Sempre que vou jantar em um restaurante, peço logo a carta de vinhos, mesmo que não pretenda beber. Aliás, não sei porque se chama carta e não cardápio, menu ou lista de vinhos…
Sinto prazer em examinar as alternativas, identificar os rótulos que conheço e outros que podem ser interessantes provar. Sinto certo prazer neste encontro com vinhos conhecidos e apresentação à desconhecidos.
Também os preços me despertam curiosidade, especialmente dos vinhos mais caros, que alcançam preços inacreditáveis. Costumo avaliar quantas garrafas de um rótulo que aprecio na carta poderiam ser pedidas com o valor do mais caro. Pois bem, na carta que examinei recentemente, com o valor do vinho mais caro seria possível pedir 218 garrafas daquele que eu escolheria. É espantoso!
Estes números me levam a muitas reflexões, mas fica para uma outra crônica, talvez.
O fato é que eu gosto de vinho, gosto da França e gosto também de algumas frases sobre a bebida, como, por exemplo, uma de Napoleão Bonaparte. O imperador estava sempre em batalhas e encontrou o álibi perfeito para degustar uma taça em todas as circunstâncias. Dizia a respeito desta bebida milenar:
Nas vitórias é merecido, nas derrotas é necessário.
Outro francês, Marcel Proust, mais profundo e literário, cunhou esta preciosidade:
Com o passar dos vinhos, os anos ficam melhores.
Concordo com estes franceses!
O assunto faz aflorar na minha memória uma história real vivida por um amigo há muitos anos. Era um período no qual as churrascarias tipo rodízio estavam em alta no Rio de Janeiro, como em todo o Brasil, ali pela década de 1980.
Uma das mais sofisticadas e caras da cidade ficava no Aterro do Flamengo, de onde se vislumbrava aquela que é talvez a mais linda vista da cidade. Este meu amigo lá esteve para um almoço com a mulher e seus dois filhos.
A vantagem da churrascaria rodízio é que não é necessário escolher o prato: come-se todo o cardápio. Sendo assim, meu amigo apenas pediu a carta de vinhos, fez sua escolha e, logo que tomou o primeiro gole, iniciou-se o interminável desfile de cortes de carne, que abocanhou com disposição e prazer. Impossível uma refeição mais variada e volumosa. Ali o pecado da gula era levado ao apogeu…
Na hora da conta, houve a desagradável surpresa. Uma das crianças, com 5 anos de idade, que apenas beliscou umas batatinhas e a maior parte do tempo divertiu-se com seus brinquedos à mesa, foi incluída na despesa como se fora um devorador insaciável de carnes.
O maître foi chamado e meu amigo interpelou-o:
— A conta está correta? Cobraram 4 rodízios.
— Sim. O senhor, sua esposa e seus dois filhos.
— Meu amigo, um tem 14 anos, mas esta criança tem 5 anos…
— Entendo, mas é norma da casa. Todos são cobrados.
Descontente, mas impotente, percebeu que não havia alternativa. Apenas balançou a cabeça negativamente para demonstrar sua reprovação e pagou a conta, enquanto em silêncio, ruminava imprecações e palavrões impublicáveis.
Saiu dali inconformado. Não era possível resignar-se com tamanho absurdo. Aquele crime pedia vingança.
Ao longo de dias, sem compartilhar com ninguém, foi tendo ideias, umas estapafúrdias, outras inconsistentes. Precisava de algo que não terminasse na delegacia, uma coisa discreta, calma e irrefutável. Até que acabou urdindo um plano que considerou infalível. Estudou detalhes, recorreu a livros especializados e preparou-se para aplicar o golpe.
Duas semanas depois, sentindo-se apto, foi sozinho à mesma churrascaria. Sabia que não seria reconhecido e assim escolheu a mesma área do restaurante, bem próximo da mesa onde havia estado com a família.
Veio o maître e ele pediu a carta de vinhos. Folheou com ar de entendedor, percorreu as páginas e chegou ao que queria. Não era o vinho mais caro, mas tinha um custo de umas dez vezes aquele que pedira da outra vez. O maître sorriu ao receber o pedido e apressou-se em buscar uma taça especial, reservada a clientes deste tipo.
Chegou o vinho, transportado com pompa. Vinha deitado, numa cesta de carregar garrafas, reproduzindo a posição da adega. O maître então abriu a garrafa com esmero, cheirou a rolha, ofereceu-a num pratinho ao meu amigo e consultou:
— Eu sou maître e sommelier. O senhor quer que eu prove?
— Não precisa. Eu mesmo provarei. Conheço bem este vinho.
