GAIOLA DE VIDRO

Ao passar em direção à cozinha, algo me chamou atenção na varanda do apartamento. Parei a certa distância para observar um pontinho preto que contrastava com o piso claro. Fiquei surpreso. Era uma andorinha.

Não entendo de pássaros, mas logo reconheci a espécie, por ser muito comum na minha região. A pobrezinha estava no piso, bem junto ao vidro, olhando desconsolada a paisagem. Triste ver um passarinho paralisado, murcho, com peninhas arrepiadas e perninhas vacilantes.

Em momentos anteriores, deve ter se debatido, tentando escapar da gaiola de vidro. Provavelmente olhou a paisagem à sua frente, quis voar, precisava voar, é a sua vocação. Então arremeteu em direção ao espaço, mas incompreensivelmente foi contido por uma barreira invisível. Errou o céu e acertou o vidro.

Sofreu com aquilo que não compreende. Tentou novamente, seguidas vezes, se machucou, bateu no ar sólido que não conhecia, mas continuou tentando. Até que, exaurida, interrompeu as investidas para se recompor. Foi neste momento de sofrimento que a vi.

A cena me comoveu. Uma criaturinha feita para a liberdade estava ali, aprisionada sem razão, por um mero acidente de percurso. Ingressou ao acaso num local desconhecido, fácil de entrar, difícil de sair. Ah, se ela soubesse que bastaria voar um pouco para cima, ultrapassar a barreira transparente e logo encontraria a liberdade. Mas o instinto primitivo era sair voando direto para o céu que estava vendo.

Eu queria muito libertá-la, mas não sabia como. Imaginei que, se tentasse me aproximar, a avezinha empreenderia novas arremetidas contra o vidro, ainda mais assustada com a aproximação de um gigante enorme e ameaçador, de duas pernas, dois braços e cabelos brancos. O benfeitor com aparência de malfeitor.

Minha filha chega na sala e vê a minha paralisia. Logo percebe que ali estamos, eu e a andorinha, ambos desanimados e sem saber o que fazer. Junta-se a nós no desconsolo.

— Pai, ela parece doente. Não sei se vai conseguir voar. Diante do espaço livre é capaz de cair como uma pedra e morrer.

— Acho que não. Deve ter se debatido muito e está machucada, mas não doente.

— Vamos pegar uma caixa plástica, colocar ela dentro e aí avaliamos melhor o que fazer.

Mal pude pensar sobre esta possibilidade, quando outra andorinha surgiu na cena. Deu uns três rasantes em volta da varanda, viu a vítima tristonha e na tentativa de aproximar-se dela bateu no vidro pelo lado de fora. A circunstância para a segunda andorinha era oposta: difícil de entrar e fácil de sair. Recuou, revoou e veio novamente com o mesmo ímpeto. Novo choque.

Aquilo nos trouxe um senso de urgência.

Pegamos uma caixa funda sem tampa e partimos para o salvamento, não de uma, mas agora de duas andorinhas. Talvez um casal. Talvez não, com certeza. O amor é comovente, mesmo entre andorinhas.

Ao nos aproximarmos, o animalzinho esvoaçou pelo vidro tentando evitar-nos. Com a caixa fomos reduzindo seu espaço de voo, mas ela cada vez mais nervosa com a nossa aproximação, espinoteava no vidro e não entrava na caixa.

Não tive alternativa: com as duas mãos em concha precisei aprisioná-la, mesmo que por segundos. Senti suas asas batendo desesperadamente em minhas mãos. Tive receio de machucá-la. Mas, assim como uma criança, ela não tinha capacidade de entender que era algo ruim, mas necessário, a salvação disfarçada de destruição.

Com o máximo de delicadeza consegui contê-la entre as duas mãos e depositei-a no fundo da caixa. Ali ela se entregou. Parou de espernear e desanimou de resistir ao cárcere. Com cuidado, ficamos de pé e viramos a caixa de lado, de modo que nossa protegida ficasse de frente para a imensidão.

Ela ainda demorou um pouco, talvez custando a acreditar. Ou temendo que ali ainda estivesse o empecilho incompreensível que a atormentava. Fez um movimento tímido, reuniu forças e de repente alçou voo. Minha filha exclamou:

— Está voando! Ela não está doente.

Ficamos olhando-a revolutear nos ares e, por algo tão simples, sentimos uma alegria verdadeira. Salvamos uma vida. Uma simples andorinha, mas toda vida é preciosa. Foi uma emoção.

Por incrível que pareça, poucos segundos depois, outra andorinha juntou-se a ela. Nosso coração de imediato nos convenceu de que era o casal se reencontrando. Voaram juntas, dando voltas, indo e vindo, se tocando, felizes por voltar a andorinhar. Estavam no céu. Foi outra emoção, ainda maior.

Mais alguns segundos e muitas outras se aproximaram, juntando-se em revoadas e enchendo o céu de alegria. Encontrou seu parceiro e depois seus amigos. Foi mais emoção.

