AUTOSSUFICIÊNCIA

Resolvi passar uma semana com minha mulher numa praia do Nordeste. Escolhi um local de pouca aglomeração, já que gosto de banho de mar no estilo do pássaro martim-pescador, aquele que fica passeando, peneirando no ar e de vez em quando dá um mergulho em busca do alimento.

Por não poder planar, fico com o caminhar pela areia, bem na beira d’água para que as ondas me alcancem os pés. Cada lava-pés daqueles me deixa uma agradável sensação. Parece que a onda suave quando me atinge traz um afluxo de energia vigorosa que sobe pelo meu corpo e, ao escoar, leva cargas negativas, alivia tensões e contrações acumuladas. Funciona como uma deliciosa hidromassagem natural.

É um caminhar revigorante, indo para lugar nenhum, sem pressa e sem focar no destino. Só o desfrutar do caminho. Assim como deveria ser a nossa vida…

Como o martim-pescador, de vez em quando era a hora do mergulho. Para ele a busca do alimento, para mim apenas o alento: o frescor das águas, a imersão no gigante, talvez o contato mais íntimo do homem com a natureza.

Devido ao vento constante, a praia tinha uma configuração curiosa: possuía uma pequena faixa de areia firme e úmida, boa para caminhar sem grande esforço. Esta faixa era ladeada por um desnível de cerca de um metro de altura onde ficava a areia fofa, seca e macia, como se fosse uma interminável duna plana que acompanhava todo o litoral.

O primeiro trecho da praia ainda tinha alguns banhistas, mas após uns 5 ou 10 minutos de caminhada tornava-se deserta, multiplicando muito o prazer da caminhada.

No andejar para o nada fomos nos distanciando e deliciando com a paisagem, o clima e as águas tépidas daquele trechinho do paraíso. Se eu pudesse escolher onde passar a vida eterna, seria exatamente ali!

Após quase uma hora de andança chegamos à embocadura de uma lagoa. O Criador ali abusou. Fez um design muito especial: a praia terminava numa ponta e o mar adentrava pela areia através de um braço de uns vinte metros de largura que logo abria-se numa belíssima e extensa lagoa cercada de verde. Coisa de cinema. Após aquele braço de mar, iniciava-se outra praia que competia em beleza com sua vizinha. Enfim, um encontro de duas praias e uma lagoa, algo que eu nunca havia visto. Um combo da natureza, um exagero de boniteza!

Ficamos por ali apreciando a obra de arte, dando mergulhos e rejuvenescendo uns 5 ou 10 anos.

Chegou então a hora de retornar. Procurei animar a minha mulher, já um pouco cansada, lembrando a ela que em caminhos desconhecidos, a volta é sempre mais rápida — pelo menos esta é a sensação que invariavelmente experimento.

Mal iniciamos nossa volta, comecei a ouvir um ruído de motor. Esquadrinhei o ambiente, mas não consegui localizar a origem, nem no céu, nem no mar, nem em terra.

Aos poucos o ruído foi aumentando. De repente, pude ver no trecho de areia fofa um desses veículos fora de estrada, com estrutura tubular e rodas enormes, avançando e roncando como um rinoceronte em disparada.

Fiquei surpreso ao ver aquela máquina poderosa em ação. A engenhosidade humana é admirável. Num terreno de tão difícil deslocamento, o veículo deslizava com rapidez e estabilidade. Cruzou por nós tão rapidamente que sequer consegui ver o rosto da pessoa que o conduzia, mas pude perceber que era apenas um ocupante. Logo, tomou o rumo da entrada da lagoa e desapareceu numa depressão do terreno.

Ouvimos então duas elevadas acelerações e em seguida o som minguou, como algo que se esvai, parecendo um grito de agonia que decresce até silenciar. Os sons da natureza voltaram a prevalecer.

Paramos!

Pelo barulho imaginei que o motor tinha afogado, literalmente. Mas me recusei a acreditar que o piloto daquele prodígio houvesse tentado atravessar o braço de mar. Lembrei que estávamos a uma hora da vila, provavelmente sem sinal de celular — claro que não levamos o nosso, pois sabemos que tal aparelhinho não tem lugar no paraíso — e a pessoa poderia precisar de alguma ajuda.

