GRAVIDADE E GRAVIDEZ

Lembrança ruim ou boa vem à tona sem explicação. É o prodígio da nossa mente, tão sofisticada que, mesmo com os avanços da medicina e da tecnologia, continua a ser um grande mistério.

Às vezes estamos alegres e a mente querendo ser de oposição, traz algo que preferíamos não lembrar. Outras vezes, em meio a alguma tristeza, uma boa lembrança vem nos presentear. E ainda, vez por outra, uma recordação do passado se apresenta sem razão, independente do nosso estado de espírito. Há ocasiões em que a mente parece navegar a seu próprio critério e nós somos mais passageiros que comandantes.

Hoje mesmo, vinha dirigindo o carro na volta para casa, quando em meio a pensamentos corriqueiros, aflorou de repente um fato ocorrido há 35 anos. Sei o tempo exato, pois minha mulher estava grávida de nossa única filha.

Morávamos no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo. Certo dia, ali pelo sexto mês de gravidez, fomos juntos a um supermercado perto de casa para pequenas compras. Tudo transcorria normalmente, quando uma senhora de uns 60 anos surgiu na nossa frente descontrolada, avisando que havia um assalto em curso:

— Bandidos, bandidos, com armas — gaguejava ela com os olhos esbugalhados, aterrorizada e sem saber o que fazer.

Soltou a notícia e ficou aguardando a nossa reação. Parecia uma pessoa perdida na floresta que acaba de encontrar uma bússola: tive logo a certeza de que ela seguiria o nosso norte, fosse ele qual fosse.

Olhei em volta e não vi nada de anormal, mas percebi um silêncio diferente, atípico, alarmante. O silêncio fala. Depois da informação daquela senhora, o silêncio gritava, anunciando o perigo.

Fui tomado por um senso de urgência. Era preciso fazer alguma coisa e rápido. Meu pensamento foi no sentido de buscar uma defesa, uma proteção física, um esconderijo ou qualquer coisa que pudesse nos tirar da posição de alvo fácil. Não era possível ficar à mercê de bandidos como um produto exposto naquelas prateleiras.

Próximo de nós havia uma área de venda de geladeiras e fogões. Ali alguns eletrodomésticos eram exibidos como manequins numa vitrine. Uma fila de geladeiras para cá, fogões em linha para lá, tudo arrumado como uma ratoeira para capturar as clientes que possuíam em casa uma geladeira velha e um marido avarento.

Não hesitei, pois quando a gente só tem uma alternativa não cabe indecisão.

Peguei minha mulher pela mão e convidei com um aceno a mensageira do apocalipse, indicando para nos seguir. No primeiro espaço possível, atrás de uma barreira formada por três geladeiras, uma de cada cor, deitamos no chão para escapar da vista do inimigo. Eu de bruços, a anunciadora de eventos funestos também e minha mulher deitada de costas, olhando para o teto, já que a barriga dilatada impedia que ficasse na posição de guerrilha.

O silêncio só fazia aumentar. Quanto menos barulho, mais medo e preocupação nos invadia. Passei o braço por cima da minha mulher na altura dos ombros para demonstrar meu desejo de protegê-la. Ela estava calma e quieta. Naquele momento me ocorreu que nós éramos duas pessoas e três vidas em risco. Eu preferia estar sozinho, mas ali estavam juntos todos os meus sonhos…

Foi quando a propagandista do cemitério se descontrolou. Mergulhou a cabeça entre as mãos e passou a choramingar:

— Eu vou morrer, eu não quero morrer, eu não posso morrer, eu vou morrer, eu não quero morrer, moço, pelo amor de Deus, eu não posso morrer…

A cena me comoveu e preocupou. Eu preferia estar sozinho como ela estava, mas acho que ela queria estar acompanhada como eu. O desamparo da solidão num momento destes é arrasador.

 — Senhora, fique calma. Ninguém vai morrer aqui — disse eu, sem nenhuma convicção.

— Ai meu Deus, eu não quero morrer, eu não posso morrer…

— Eu vou tirar a minha mulher e a senhora daqui a são e salvo, ok? Pode ficar tranquila. E não faça barulho para não atrair a atenção. Fique apenas rezando baixinho e tudo vai dar certo. Pode contar comigo. Daqui a pouco tudo vai passar e voltaremos para nossas casas. Fique calma, por favor.

