NÚPCIAS

Eu fui ao casamento dos meus pais. Sim, estive presente no acontecimento. Não só eu como minhas duas irmãs. A primeira acabara de completar 27 anos, eu tinha 26 e a caçula 22 anos, ou seja, éramos já adultos e maiores de idade. É inusitado, mas aconteceu.

O bem-humorado Barão de Itararé dizia que o casamento é uma tragédia em dois atos: civil e religioso. No caso de meus pais, a tragédia teve um ato só, o civil.

Ocorreu em uma sexta-feira de abril de 1979, cerca de dois anos depois de aprovado o divórcio no Brasil. Somente com a nova lei, os pombinhos puderam tornar oficial uma união que, de fato, já durava quase 30 anos. Até então, a condição de desquitado de meu pai, não permitia legalizar um novo matrimônio.

Ainda me lembro do orgulho de minha mãe ao receber os novos documentos incorporando o sobrenome do marido, prerrogativa que seus três filhos já possuíam e que até então lhe era negada. Parece uma coisa fútil, uma mera formalidade, mas carrega um simbolismo profundo.

Nunca mais, ao preencher uma ficha com os nomes de pai e mãe, alguém me lançou um olhar incômodo, fato com o qual eu já estava acostumado na infância. Os nomes completos agora expressavam a realidade. Foi assim que, sem mudar nada em nossa vida, um simples papel assinado nos trouxe mais dignidade e honradez.

É difícil explicar, mas o casamento de meus pais deixou em mim uma sensação de completude, de conformidade, de ajustamento. Parecia que, agora sim, o atípico tornava-se normal, o estranho passava a ser natural e eu podia então falar “meu pai” e “minha mãe” em outro tom, sem ressalvas, mais livre, mais pleno.

Hoje lembro desta história e fico pensando que foi uma prova de amor de um pelo outro. Viver juntos por tanto tempo e continuar desejando confirmar esta união, significa que mantiveram vivo aquele sonho de tanto tempo atrás, só então possível de ser realizado.

Lembro uma frase da escritora Agatha Christie que considera o arqueólogo o melhor marido que uma mulher pode ter, pois quanto mais velha ela fica, mais interesse ele tem por ela. Depois do casamento de meus pais, eles viveram juntos por mais 3 décadas, chegando às bodas de diamante. Aliás, 60 anos de casados deveria se chamar bodas de amantes.

Tocar no assunto do casamento de meus pais me faz vir à memória outro casório, também insólito, ocorrido cerca de um ano depois: o meu próprio. Este sim, em dois atos, com o casamento civil sendo realizado simultaneamente ao religioso.

Vou direto ao ponto e deixo logo o leitor saber que, no meu casamento, o padre não compareceu!

Dizem que Deus está nos detalhes, então vamos a eles. Algum tempo antes do casamento, escolhida a igrejinha, resolvemos conhecer o Capelão que ali celebrava. Comparecemos à uma missa de domingo e o vimos em ação, sem saber que estava sendo observado, uma atitude talvez pouco católica de testar um padre, mas a intenção era ter o melhor possível no dia tão marcante e único.

Focamos na homilia, onde o Capelão poderia se expressar mais livremente, desenvolver o assunto e fazer interpretações. Pois bem, saímos de lá decididos a procurar outro padre. Desejávamos uma dicção mais clara, um padre mais jovem, dinâmico e eloquente, que deixasse em nossa memória palavras marcantes e significativas lições de vida.

Consultamos muitas pessoas e chegamos à indicação de um famoso padre no bairro de Copacabana. Se houvesse um Trip Advisor para padres, ele estaria entre os dez mais bem avaliados.

No dia marcado fomos para uma entrevista com o religioso, que nos recebeu amavelmente, simpático e cheio de energia. Perguntou sobre a nossa história de vida, anotou muitas informações sobre nós em um caderno espiral e grifou data, hora e local do casório. Depois de esbanjar boa vontade e experiência em casamentos, nos levou gentilmente até a porta, confirmando sua presença e já antecipando palavras de estímulo e conforto. Saímos de lá animados e convictos de havermos feito a escolha certa.

Ledo engano.

Naquele dia primeiro de junho, eu já estava à postos no altar e achava que o padre estaria chegando. Porém, quando o relógio marcou oito da noite, hora da cerimônia e o celebrante não havia dado sinal de vida, comecei a ficar tenso e desorientado. Eu já sabia que noiva atrasa mesmo, mas padre atrasado era uma estranha novidade.

De onde eu estava, bem no centro da nave principal, já suando um pouco apesar de ser inverno no Rio de Janeiro, podia ver a porta principal da capela e, por ela, passava de vez em quando o carro da noiva, que girava em torno do jardim em frente para gastar o tempo. Cada volta do carro era como um nó a mais no meu estômago. O nervosismo crescia e o suor também.

