MALA DE PEDRAS

Há quem confunda esquerda e direita. Calma, meu caro leitor. Não me refiro a política, tema sobre o qual não escrevo. Já vou me explicar contando um caso, meu modo preferido.

Faz alguns anos, ainda antes dos mapas digitais, parei o carro para pedir informação à um rapaz sobre certo endereço. Muito prestativo, ele logo explicou que eu deveria entrar à esquerda e dobrar na terceira rua. Só que apontou para a direita… Não tentei corrigir. Seria constrangedor. Diante da dúvida optei pela indicação apontada e não a falada. Deu certo e logo cheguei ao destino.

Parece que este tipo de engano existe mesmo. Algumas pessoas possuem real dificuldade de orientação espacial e se atrapalham em distinguir a esquerda da direita. Não vou entrar no mérito, pois é matéria para especialistas. Apenas rezo para não cair nas mãos de um médico cirurgião que venha a me operar uma perna ao invés da outra…

Outro dia observava meu neto Guilherme, aos 3 anos, enquanto o pai o ensinava a orientar-se:

— Aonde é embaixo? — indagou o pai.

— Aqui! — respondeu com vivacidade o moleque, apontando com o indicador para o chão.

— E à direita?

Sem falar nada, ele estendeu o braço direito com a mão espalmada e um sorriso orgulhoso no rosto. Parecia ter prazer no aprendizado e em demonstrar seu conhecimento.

— Atrás? — prosseguiu o pai.

Guilherme ficou na dúvida. Olhou para as próprias sobrancelhas e preferiu não arriscar. Aguardou que o pai repetisse a lição.

Mais uns dias e estávamos no carro durante um passeio quando o garotinho exclamou:

— Tem um carro grande ali atrás. Preto.

— Ali não é atrás, Guilherme. É na frente — esclareceu o pai.

— Na frente — repetiu para memorizar.

Assim vai aprendendo aos poucos.

O episódio me deixou reflexivo. Recostei no banco do carro vendo a paisagem passar e fiquei pensando que eu mesmo, às vezes, também cometo um erro deste tipo. Olho para frente, mas estou vendo para trás!

Estou voltado para o para-brisas, mas focado no retrovisor, como se meu passado quisesse sempre continuar no futuro, repetir-se, eternizar-se. Quase como um ator encenando a mesma peça por anos ou até pela vida toda, seguindo o mesmo script, repetindo palavras e reações, gestos e atitudes.

Claro que é inevitável o impacto do passado sobre a forma como vemos o futuro. O que vivemos e aprendemos nos acompanha, faz parte de nós e não tem como ser diferente. A gente sempre vê o que está por vir com os óculos daquilo que passou.

Mas às vezes é como se estivéssemos de óculos escuros, que nos impedem de ver com clareza e na perspectiva certa, o que podemos ter e fazer, nossos planos, sonhos, esperanças e o próprio sentido da nossa vida. Parece ser difícil ter uma lente mais nítida, menos embaçada por certas experiências anteriores.

Temos memórias, mas elas não podem ser âncoras, grilhões que nos prendam a acontecimentos que não podemos mudar. Nossas vivências, boas ou ruins, têm que ser uma bagagem útil, que nos faça crescer e ter mais preparo e não ser um peso inútil, que nos atravanca como uma mala cheia de pedras.

Enfim, me veio à mente que não podemos desperdiçar o que temos pela frente devido ao que ficou para trás. É preciso um olhar limpo, livre e corajoso para perceber que temos a cada dia a oportunidade de um recomeço, de uma nova história e até de uma nova vida.

Guilherme vai aprender e não será difícil. Eu procurei também aprender um pouco com aquela passagem simples e refletir sobre as cargas que o passado pode colocar nas nossas costas e limitar a nossa vida.

Há pouco tempo vi numa foto, uma tatuagem no pescoço de um famoso jogador de futebol, contendo apenas duas palavras: “tudo passa!”. Acho que é verdade.