Mal acabei a sessão de cura da síndrome do pânico e vi passar um policial com os dois braços esticados para a frente e uma arma nas mãos. Agora eu precisava que alguém curasse o meu pânico…

Ele caminhava cautelosamente, como numa cena de filme. A presença da polícia era bem-vinda, claro, mas eu temia pela possibilidade de um tiroteio. Achei melhor não falar nada às minhas companheiras de trincheira. Deixei uma rezando com o rosto entre as mãos e a outra olhando para o teto. Estavam ambas controladas e um fato novo poderia desestabilizar a situação.

Permanecemos ali. Três geladeiras, uma de cada cor. Três pessoas, cada uma com a sua dor. A fragilidade da vida evidenciada para nós de forma concreta, verdadeira e visível, tal qual uma fratura exposta.

E aquele silêncio amedrontador continuava a ensurdecer os nossos ouvidos. O pior daquele silêncio era o suspense. Ao mesmo tempo a gente desejava que ele acabasse e que permanecesse, pois seu desfecho poderia ser o alívio ou o martírio. Que agonia viver esta incerteza.

Mais alguns minutos, daqueles que duram horas e vi um rapaz com uniforme do supermercado caminhando próximo ao nosso esconderijo. Chamei-o com um temeroso psiu. Ele se aproximou e deu a boa notícia:

— Vocês já podem sair. Os bandidos escaparam pelo depósito dos fundos.

Foi a única vez em que comemorei fuga de bandidos…

— Mas o que aconteceu afinal? — indaguei.

— Eles estavam sendo perseguidos pela polícia e se refugiaram aqui no supermercado. Agora já se foram.

Enquanto eu ajudava minha mulher a se levantar, a tal senhora deu um pulo e disparou para fora do estabelecimento sem sequer se despedir. Foi a forma dela de reagir ao final feliz. Claro, cada geladeira de uma cor…

Resolvemos abandonar as compras e voltar a pé para casa. No caminho fomos em silêncio por algum tempo, acalmando o coração e respirando fundo. Até que minha mulher quebrou o gelo:

— Que susto, hein?

— Foi. Descobri uma coisa sobre a nossa cidade.

— O que?

— Aqui toda gravidez é de risco!

Antonio Carlos Sarmento

25 comentários em “GRAVIDADE E GRAVIDEZ

  1. Essa é a nossa realidade, a gravidez é de risco e quando nascemos os riscos aumentam.
    O preço que pagamos em morar em cidade grande é caro, em virtude dos riscos e sustos.
    Embora tenhamos estratégias, não existe um só lugar que estejamos 100% seguros…

    Quanto as lembranças, são inevitáveis , porque as nossas memórias são sobrepostas e basta um gatilho qualquer para despertá-las. É incrível! Coisas que parecem estar esquecidas, mas estão ali guardadinhas…

    Ótima crônica, para variar.

    Bjs

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    1. Chico,
      Obrigado por comentar, meu irmão.
      Este “gatilho” é um grande mistério: dispara a seu próprio critério, sem que tenhamos como entender e muito menos controlar. A memória é sem dúvida mais uma das maravilhas da natureza humana.
      Desejo uma ótima semana a você, Pedrão e um bom retorno para Helen!

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      1. Apesar do pânico, ri!! As nossas reações são imprevisíveis e vamos vivendo as emoções! As três geladeiras foi o máximo! Bjs

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  2. Muito boa meu amigo. Imagino a situação de vocês, escondidos, em silêncio, aguardando algo acontecer a qualquer momento, como nas brincadeiras de esconde- esconde da minha infância e das quais nunca podia participar pois, de tão nervosa que ficava com a situação que preferia me entregar ao perseguidor. Beijo grande pra vocês

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  3. Cena de filme policial de roliúde que infelizmente assola nossas cidades, principalmente as grandes.
    Uma tragédia em que vários governos das mais variadas matizes não conseguem erradicar.
    Levante as duas mãos para a céu e agradeça não só pelo susto como também por servir de inspiração para a crônica deste domingo.
    Abraços

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    1. Meu caro primo,
      É de fato uma tragédia a situação da segurança pública. E o caso foi há 35 anos: imagine hoje…
      Realmente agradeço à Deus pelo livramento.
      Obrigado por comentar, meu primo.
      Uma ótima semana para vocês!