Ofertada a taça com uma pequena porção do vinho, inclinou-a contra a toalha branca para observar a limpidez e tonalidade, com ares de especialista. Depois balançou levemente a taça, sentiu o aroma e sacudiu o nariz para cima. Cheirou novamente e então fez a prova definitiva sorvendo um pequeno gole.
Bochechou um pouco, engoliu e deu o veredito:
— Está acético — palavra que não conhecia até sua pesquisa preparatória do golpe.
O maître ficou lívido.
— O senhor permite que eu prove?
— Faça o que quiser. Não aprovo esta garrafa e ponto final.
O maître não se conformou e provou o vinho.
— Na minha opinião está bom.
— Esta é a sua opinião, não a minha. A decisão é do cliente, certo. Norma da casa… — saboreou esta última frase.
O maître estava embaraçado:
— O senhor quer que eu traga outra garrafa?
— Acho arriscado. Já percebeu que eu sou muito exigente. Ao invés de uma poderá perder duas garrafas. Pode ser um problema do lote que você tem aqui.
O maître estava num beco sem saída, mas ainda tentou:
— Deseja escolher outro rótulo?
— Melhor não. Fica para outro dia. Traga apenas uma água mineral com gás.
— Pois não, senhor — lamentou o maître, recolhendo a garrafa, a taça e saindo cabisbaixo.
Meu amigo almoçou, pagou o caro rodízio da churrascaria com a melhor vista da cidade e onde o maître é também sommelier.
Mas não pagou o vinho mais caro de sua vida. Pediu-o pela primeira e última vez. Apenas lamentou que a prova era muito pequena e só pode degustar um pouquinho daquele líquido dos deuses.
Saiu do restaurante pensando: “se a vingança é a justiça do homem em estado selvagem, eu hoje fui bárbaro!!!!”
Antonio Carlos Sarmento
Bom dia querido amigo.
Estamos em SP onde se bebe muito vinho e recebemos mais essa interessante crônica.
Vou mostrar pro Alexandre e tenho certeza que ele vai apoiar o seu amigo.
A enovinganca foi sensacional. Parabéns por mais crônica tão criativa.
Grande abraço a todos os portugueses.
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Querido amigo Nei,
Fico contente que tenha gostado da crônica e comentado.
O Alexandre, que é especialista, poderá avaliar e me corrigir se algum aspecto não estiver correto…
No próximo domingo será o “amigo oculto” (esta parte do comentário só você vai entender).
Grande abraço meu amigo e um beijo na Jaciara e em todos aí em São Paulo.
Retornaremos dia 2 de setembro!
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hahahaha…. Muito boa a vingança do seu amigo! Bom dia meu querido amigo Antônio Carlos! Fui muitas vezes ao Porção do Aterro! Excelente churrascaria e comida também muito boa, mas caro prá “chuchu”! Realmente, lembro-me que quando fui lá com as crianças ainda pequenas, principalmente o meu filho Rodrigo eles cobraram a família inteira! Um grande abraço e fiquem com Deus.
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Meu querido amigo Aylton,
Localizou bem a história, hein?
Era realmente assim: bom, mas muito caro…
Um forte abraço, meu amigo, beijo na Regínia e uma ótima semana para vocês!
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Prezado Antonio Carlos:
Aceite minhas congratulações por apreciar um bom vinho. Só esqueceu de dizer se tinto ou branco.
Quando mais novo, era apreciador de um bom vinho tinto português, prazer que, agora, não posso mais desfrutar.
Sds. vinículares,
Carlos Vieira Reis
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Amigo Carlos,
De fato não especifiquei se tinto ou branco. Na realidade gosto mais do tinto, mas no verão fico com os brancos.
No momento estou em Portugal e por aqui tem uns maravilhosos a preços muito mais baixos que no Brasil. Estou aproveitando!
Obrigado por comentar e lamento que não possa mais saborear um bom tinto.
Grande abraço, meu amigo! Desejo uma ótima semana!
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Hehehehehehe… nunca teria essa ideia, nem essa audácia. Mas foi uma boa estratégia.
P.s. adorei as frases dos franceses. Sempre aprendo. 😉
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Fefe,
Eu também não teria esta audácia…
Fico feliz que tenha gostado da crônica.
Beijos no Tom, que assim como o Gui, adora umas panelas!!!! hahahaha
Ótima semana para vocês!
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Kkkkk bela vingança. Se fosse nos dias de hoje, bastaria ir a uma mida social, tipo Instagram ou Facebook e soltar a “bodurna” no ocorrido “, que rapidamente alguem da churrascaria se retrataria. Passei por uma situação desagradável no mexico, num parque de aguas famoso e coloquei no Facebook o ocorrido e eles alem de devolverem aquilo que pagamos e não utilizamos, nos deram ingressos validos por um ano num lugar que jamais retornarei. Mas a vingança do vinho foi muito bem aplicada… bom domingo e boa semana. Que Deus abençoe sua familia.