Mas aquilo que passou pode ter deixado marcas que não passaram. Estão ali sem que percebamos a sua presença. São manchas e arranhados nas lentes ofuscando o nosso olhar e pesando na nossa felicidade. Mala de pedras.

Estes pensamentos não me deixaram abatido. Ao contrário, me deram ânimo. Veio a vontade de deixar pelo menos uma parte desta bagagem inútil pelo caminho, esvaziar um pouco a mala e polir as lentes dos óculos. Há uma frase de Confúcio que diz: Conta-me o teu passado e saberei o teu futuro. Preciso contradizê-lo!

O carro parou e deixei meus pensamentos ao ouvir Guilherme dizer:

— O papai sai pela frente. Eu vou sair por trás.

 

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “MALA DE PEDRAS

  1. Excelente reflexão irmão!
    As “pedras” são oportunidades de crescimento e superação, e não pra serem polidas diariamente ,nos impedindo de ir “em frente ” , como lindamente aprendeu o Gui com seu papai Jean!
    Beijos 💋

    Curtido por 1 pessoa

  2. Que espetáculo…
    Uma das melhores. A ironia de usar a direção política, o uso da direção no sentido da palavra e o uso na experiência da vida. De quebra colocou o Gui que já é protagonista e importante nessas narrativas de dormindo. Estou saindo para votar e com certeza vou para a direita e com o pensamento para frente pois nessa oportunidade não tem como pensar lá atrás….
    Parabéns amigo… Preferi hoje não viajar em passado e presente. Quero aproveitar bastante o presente e valorizar cada vez mais nossa amizade que foi construída há algum tempo e que espero para frente dure muito. Estou na rua e vou dobrar agora a esquerda…. Abrs.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro amigo Nei,
      Me diverti com o seu comentário e o jogo de palavras. Você é sempre muito inspirado!
      Como observou o Gui já me inspirou muitas crônicas. Observar uma criança pode nos proporcionar muitas reflexões.
      Fico contente que tenha gostado da crônica.
      Uma ótima semana e manda um beijo para Jaciara!

      Curtir

  3. Bela reflexão Sarmento. Tenho feito um esforço Hercúleo pra viver o presente, sem esquecer que trocamos de”pele” como certos a animais , e não somos hoje, o que eramos ha algum tempo. Chamo isso de maturidade. E sou feliz com ela. Sou convencido de que 2 coisas não controlamos : o ontem e o amanhã. O ontem, foi. Aprendemos com ele, mas ja foi. O amanhã, a Deus pertence. Bom domingo e que Deus te abençoe para fazer com suas crônicas, nosso amanhã mais feliz e reflexivo..

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigo Luigi,
      Mais uma vez agradeço seus comentários. Foram feitos no passado, estão sendo feitos no presente e, espero, continuarão a ser feitos no futuro!
      Fico contente que as crônicas alegrem o seu domingo.
      Grande abraço e uma ótima semana!

      Curtir

  4. Crônica show de bola! Muito bem desenvolvida, trata de um tema que julgo muito importante. As experiências vividas, positivas e negativas, nos servem de amadurecimento para as novas decisões da vida, que sempre são necessárias tomar. Por outro lado, não devemos nos prender às marcas do passado, pois as características do ambiente mudam, são outras. Importante então, “Recordar experiências e avaliar os novos cenários da vida”. Forte abraço grande amigo!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro amigo Rodolpho,
      Fico feliz que tenha gostado da crônica. Pelo visto inspirou o amigo a refletir sobre o tema: é sempre bom quando um texto nos leva a pensar sobre a vida.
      Um grande abraço e uma ótima semana!

      Curtir

  5. Parabéns pela excelente crónica /reflexão, onde tudo está dito, seja nas suas palavras seja nos comentários. Creio que o importante é que sejamos capazes de colocar o passado em diálogo com o presente para que sejamos melhores pessoas no futuro. E obviamente fazermos melhores escolhas nesse futuro!