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  4. Olá Meu Amigo Sarmento, Muito bom dia , Você é demais, sua veia poética é única, até no relato de situação grave, consegue se expressar desta maneira: Permanecemos ali. Três geladeiras, uma de cada cor. Três pessoas, cada uma com a sua dor. A fragilidade da vida evidenciada para nós de forma concreta, verdadeira e visível, tal qual uma fratura exposta. Meu Amigo e o que é essa frase final? “Em nossa cidade toda gravidez é de risco”. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Gui, ao Jean e demais familiares.

    [image: width=] https://www.avast.com/sig-email?utm_medium=email&utm_source=link&utm_campaign=sig-email&utm_content=webmail Não contém vírus.www.avast.com https://www.avast.com/sig-email?utm_medium=email&utm_source=link&utm_campaign=sig-email&utm_content=webmail

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    1. Meu caro amigo JH,
      Muito obrigado por seu comentário.
      Como já disse uma vez, fico sempre curioso sobre as partes que despertam a sua atenção. E fico feliz por você apreciar meus textos.
      Estamos de volta ao Rio, desde sexta-feira.
      Uma ótima semana, meu amigo!
      Lembranças à Sueli, Junior, Luizinho e Catarina. Fiquem com Deus!

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  5. Que história difícil….e inesquecível!
    Curioso também seria saber o que se terá passado na cabeça da sua esposa já bem grávida, enquanto olhava para o tecto deitada no chão de um supermercado atrás de uma geladeira….
    Certamente uma revolução interna!

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    1. Dulce,
      Grato por comentar.
      Minha mulher teve uma gravidez maravilhosa, sempre muito doce, calma e tranquila. Mas de fato, não sei a dimensão do que sentiu naquele episódio de tamanho risco. Como você observou, ficou como uma lacuna na crônica…
      Desejo uma ótima semana!
      Abraços

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  6. Que história assustadora meu irmão!
    Mesmo assim você consegue ser poético e descrever com delicadeza a situação tão difícil e tensa!
    A senhora que foi acolhida merece perdão pela falta de gratidão , mas deve ter sido consequência de tamanha emoção!!!

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    1. Minha irmã,
      O tempo transcorrido nos permite ver os acontecimentos de outra forma, sem tanta emoção, não é?
      Fico contente que tenha achado o texto poético e delicado.
      Muito obrigado por comentar, minha irmã.
      Beijos e uma ótima semana! Abraço em Flavio!

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  7. Que coisa terrível é a sensação de fragilidade nestes momentos! Nunca se sabe onde está o perigo. Ainda bem que tudo terminou bem. O triste é ver que sua crônica se passa ha 35 anos. Hoje deve haver uma por dia na mesma loja… Feliz semana e Deus nos abençoe e proteja, sempre.

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    1. Amigo Luigi,
      Realmente 35 anos depois a situação só piorou…
      É uma pena, pois a falta de segurança traz muito sofrimento, além de inúmeras implicações indesejáveis.
      Só podemos esperar que em algum momento a situação comece a melhorar. Vamos ter esperança.
      Obrigado pelo comentário e desejo que você e sua família tenham uma excelente semana!

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  8. Fala meu querido amigo! Tudo bem com vocês? Muito boa crônica e também um grande susto, parabéns pela crônica e pelo equilíbrio e calma Forte abraço

    Enviado do meu iPhone

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  9. ⁷As vezes, mesmo quando nos encontramos no paraíso do consumo sonhado (como uma nova geladeira) podemos estar próximos de situações incertas e de perigo!! A vida nos leva à situações conflitantes, que nos ensinam como driblar situações temporárias adversas, que podem nos dar destinos imprevistos na vida!!
    Um abração Amigo!!

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  10. Querido cronista,
    Realmente, toda gravidez é de risco;
    Todo investimento é de risco;
    Toda viagem é de risco;
    Todo projeto é de risco…
    Certeza real só no amor de Deus e na Salvação em Jesus Cristo.
    Para viver, é preciso coragem.
    Beijo

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    1. Querida prima Gena,
      Sim, o risco está aí, ao nosso redor. Viver é muito arriscado.
      E os problemas de segurança que passamos aumentam ainda mais e nos expõem a riscos que não precisaríamos passar ou que poderiam ser bem menores.
      Muito obrigado por comentar, minha prima.
      Um carinhoso beijo e desejo que tenha um ótimo final de semana!

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  11. Imagino o coração de vocês ao se esconderem para evitar a violência. Nessa hora, passam pela mente pensamentos difíceis de organizar, mas se saíram muito bem.
    Como resultado, hoje recebemos uma ótima crônica. Parabéns pelo talento de distribuir alegria.
    Um carinhoso abraço.

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