Retornamos então a passos mais largos e constatamos que nossos ouvidos não nos enganaram. O tal veículo estava imerso no braço de mar até a altura do capô. O interior inundado, os assentos dos bancos boiando e, na margem, um sujeito de uns 35 anos, careca — não sei se ele já chegou ali assim ou se foi fruto do acidente — e totalmente desolado. Tinha um celular na mão que brandia freneticamente e caminhava de um lado para outro, para a frente e para trás, como um caranguejo bêbado.

— Bom dia, meu amigo. Posso te ajudar em alguma coisa?  — perguntei, sem ter a menor ideia do que seria possível fazer.

— Sim. O senhor que está com a mão seca pode atender o celular?

A tela do celular estava estilhaçada e tive receio de me cortar, mas atendi ao pedido desesperado. Entretanto, a ligação caiu antes que a vítima pudesse falar ou ouvir qualquer coisa.

— Vamos aguardar. Vão ligar de novo — disse, tentando acalmá-lo.

— O senhor me ajuda a sacudir o veículo? As rodas atolaram, pois o fundo aqui parece areia movediça. Se sacudirmos pode ser que fiquem livres.

Pensei duas coisas sobre a ideia dele: se sacudirmos vai enterrar ainda mais e mesmo se ficassem livres, de nada adiantaria já que o motor estava inundado de água salgada e não voltaria a funcionar. Mas achei que o infeliz não estava em condições de ser contrariado…

Pegamos juntos no tubo lateral e com muita disposição tentamos chacoalhar. Foi ridículo. O veículo nem se mexeu. Parecia concretado no fundo.

Ele passou a mão na cabeça em sinal de desespero e achei que ia chorar. Foi quando o telefone tocou novamente. Corri já esfregando o dedo na camisa e fiz deslizar o ícone para atender a ligação. Ufa! A ligação completou, ele relatou o caso e pediu o necessário socorro.

Enquanto isso, eu olhava a cena e imaginava o tamanho do prejuízo. Aquele motor teria que ser todo desmontado, limpo e remontado. A parte elétrica do veículo provavelmente teria muitos componentes comprometidos e os estofamentos e revestimentos talvez não pudessem ser recuperados. Tratando-se de um veículo fora de série, que custa muito caro, estes serviços especializados poderiam alcançar um custo elevadíssimo.

Ao terminar a ligação, perguntei:

— É seu?

— Não. É da empresa em que trabalho — respondeu, compungido.

Ou trabalhava, pensei eu…

— Bem, meu amigo. Eu posso ajudá-lo com mais alguma coisa? Quer algum recado para a vila?

— Não. Obrigado. Agora é só esperar. Vão vir com um trator para remover.

Ai meu Deus, ainda tem o custo da remoção, lembrei, acrescentando mais uma parcela na suposta conta a pagar.

No caminho de volta vim pensando sobre o que teria passado na cabeça daquele rapaz ao parar na margem e decidir atravessar. São aqueles momentos em que uma decisão sem ter informações seguras pode ter sérias consequências. Bastaria descer e adentrar um pouco a água para perceber que ali estava um limite intransponível. Mas ele não fez isso e achou que aquele equipamento — depois vi que é classificado como UTV (utility task vehicle) — era capaz de tudo, poderia chegar aonde quisesse, da forma que decidisse, sem limites.

Que lição! Talvez ele tenha confundido autoconfiança com autossuficiência. A primeira é uma virtude, pois nos dá firmeza, força, disposição e personalidade para enfrentar as situações. Mas a segunda, ao nos levar a achar que podemos nos bastar a nós próprios, está mais para um vício ou defeito. Ninguém nem nada é autossuficiente!

Vim pelo caminho ponderando que precisamos de sabedoria para nos esquivarmos dos erros de superestimar e de subestimar nossas possibilidades. Uma poderá nos trazer consequências por irmos longe demais e a outra, limitações por irmos longe de menos.

Melhor ficarmos com o ensinamento de Confúcio:

Ultrapassar limites não é um erro menor do que ficar aquém deles.