Passados longos 10 minutos eu já sentia sérias perturbações gástricas. Foi quando o pai de um amigo, católico fervoroso, percebendo a aflição e tentando ajudar, revelou em voz baixa, quase no meu ouvido, que o matrimônio era o único dos sacramentos da igreja católica que não era celebrado pelo padre e sim pelos próprios noivos. A informação, longe de me tirar da desorientação, mergulhou-me ainda mais fundo nela. Imagina celebrar um casamento sem o padre. Nem pensar. Passei de desorientado a desesperado.

Decorreu mais um tempo sem que eu soubesse o que fazer, para mim alguns milhares de minutos, quando um rapaz desconhecido veio até onde eu estava e disse:

— Eu sou o encarregado da capela durante o seu casamento. Se o senhor quiser posso chamar o Capelão. Ele mora aqui pertinho.

Foi uma tábua de salvação para um afogado. Quase dei-lhe o beijo que guardava para a noiva.

— Eu quero sim. Por favor!

Já passava das oito e meia quando o Capelão chegou, em trajes comuns, ainda um tanto descabelado, mas a meu ver uma belíssima figura. Nunca imaginei ficar tão feliz ao ver um padre.

Imaginei que já se preparava para dormir quando o salvador do casamento foi chamá-lo. Talvez estivesse com o pijama por baixo da roupa, se bem que nem sei se Capelão usa pijama ou camisola.

O personagem mais esperado da noite vestiu os paramentos e, para alívio geral, postou-se no altar. A noiva pôde finalmente entrar e daí em diante tudo correu muito bem. O Capelão, mesmo com a idade avançada e a pronúncia truncada, deixou-nos as desejadas palavras marcantes e significativas lições de vida, exatamente como era o nosso desejo. Só então enxergamos que tínhamos ido buscar aquilo que já havíamos encontrado. Quantas vezes na vida vamos buscar longe o que está perto.

Em plena lua de mel ficamos avaliando o que fazer em relação àquela ausência inexplicada. Pensamos em procurar o tal padre de Copacabana para obter uma explicação. Claro, poderia ter havido um acontecimento que explicasse o fato, um imprevisto que o tivesse impedido de comparecer. Mas concluímos que, se assim fosse, ele mesmo deveria entrar em contato conosco para explicar sua ausência e ficamos aguardando. Pode ser que ainda aconteça, mas até hoje, 43 anos depois, isto ainda não ocorreu…

Com o passar do tempo, resolvemos contrariar o senso comum e acreditar que nem sempre a verdade é a melhor opção. Às vezes é melhor não saber.

Tenho, porém, que confessar que no meu íntimo, como uma doce vingança, consolei-me com um desejo secreto:

Este padre jamais vai se casar…

Antonio Carlos Sarmento

24 comentários em “NÚPCIAS”

  1. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. Que belas recordações, dos seus pais e do seu casamento. São muitas passagens que merecem registros, contudo, fico apenas com duas que mais se destacaram para mim, a primeira: Quantas vezes na vida vamos buscar longe o que está perto. Que enorme verdade contém essa afirmação, por desatenção ou mesmo por inconsciência, deixamos passar detalhes importantes de nossas vidas. A segunda é mais uma do seu jogo de palavras, o seu desejo secreto: Este padre jamais vai se casar… Sem qualquer dúvida, você tem domínio incomum das ideias e das palavras para expressá-las. Dentro de um texto que traz tão grandes e belas recordações, tá ricamente contadas, você insere uma troça. Parabéns, mais uma vez. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares, E, salve dia 1º de junho, 44 anos de feliz consorte, sem trocadilho.

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    1. Meu caro amigo JH,
      Mais uma vez me encanto com seus comentários. Apenas para recebê-los já vale a pena escrever.
      Obrigado, meu amigo!
      Lembranças à Sueli, Júnior, Luizinho e à rainha Catarina!
      Uma ótima semana para vocês!

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  2. Prezado Antonio Carlos:

    Depois de ler a linda história de amor dos seus pais, peço a Deus que me dê a mesma felicidade, de completar 60 anos de casado com a Leila. Aliás, já decorreram 52, faltam só 08 anos.

    Quanto à “praga” rogada ao padre, achei sensacional e muito hilariante, quando você diz que ele jamais se casará !!!! Simplesmente extraordinário …

    Sds. do fiel e eterno leitor,

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Certamente você e Leila chegarão às Bodas de Amantes! E espero ser convidado para testemunhar e comemorar este grande momento.
      Um afetuoso abraço, meu amigo e que você e sua querida família tenham uma ótima semana!

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  3. A crônica de hoje parece mais um desabafo, tirar algo da garganta que tanto lhe incomodava ou ainda incomoda.
    Uma terapia em grande estilo.
    Bilhões de pessoas no planeta e outros bilhões já se foram e mais outros bilhões certamente nos substituirão e, por incrível que pareça, cada um conta sua história e diferente da de todos os demais.
    Parabéns e obrigado por mais este momento de leitura para me iluminar a mente e o dia.
    Aproveite o dia em reflexões que possam frutificar em novas ótimas crônicas.
    Abraço do primo.