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Caro amigo Luigi,
Lembrou bem o atual poder que adquirimos com as redes sociais. Muitas vezes funciona mesmo.
Muito obrigado por comentar, como sempre.
Uma semana abençoada a você e sua família. Que estejam em paz e com saúde!
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Prezado Amigo Sarmento, Muito bom dia, Que delícia, me senti vingado, eu sei que não foi um ato ético, mas o seu amigo foi certeiro . . . Mais uma vez, Parabéns!!! Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, aoJean e demais familiares.
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Amigo JH,
É curioso que ao ler que você se sentiu vingado, percebi que também tive esta sensação. Talvez tenha sido isso que me inspirou a escrever a crônica.
Obrigado pelo comentário, meu amigo.
Estamos ainda em Portugal e aqui todos bem.
Espero que você, Sueli, Luizinho, Junior, e Catarina estejam muito bem!
Tenham uma maravilhosa semana!
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Bacco e Dionísio tem tudo a ver com esses excessos cometidos em churrascarias, uma festa da carne sem o menor pudor, onde os exageros são bem vistos e cultuados.
O revide do seu amigo foi algo inusitado e com certeza a sede de vingança foi saciada com um só gole da bebida dos deuses.
Parabéns pela crônica.
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Querido Primo Rômulo,
Não sou adepto deste tipo de restaurante, como já comentei em outra crônica. Prefiro comer em ambiente calmo e sem muitos exageros…
Mas, como comentou, há quem aprecie, tanto que ainda estão por aí e até se espalhem por outros países.
Fico contente que tenha gostado da crônica e comentado.
Grande abraço e uma ótima semana a todos os seus!
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A vingança foi dos deuses!!! Parabéns pela crônica!!! Bjs
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Oi Prima,
O vinho era dos Deuses e a vingança também foi…
Fico feliz que tenha gostado.
Beijos e uma ótima semana, prima!
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Ótima crônica!
Gosto dessa bebida milenar.
Napoleão estava certíssimo sobre o vinho.
Penso que o seu amigo foi muito rigoroso na vingança, poderia ter perguntado antes, pois churrascaria rodízio cobrava mesmo dessa forma.
Abraços e ótima semana!
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Amigo Newton,
Muito grato por comentar.
Fico pensando, quando poderemos tomar um vinho juntos?
Um saudoso abraço a você e Nuri!
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Kkkkkk…..
Como dizia Chico Anisio, a “vingança foi malígna”. Muito bem pensada!!!
Adorei Cacau!!!!
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Minha irmã,
Fico feliz que tenha gostado.
Lembrou bem o Chico Anysio.
Uma ótima semana, minha irmã!
Beijos.
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Vingança das boas! Se é possível classificar uma vingança.
Geralmente procuramos esquecer logo uma situação semelhante, para não termos o tal do stress!
Agora, uma vingancinha saborosa como essa somente uma boa churrascaria pode proporcionar! 🤣
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Meu amigo Rodolpho,
Obrigado por comentar.
Sei que é apreciador de vinhos e assim a crônica tem um sabor especial…
Espero que estejam bem. por aí. Nós estaremos de volta no início de setembro.
Grande abraço e uma ótima semana, meu amigo!
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Querido primo,
Podemos dizer que , literalmente, seu amigo provou o sabor da vingança. Mas tenho dúvidas se o gosto agradou tanto quanto o de um delicioso Cabernet Sauvignon.
Sou totalmente solidária à indignação que sentiu, contudo, a represália, como diria um bom sommelier, torna o coração acético.
Valeu muito a leitura da crônica, sempre com sua criatividade e leveza. Se não ficamos atentos, corremos até o risco de nos tornarmos cúmplices de seus personagens engenhosos .
Então, em homenagem ao cronista que se dá a conhecer pelos seus textos, ora com humor para relaxar, ora com valores para preservar, ora com emoção para comover, a máxima de Cícero:
“Os homens são como os vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons”.
Beijos para os queridos cariocas da Santa terrinha
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Querida prima,
Mais uma vez agradeço seus preciosos comentários.
Interessante com o vinho atravessa a história e acompanha a humanidade ao longo do tempo. Eu citei Napoleão e você retrocedeu ainda mais ao lembrar Cícero e sua ótima frase.
Desejo uma maravilhosa semana a você, suas meninas e seus netinhos!
Beijos em todos!
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A vingança foi perspicaz, mas a forma de contar foi uma experiência aguçada. Sempre um bom texto. Abs!!
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