Antonio Carlos Sarmento

 

Nota ao leitor: esta crônica, só agora publicada aqui no Blog, consta no livro Crônicas e Agudas. Desejando adquiri-lo é só enviar um whatsapp para (21) 99989-7239

12 comentários em “AUTOSSUFICIÊNCIA”

  1. Cacau, as suas crônicas sempre me trazem recordações e reflexões, e essa não foi diferente.
    Na minha juventude acampei bastante, em diversas praias maravilhosas. Era na areia mesmo, uma barriguinha e só.
    O fascinante era estar junto a natureza e ver como tão perto do céu, uma imensidão de estrelas , via muitas estrelas cadentes e ficava horas ali maravilhado, na maioria das vezes dormia com a cabeça do lado de fora da barraca, pegava no sono maravilhado com aquilo tudo, não queria perder nenhum minuto daquele momento.
    A iluminação era da natureza, não existia o dedo do homem ali, e até hoje eu fico em alguns lugares imaginando como seria antes do homem ter chegado, com duas invenções.
    Bem, não estou aqui contra o progresso, porém eu gosto do lado romântico das coisas.
    Não vou me alongar mais, pois já está demais.
    A sua crônica poderia até não ter sido escrita sem a engenhoca gigante, mas tenho certeza que sem ela a paisagem seria muito mais bonita, sem barulhos, celular e etc…
    A chegada do homem com suas engenhocas, deveriam ser limitadas para alguns espaços onde nada supera a beleza da natureza.
    Essa foi a minha visão do paraíso que você estava, e perderam alguns minutos por causa de uma engenhoca, como disse acima anteriormente, esses lugares eu não gosto de perder um minuto.

    Agradeço por mais essa crônica, lindamente escrita em que senti até a água do mar nos meus pés.
    Beijos

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    1. Amigo Chico,
      A declaração do imposto de renda me fez atrasar as respostas aos comentários.
      Mas achei interessante suas observações de aceitar e até apreciar o progresso, mas ser amante da natureza, a mais bela obra sobre a terra.
      Abraços meu amigo, quase baiano…

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  2. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Independente do teor de suas crônicas sempre, muito boas eu, estou sempre à procura de algo que me divirta e admire a sua capacidade de escrever coisas, aparentemente, simples mas com muito simbolismo. É o caso da expressão: “Para ele a busca do alimento, para mim apenas o alento”: Eu não canso de admirar a sua verve. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Amigo JH,
      Só você mesmo para valorizar o jogo de palavras e descobri-lo em meio ao texto.
      Como já te disse, também aprecio estas sutilezas do escrever.
      Muito obrigado pelas palavras, meu amigo.
      Uma maravilhosa semana para vocês e manda uma beijoca para a Catarina!

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  3. Sarmento, morei uns 3 anos de minha vida em Natal/RN, por força de um sonho que tonha e que Deus, sempre Ele, me permitiu. La existem os tais passeios de Buggy nas dunas que são muito prazeirosos. .
    Na praia nunca fui de caminhar (ja lhe confessei que sou preguiçoso para certos programas), mas sempre amei tomar um banho de mar pois tenho a certeza que liberamos as energias negativas que vamos recebendo e aceitando durante o dia. Tanto é que ao voltar da praia, eu e minha esposa invariavelmente caiamos numa soneca de umas 2 horas…
    Mas quando voce descreveu o bater de agua nos teus pés, lembrei que o banho de mar é como aquela passagem biblica que é citada no salmo 23: “… Ele me faz repousar e me leva a aguas tranquilas e refrigera minha alma…” essa é minha sensação no banho de mar.
    Bom domingo e que Deus abençoe nossas familias.

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    1. Amigo Luigi,
      Desculpe o atraso em responder.
      Sim, o mar nos faz estreitar o contato com o que é puro, belo, simples e natural. Assim entrar no mar é como tomar um banho de natureza, coisa que nos faz bem e relaxa. Daí a sua gostosa soneca pós banho de mar.
      Que você possa sempre repousar e desfrutar de águas tranquilas.
      Um fraterno abraço, meu caro amigo!

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  4. Meu amigo você adora aventuras não é?
    Sempre tem algo acontecendo nos seus passeios, seja no mar, na serra ou na floresta.
    Ficou mais um aprendizado.
    Abração e boa semana para vocês!

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    1. Amigo Newton,
      Gosto mesmo de aventuras, não radicais, no ambiente de natureza. Assim, sempre prefiro viajar para locais tranquilos, cidades pequenas em meio à ambientes de natureza. É a minha preferência. Ao invés de Nova York, prefiro Jericoacara… hahaha
      Grande abraço, meu querido amigo!

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