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    1. Querido Rômulo,
      Você tem razão, escrever é mesmo terapêutico. Fico contente que a leitura tenha iluminado um pouco o seu dia.
      Muito grato por comentar, meu primo!
      Uma excelente semana para vocês!
      Grande abraço!

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  4. Querido amigo.
    Mais uma crônica interessante que envolve a sua vida familiar tão enriquecedora. Ao longo de nossa amizade e das inúmeras histórias que confidenciamos jamais você tocou no casamento de seus pais e o momento de ansiedade que você e Sônia viveram ao casarem. Com certeza vamos voltar aos assuntos pois foram singulares e serão enriquecedores na nossa conversa. Assim também vou também poder partilhar das minhas experiências e de Jaciara. A final de contas falta apenas um ano para completarmos os 60 anos e vocês serão convidados de honra. Que Deus nos dê essa graça. Obrigado amigo pela bela crônica.

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    1. Meu querido amigo Nei,
      Já estou me preparando para a celebração do ano que vem, para comemorarmos com vocês as Bodas de Diamantes.
      Será pura emoção.
      A vida e o amor de vocês merecem entrar para a história.
      Nos sentimos honrados pelo convite antecipado e já queremos confirmar presença.
      Uma maravilhosa semana para vocês e fiquem com Deus!

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    1. Fefe,
      Pois é. Foi só para ter mais uma história para contar. No fim o casamento deixou-nos ótimas e importantes lembranças.
      Fico por aqui, aguardando a Mariana. Que ela venha no momento certo!
      Beijos e uma excelente semana!

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  5. Gostei muito, pra variar, dessa crônica.
    Daqui ha 2 anos fazemos Bodas de ouro.
    Espero fazer a de Diamante (que Deus me ouça…. Kkkkk).
    Sobre seus pais, lhe afirmo que, quando encontramos nossa alma gemea, Deus previamente nos abençoou no encontro. E o casamento na igreja é mais pra agradecer do que obter a benção , ja recebida.
    Bom domingo meu amigo.

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    1. Obrigado, meu amigo Luigi!
      Que privilégio estar próximos das Bodas de Ouro. Não deixe de comemorar esta graça de Deus!
      Muito obrigado por comentar.
      Desejo ao amigo e sua família uma semana de muita paz e que seus corações se encham da verdadeira alegria!
      Grande abraço!

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      1. Querido aniversariante de junho
        Gostoso ler essa crônica nesse período de preparação do casamento de Julia. Mesmo planejando um evento pequeno, intimista, é sempre grande na alegria, na esperança e no ânimo de vivenciarem ” um amor não à primeira vista…mas a perder de vista”.
        Sua aflição, no altar, com certeza terminaria, pois Jesus estava na lista de convidados . Assim como em Caná, Ele transformou a preocupação em contentamento.
        Para homenagear uniões duradouras, trago a singeleza de Cecília Meireles:
        ” Basta- me um pequeno gesto,
        Feito de longe e de leve,
        Para que venhas comigo
        E eu para sempre te leve…”
        Um beijo, querido primo. E que todo o mês de junho seja de muitos abraços e de muitas alegrias, para comemorar a sua vida

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        1. Opa prima,
          Que boa esta novidade do casamento da Julia! Já vou logo desejando muitas felicidades e que tenham uma vida em harmonia e com muito amor.
          Obrigado pelo comentário e pela beleza dos versos singelos de Cecília Meireles.
          Beijos e que tenha uma semana de muita paz e alegrias!

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    1. Uma história de amor verdadeiro é o melhor tema para a crônica de domingo. Seus pais testemunharam que os sonhos só se realizam quando acreditamos neles. Souberam esperar e chegaram a um final feliz.
      Você ficou assustado pela ausência do padre escolhido para testemunhar seu casamento, mas Deus tem sempre a melhor solução para nossos problemas. Afinal, tudo deu certo e vocês têm histórias para contar. Onde há amor, Deus sempre está!
      Linda crônica, obrigada pelo presente neste domingo de Pentecostes.
      Um grande abraço.

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      1. Querida amiga Helena,
        Gostei da frase: “Onde há amor, Deus sempre está.”
        Fico contente que tenha apreciado a crônica. Assim também ficou conhecendo um pouco mais destes seus admiradores e amigos.
        Muito obrigado pelo gentil comentário.
        Beijos e uma ótima semana!

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  6. Caro amigo Sarmento, de volta às leituras de suas crônicas encontro essa pérola inusitada. Quem diria?!! Só mesmo o humor para tratar um nervosismo tão à flor da pele no dia do seu casamento. Ainda bem, tudo resolvido e as bodas foram celebradas!! De seus pais que momento puro e encantador!

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