QUEBRA DE PRIVACIDADE

Para escrever eu preciso de uma janela. É sério. Sinto necessidade de uma espécie de alongamento visual. Preciso espichar o olhar para além da tela do computador e assim fazer o pensamento voar um pouco.

Alternar a visão da tela com o espaço amplo faz bem à minha mente e parece ajudar na criatividade e na fluência da escrita. Eu busco palavras e ideias no espaço livre.

Por isso, sempre que possível, prefiro escrever bem em frente à uma janela, de modo que um pequeno movimento dos olhos já me tira do virtual para o real. Este vai e vem, sei lá por que, me faz bem.

Há alguns dias eu estava num daqueles momentos mágicos em que a escrita fluía com certa facilidade, as ideias andando mais rápidas que o teclado e a criatividade aceitando ser traduzida em palavras. Era a tão almejada escrita fácil e espontânea, que na maior parte das vezes produz o trabalho que se deseja.

Foi quando um ruído me perturbou e me arrancou da tela. Era um barulho de ventilador na velocidade máxima. Aquilo soprou para longe minha inspiração. Abandonei o texto e olhei pela janela, que naquela hora passou a ser dispersão ao invés de inspiração.

Para minha surpresa, bem em frente à minha janela, há uns 10 metros de distância, um ruidoso e atrevido drone me olhava!

Concentrado em escrever, eu não ouvi quando ele se aproximou, mas pude perceber que tinha vindo de baixo e agora pairava ostensivamente à minha frente. Senti um grande desconforto.

Da minha janela no nono andar costumo ver aves passando. São gaivotas, garças, passarinhos e até urubus, dos quais não gosto. Mas diante daquela ave de metal, pensei que seria melhor se fosse um urubu, parado no ar, batendo as asas e me encarando. Não seria agradável, mas urubu não bisbilhota a vida alheia e não transmite nem grava imagens.

Aquele pássaro robótico, barulhoso e enxerido foi uma desagradável surpresa. Principalmente porque sei que tais “aves” carregam câmeras de alta qualidade. E aquela estava ali fazendo o quê?

Sempre gostei de janelas com vista indevassável e agora era justamente uma destas que me devassava. A vocação da janela é permitir o olhar de dentro para fora e agora, aquele ventilador fofoqueiro a utilizava de modo inverso. Virou janela indiscreta!

Meu impulso foi de abater o bicho. Claro, invadiu o meu espaço aéreo!

Uma vassourada foi minha primeira ideia. Péssima, aliás, pois ninguém tem uma vassoura com um cabo de 10 metros. A ave biônica continuava ali, a desafiar-me.

Um spray de tinta preta foi a ideia seguinte. Seria perfeito se eu tivesse um e se tais sprays tivessem pressão suficiente para atingi-lo naquela distância. Permanecemos no confronto: ele inalcançável, eu vulnerável.

Continuei pulando de uma ideia ruim para outra péssima. Lembrei que em Portugal usa-se a expressão “vista desafogada” ao invés de indevassável. Daí pensei em afogar o invasor. Para tal, precisaria de uma mangueira com bastante pressão de água no quarto em que estava, ou seja, outra alternativa inexequível.

O intruso ainda flanou ali mais alguns segundos, me desafiando e irritando, até que subiu em direção aos andares superiores. Aos poucos seu ruído esmaeceu e o tão desejado silêncio retomou seu lugar.

O dispositivo provavelmente foi para as mãos do dono. Vou preferir poupar o leitor e deixar de mencionar os merecidos adjetivos (e palavrões, confesso) que me vieram à mente para endereçar ao piloto do voo impróprio.

Claro que a evolução tecnológica é algo admirável e valioso. A questão, como sempre, não é a tecnologia em si, mas o uso que se faz dela. Felizmente aquela visita não se repetiu e estou tentando acreditar que foi algo excepcional, talvez feito por uma criança e que não voltará a ocorrer. Não sei se é otimismo ou negação da realidade…

Por via das dúvidas meu plano B é também comprar um drone e, se o intruso ousar posicionar-se novamente diante de minha janela, estará declarada uma guerra nas estrelas. Partirei para uma colisão frontal à alta velocidade, o que provavelmente resultará na perda total de ambos. Fico com o prejuízo, mas preservo algo muito mais valioso.

