí veio o pavor. Largamos o carrinho com as compras e saímos, um para cada lado, atrás da nossa filha, imaginando que a encontraríamos em um dos corredores mais próximos.

Mas o tempo foi passando, os corredores se sucedendo e a garotinha não aparecia. Cada minuto a mais trazia um aperto maior no peito e um senso de urgência. Era preciso encontrá-la o quanto antes.

O coração batia descompassado, sem cadência nem paciência. A cabeça estava confusa, sem clareza, só tristeza.

Encontrei minha mulher em um determinado ponto, também totalmente transtornada. Ambos de mãos vazias.

Foi nesta hora que veio o golpe fatal.

Lembramos de uma reportagem, vista poucos dias antes, que indicava haver no Rio de Janeiro uma quadrilha especializada em sequestros de crianças para retirada de órgãos. Muda o pensamento, muda o estado de espírito. O pavor aumentou exponencialmente.

Abandonamos as buscas internas e corremos para a porta do supermercado. Ali, com olhos de águia vasculhávamos o ambiente, as pessoas que entravam e saíam, o movimento nos caixas e, sem deixar de vigiar obcecadamente as portas, chamamos um funcionário para colocar a par da situação e solicitar que fossem dados avisos pelo sistema de som.

Esta agonia durou muito, o suficiente para produzirmos a maior coleção de promessas a santos de todo tipo. É uma agonia que não desejo nem mesmo ao político mais corrupto.

Até que enxergamos vindo por um dos corredores, uma funcionária com a nossa menina pela mão. Ela vinha tranquila, sorrindo e olhando para tudo com curiosidade, como se nada houvesse ocorrido. Com as mãos empurrava um carrinho de compras, de plástico, vermelho e branco…

Quando a vi fiquei em dúvida se era minha imaginação ou uma cena real, mas, um segundo depois, corremos em sua direção com lágrimas pingando e lavando o piso. Acho até que precisaram colocar aquela plaquinha: “Cuidado, piso escorregadio”.

O fato é que a criança, afeiçoada pelo brinquedo que desejava, voltou à respectiva seção e ali passeava com o maldito veículo, enquanto seus pais envelheciam 10 anos em 10 minutos.

Voltaram as sensações daquele dia quando li o relato do meu amigo.

Não pretendo ser piegas nem repetir clichês sobre o amor de pais pelos filhos, mas cito apenas uma frase que gosto muito:

Ao olhar para o meu filho, sempre penso: quem deu vida a quem?

Antonio Carlos Sarmento

30 comentários em “PERDIDAS

  1. Quem nunca perdeu um filho num segundo de desatenção que atire a primeira pedra. É um sentimento de impotência, uma angústia que não dá pra descrever, a não ser que seja um cronista fantástico como você. Beijão em todos!

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  2. Creio, meu amigo, que todos ja passamos por situações identicas. Eu, a última delas, passei com meu neto que hoje tem 13 anos e a epoca tinha uns 5. Até hoje me emociona e tenho um msl estar de lembrar. Mas, emoção, se bem tratada, é um sentimento que nos humaniza. Bom fim de semana e fiquem com Deus.

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  3. Nooossaa….que frase perfeita! Verdadeira e profunda!!!
    Filhos dão vida à nossas vidas e a possibilidade de perdê-los é uma ameaça devastadora!!
    Lindas histórias e todo amor contido nelas!!!
    Feliz dia dos pais pra esse irmão que é tem o coração de uma “mãe “!!!

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    1. Minha irmã,
      Isso mesmo. A vida que chega transforma e traz vida aos pais e também aos avós, não é?
      Por aqui não é dia dos pais, mas comemoramos como se fosse, claro.
      Obrigado por sempre comentar.
      Beijos e que tenham uma ótima semana!

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  4. Prezado Antonio Carlos:
    Acho que depois desse perigoso episódio, você deveria ter comprado o carrinho para sua querida e estimada filha, de modo a deixá-la ainda mais alegre, depois do reencontro.
    Sds. do seu eterno leitor e admirador.
    Carlos Vieira Reis

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  5. Bom dia meu querido amigo Antônio Carlos, acho que todos os pais já passaram por isso, principalmente em supermercados. O nosso filho Rodrigo por algumas vezes nos assustou com a mania de esconder-se nos corretores entre as gôndolas! Até que um dia “armamos” para ele e deixamos ele sozinho em um corredor mas ficamos na espreita só observando do a reação! Aí ele entrou em pânico e começou a chorar e evidentemente nós o acolhemos com muito carinho! Nunca mais ele nos pregou este tipo de susto! O Rodrigo era muito levado! Mas sentimos uma grande falta destes momentos da infância dos nossos filhos. Desejo a você um excelente “Dia dos pais”. Um grande abraço e fiquem com Deus.