    Curtido por 1 pessoa

  6. O tema direita e esquerda é bem atual pois tem múltiplos sentidos e precisa ser bem explícito para evitar confusões e inimizades.
    Eu quando mais jovem que hoje, tinha muita dificuldade em direita e esquerda mas era ótimo com aqueles mapas rodoviários imensos nas viagens de carro.
    Adorei a frase sobre o retrovisor que você olha pra frente e vê o passado.
    E vamos dia 30 para mais um embate pra ver se realmente aprendermos a lição direita e esquerda.
    Parece que ainda fazemos muitas confusões.
    Parabéns por mais esta bela crônica.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro primo Rômulo,
      Fico realmente contente que você tenha apreciado a crônica.
      Que o nosso olhar pelo retrovisor seja sempre ágil e útil. Não podemos nos fixar nele sob pena de sacrificar o que temos è frente.
      Obrigado por comentar, primo.
      Um grande abraço e que tenham uma semana maravilhosa por aí!

      Curtir

  7. Excelente crônica, até os 12 anos somos puramente emoção, e tudo que é visto, ouvido e sentido por repetição ou por forte impacto emocional, vira uma crença que pode ser positiva ou limitante.
    Isso é um papo bem longo.
    Existem pessoas que não sabem porque não alcançam seus objetivos e eu afirmo: são as crenças na infância.
    A boa notícia é que todos podemos reprogramar essas crenças, mas primeiro precisamos entender quais são essas crenças.
    Existem inúmeras pesquisas em Harvard que comprovam isso…em diversos tipos de crenças.
    Não podemos culpar as pessoas, geralmente os pais ou as pessoas que criaram uma criança, pois são vítimas de outras vítimas…a maior importância de tudo isso é que quando se aplica uma metodologia que refaça essas crenças, é criada uma barreira para que as próximas gerações não sejam atingidas, e com certeza terão mais facilidades para uma vida próspera futura.
    Portanto, a comunicação com as crianças devem ser assertivas e trazer confiança e pertencimento e não limitações…
    Esse conceito é aplicado em qualquer idade, porém até os 12 anos de idade, o impacto é muito maior por não existir a cognitividade.

    Valeu Cacau!
    Excelente.
    Beijos

    Curtido por 1 pessoa

  8. Querido amigo,

    Excelente crônica!
    As vezes os acontecimentos de infância deixam muitas marcas mas o importante é prosseguir com fé, humildade e determinação, para não perder a direção.
    Olhar para a frente sempre com o aprendizado do passado e atento a direita e a esquerda.
    Um grande abraço e uma abençoada semana!

    Curtido por 1 pessoa

  9. Meu jovem amigo, escritor e irmão, Antonio Carlos.
    Obrigado e agradeço sua atenção, gentileza, em disponibilizar para meu deleito a presente crônica.
    Uma boa semana para todos da familia.

    Oslúzio Félix Fonseca

    Curtido por 1 pessoa

  10. Caro Amigo Sarmento, Muito boa noite, Ilustração muito criativa, gostei . . . Tenho compreendido que esse saco de pedras, que muitas vezes levamos às costas, nada mais são que preconceitos, deficiências etc, pelos quais nos acarinhamos de tal forma que custa muito nos desfazermos deles. Buscar unir no presente, o passado e o futuro, penso que seja a almejada vida eterna. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Guilherme, ao Jean e demais familiares.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro amigo JH,
      Aceita resposta atrasada? É que estou viajando e perdi o “time”…
      Esta carga de pedras que carregamos é papo para muitas análises e reflexões, não é? Acho uma imagem muito rica. Como você disse às vezes é muito difícil nos desfazermos desta carga. Mas saber que ela existe e que estamos carregando, ou seja, a conscientização, já é um primeiro passo.
      Muito obrigado por comentar, meu amigo.
      Uma ótima semana pra vocês!
      Abraços

      Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s