A visita indesejável quando foi embora levou a minha inspiração e deixou em mim uma inquietude que até então não havia. Perdi o texto e a vontade de escrever ao perceber que, até mesmo o último reduto da nossa privacidade, pode estar em risco.

Talvez em breve reste apenas a privacidade de nossos pensamentos. Talvez…

Antonio Carlos Sarmento

24 comentários em “QUEBRA DE PRIVACIDADE”

  1. Caro Amigo Sarmento, Muito bom dia, “Quebra” de privacidade. Como é intrigante observar os movimentos mentais de um escritor e/ou cronista. De onde você tirou o termo que dá título a esta crônica? Não importa. O que para mim fica, desta crônica é o ditado popular “fazer de um limão uma limonada”, exatamente isso; de um momento de “aborrecimento”, você extraiu, com criatividade, um texto com diversas observações. Esse é/foi, creio, o seu objetivo. Muito agradecido pelas belas manhãs de domingo que você nos propicia. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Meu querido amigo JH,
      Interessante você observar o título.
      Pois então vou te contar: inicialmente coloquei “Invasão de Privacidade”, mas depois fiquei achando um tanto comum. Quis mudar e fiquei pela janela procurando alternativas. Acabou me ocorrendo a palavra “quebra” e pensei que representaria melhor a questão da privacidade, pois afinal uma invasão pode ser temporária e tem solução, enquanto a quebra tem uma conotação de algo irreversível, definitivo. O cristal quebrado…
      E você teve sensibilidade para observar esta sutileza. Obrigado, meu amigo.
      Seus comentários sempre enriquecem minhas publicações.
      Um fraterno abraço e beijos nesta querida família, um especial na rainha Catarina!

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  2. É uma boa reflexão mesmo… na China, com a justificativa do covid, eles já estão monitorando os passos dos cidadãos. Espero que nossos pensamentos continuem preservados.

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  3. Prezado Antonio Carlos:

    Nos dias atuais a nossa privacidade deixou de nos pertencer. Com os adventos dos drones, das câmeras de auto reconhecimento e outros apetrechos cibernéticos, invadiram os espaços de nossas vidas, que considero um melhores bens que devem ser protegidos a qualquer preço.

    Exemplo disso, foi a momentânea perda da sua rica e brilhante inspiração intelectual causada pela desconfortável e indesejável invasão de um “drone”, talvez maldoso e bisbilhoteiro.

    Um grande abraço de seu fã e admirador,

    Sds.

    Carlos Vieira Reis

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    1. Meu querido amigo Carlos,
      Que bom ver você de volta aqui neste espaço!
      Realmente a privacidade está acabando, o que é lamentável.
      Agradeço a gentileza de seu comentário e desejo uma excelente semana a você, Leila, Carla e seu netinho!
      Um fraterno abraço!

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  4. Sarmento interessante a sua metodologia para começar uma crônica: ir a sua janela e viajar, refletir até vir uma ideia, um tema e partir para escrita. Na pintura faço muito disso! Tenho uma série de telas “Janelas…” , onde pinto visões de florestas, mangues e cipós imaginários que queria ter em casa. Na verdade tenho pequenos vasos com folhagens, flores, ou seja a floresta que posso ter!
    Muito bom viajar nas nossas janelas!
    Parabéns!
    Vou começar o domingo bem!
    Abração.

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    1. Interessante. Pelo seu comentário nota-se que buscamos inspiração para artes diferentes da mesma forma. Talvez seja pelo fato de que todas artes têm algo em comum.
      Também compartilho da sua afinidade com a natureza e me encanto em contemplá-la!
      Fico contente com seu comentário e agradeço a gentileza de suas palavras. Domingo que vem tem mais.
      Abração!