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    1. Amigo Aylton,
      Obrigado por compartilhar suas histórias.
      Agora temos o privilégio de poder matar um pouco a saudade da infância dos filhos com os nossos netos.
      Um grande abraço, meu amigo e que tenham uma excelente semana!

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  6. Prezado Amigo Sarmento, Muito bom dia, Feliz Dia dos Pais!!! Muito sensível, como sempre, essa crônica no dia de hoje, sobretudo pela expressão: Ao olhar para o meu filho, sempre penso: quem deu vida a quem? Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, Jean e demais familiares.

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  7. Uma tortura essas situações. Acho que todos já tiveram alguma.
    Para ser rápida, fui a um banco na rua Voluntários da Pátria, mas estacionei meu carro no supermercado ao lado.
    Enquanto recebia um talão de cheques e assinava o comprovante de recebimento, minha filha também de 3 anos sumiu. Procurei pelo banco e alguém me disse que a viu saindo pela porta. Olhei para a rua e o tráfego de carros estava normal, o que já não foi tão ruim. Saí e fui em direção ao supermercado, quando passei por um funileiro que me disse ve-la entrando no estacionamento.
    Fui direto ao carro e ela não estava lá. Decidi entrar no supermercado e ouvi no boca de ferro alguém procurando a mãe de uma menina. Era ela. Ufa!!!

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  8. Eu passei pir situação semelhante, perdemos o Bruno , na época com 5 anos , na praia lotada ( Barra).
    Sempre orientei que se em algum momento, seja qual o lugar , sentindo-se sozinho parasse e esperasse que eu o encontraria.
    Bem, foram os 20 minutos em que a emoção daquele momento dura até hoje.
    É inimaginável o que se passou com os pais, na situação da garotinha. Felizmente foi bater na porta de uma família muito especial. E tudo resolvido Graças a Deus!

    Esses momentos de tensão, são aqueles que gostaríamos de ter a máquina do tempo para que minutos antes não tivéssemos nos distraídos. Essa mesma máquina do tempo poderia fazer o tempo ir mais devagar para desfrutarmos mais e mais desse amor imenso que nunca acabará, mas que um dia não estaremos presentes.
    Portanto, aproveitemos o presente presente.

    Beijos

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    1. Chico,
      Imagino a aflição de terem perdido o Bruno. Em praia lotada a coisa deve ser ainda mais angustiante…
      O caso da garotinha foi contado pelo nosso amigo Luiz Antonio. Realmente a menininha deu sorte de encontrar essa alma boa!
      No mais é como você bem disse aproveitemos o presente: é por isso que tem esse nome.
      Beijos e uma ótima semana!

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  9. Uma boa pergunta para uma nem sempre fácil resposta…
    Felizmente nunca passei por uma situação semelhante, mas deve ser dos momentos mais dolorosos e inesqueciveis para qualquer pai/mãe.
    Certamente uma experiência que ninguém deseja!

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    1. Dulce,
      Felizmente você foi poupada desta angústia.
      Mas certamente imagina os sentimentos que nos assolam em tais momentos. O amor pelos filhos é tão grande que a possibilidade de uma perda nos descontrola.
      Obrigado por comentar e desejo que tenham uma excelente semana!

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  10. Parabéns, uma bela crônica para refletir sobre os cuidados para com os filhos.
    Um fraterno abraço meu jovem e bom amigo Antônio Carlos.

    Osluzio Félix

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  11. Querido Cacau,
    Uma linda homenagem ao dia dos pais, descrevendo esse amor intenso que os pais oferecem aos filhos.
    Isso me levou à reflexão mais preciosa e confortadora de todas as que suas crônicas já me inspiraram: se nós, humanos, limitados, amamos nossos filhos e nos doamos com tanto fervor, o que podemos dizer do amor e dos cuidados que o Pai, o Ser Perfeito, nos dedica?
    Esse amor transcedente nem conseguimos mensurar, mas podemos descansar nessa vigilância amorosa, nessa provisão que não se compara.
    Uma certeza que reanima e dá segurança.
    Um beijo, meu primo.
    Sempre receba meu abraço pelo carinho que dedica a seus queridos.

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    1. Querida prima Gena,
      Que bom esta crônica ter proporcionado a você uma reflexão tão preciosa, que lhe trouxe ânimo e segurança.
      Muito obrigado por compartilhar: assim, podemos também meditar sobre os pensamentos que você nos traz.
      Particularmente, aproveitei muito suas palavras.
      Obrigado, prima!
      Um beijo e que tenha uma ótima semana!

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