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  5. Vivo também num décimo andar e espero sinceramente nunca ter essa irritante experiência….
    Por aqui creio ser necessário ter uma licença para o seu uso….mas haverá sempre quem trangrida, obviamente.
    Entretanto…nem tudo foi mau: afinal o drone contribuiu e deu-lhe inspiração para este post!👍
    Boa semana!

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    1. Dulce,
      Aqui no Brasil, por lei, o drone deve manter uma distância de 30 metros, mas como você disse, haverá sempre quem transgrida…
      De fato, me incomodou, mas foi útil, pois serviu de tema para a crônica.
      Agradeço seu comentário e desejo igualmente uma excelente semana!

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  6. Acabou a privacidade mesmo, em todos os lugares sempre estamos sendo bisbilhotados. Talez ainda haja um lugar: quem sabe na privada. Kkk…

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  7. A sensação de perda da privacidade é horrível e todos estamos sujeitos a isso, com o uso indiscriminado de drones.
    Como disse, digitar um texto que nos dá prazer, de frente para a janela, é realmente muito salutar, descansa a vista e refresca as ideias, mas também pode gerar surpresas… Felizmente para nós, seus leitores, a bisbilhotice alheia resultou nesta bela crônica!
    Penso que você tocou num problema que deve ser muito bem estudado pelas autoridades: a invasão de privacidade. Foi um jeito muito simpático de abrir os olhos de certos “fazedores de leis” e dos eleitores que estão agora mais exigentes.
    Um grande abraço.

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    1. Helena,
      A sensação é mesmo desagradável e preocupante. Normalmente prefiro temas mais leves, mas este veio ao meu encontro e não pude evitar…
      A privacidade do indivíduo, como você bem disse, precisa ser muito bem pensada e estudada. É algo extremamente valioso e que, silenciosa e lentamente, estamos perdendo.
      Muitíssimo obrigado por seu comentário, sempre enriquecedor.
      Uma maravilhosa semana.
      Beijos

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    1. Minha irmã,
      Que bom ter conseguido sinal para comentar a crônica.
      A visita do drone serviu para mim como um alerta: realmente precisamos lutar pela nossa privacidade que está se esvaindo…
      Beijos, obrigado por comentar e uma maravilhosa semana para vocês!

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  8. Querido amigo. Quando do surgimento dos drones fiquei muito entusiasmado e imaginando quanto de benéfico seria para todos nós.
    Infelizmente minha alegria durou muito pouco quando li o uso para fins bélicos e quebra de privacidade. Lamentável a mente humana…
    Hoje sinceramente não gosto de drones…
    Sua escolha de tema como sempre muito surpreendente e criativa. Parabéns. Saudades. Bjs em todos.

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    1. Meu querido amigo Nei,
      Os usos de drone que você citou são mesmo condenáveis. Deveríamos ficar com o lado bom, como em cenas de cinema e belas filmagens, por exemplo. Mas, como você bem disse, “a mente humana”…
      A escolha de tema desta vez não fui quem fiz: o intrometido tema apareceu na minha janela!!!
      Uma ótima semana para você, meu caro amigo e manda um beijo pra Jaciara!

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  9. Meu jovem amigo escrito Antonio Carlos.

    Belissimo texto, maravilhoso, claro, sensivel a ponto de ouvir sua voz em minha leitura. A inspiração do jovem escritor jamais deve ser tolhida de uma imensa visão ao escrever.
    Quando estamos meditando, escrevendo ou olhando para o céu nossa mente viaja em uma dimensão desconhecida, somente alcansavél pela inspiração de quem está no comando da nave/cerébro. Concordo com a conclusão da sua belissíma cronica.

    Um fraterno abraço meu irmão e amigo, Antonio Carlos.

    Oslúzio Felix Fonseca

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    1. Meu querido amigo Osluzio,
      Fico contente que tenha apreciado a crônica.
      Imagino que também goste de deixar a mente viajar pelo espaço aberto e explorar novas ideias e reflexões.
      Receba o meu abraço e mande um carinhoso beijo em todos da família!

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