Ficamos ali, novamente paralisados, mas agora encantados. Algo tão singelo e profundo. Um indício da mão de Deus.

Olhando a cena, percebi que andorinhas voando no céu parecem crianças brincando. Obrigado, andorinha, por me restituir à infância.

Antonio Carlos Sarmento

28 comentários em “GAIOLA DE VIDRO”

  1. Ah….tadinha da andorinha!!
    Você descreve tão bem, que pude sentir não só a agonia dela, mas a sua também!
    Muito linda sua iniciativa meu irmão,de restaurar a liberdade,nosso bem precioso! Ainda mais com a sensibilidade de Tatiana como companhia!
    Muito bom!

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  2. Belíssima crônica. Como sempre você encontra ilimitada inspiração até numa frágil e indefesa andorinha.

    Parabéns, meu amigo por me fazer deliciar com seus magníficos escritos.

    Sds.

    Carlos Vieira reis

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    1. Caro amigo Carlos,
      Agradeço muito suas gentis palavras. De fato, o tema de crônicas vem do cotidiano, de coisas simples e até aparentemente irrelevantes.
      Fico muito contente que aprecie os escritos!
      Um grande abraço e uma ótima semana!

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  3. Linda crônica, o casal de andorinhas e depois a revoada em grupo, me fizeram refletir que Deus nos criou para sermos da mesma forma como humanos, e não é isso que na maioria acontece. Nós, homens racionais, criamos tanta tecnologia que não sabemos fazer o simples e o belo da maneira que Deus nos criou, com o amor e a união entre casais e a comunidade em que vivemos.
    Muitos, ao contrário da andorinha, se trancam em gaiolas, outros não sabem “voar”, e não entendem a beleza de ser livre e contemplar o céu azul e ter a vida em abundância para que fomos criados.
    Sejamos mais andorinhas, não é a racionalidade que nos faz ser feliz, mas o amor.
    Tivemos esse exemplo a 2023 anos atrás.

    Obrigado Cacau! Pelos nossos “voos em bando” aos Domingos.
    Beijos

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    1. Amigo Chico,
      Seu comentário é praticamente uma outra crônica. Seu paralelo com a vida humana foi rico e interessante.
      Fico com a essência: só no amor encontramos a felicidade!
      Continuemos voando em bando.
      Uma maravilhosa semana para você, Helen e Pedrão.

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  4. Que sensibilidade…que exemolo de união para fazer o bem…e a alegria de ver as andorinhas se reencontrando e voando todas juntinhas como crianças brincando…amamos…liiiiiiiiiindo, muito lindo…

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  5. A barreira invisível, neste caso da andorinha era uma barreira física e reflete o mesmo desespero de quem enfrenta barreiras invisíveis mas que estão dentro de nós ou até do lado de fora e não são percebidas tão logo.
    Nós construímos além de barreiras de vidro, barreiras facilmente visíveis tais como muros e cercas.
    Para que servem mesmo as barreiras, visíveis ou invisíveis?
    Um bom domingo para todos nós, abraço.

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  6. Que coisa mais linda !!! Fiquei emocionada com tanta delicadeza!!! Me fez lembrar o ocorrido quando minhas filhas eram pequenas mas com um final trágico. Morávamos numa casa em Brasília, com um janelão de frente para o jardim. Na parede oposta, um grande espelho trazia o jardim para dentro de casa. Não posso dizer qual era o passarinho porque não tenho seus conhecimentos mas ele estava caído, inerte , no sofá. Deve ter sido enganado pelo reflexo do jardim no espelho. As crianças fizeram o enterro no jardim, dentro de uma caixa de sapato, profundamente tristes com o ocorrido. Acho que foi o primeiro contato com a finitude da vida.

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    1. Amiga Lucia,
      Que bom ter apreciado a crônica.
      A história que você conta também tem sua beleza: crianças sepultando um passarinho e experimentando a dor da vida perdida…
      Obrigado por compartilhar.
      Beijos e uma ótima semana!

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  7. Olá querido amigo!
    Li suas duas últimas crônicas , embora não tenha comentado.
    Emocionantes como sempre. A de hoje nos leva a pensar no amor, conforme nos ensinou Jesus Cristo.
    Os animais ensinam muito.
    Valeu!!!!
    Tenham uma abençoada semana!
    Abraços.

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  8. Que sensibilidade e delicadeza na sua observação e de Tatinha. Esses indefesos e assustados passarinhos nos comovem. Linda e emocionante crônica.

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  9. Com ideias bonitas se fazem belas crônicas. As razões que o movem a escrever são a beleza e o prazer de partilhar com os amigos sua arte. A natureza, as aves, as paisagens são ingredientes que parecem surgir com certo fundo musical suave.
    A andorinha me comoveu, lembrei de humanos buscando saídas tão fáceis de encontrar.
    Sua filha e você foram, para mim, a esperança de bons resultados nas buscas. Quando nos unimos, vencemos!
    E Deus aparece tão espontaneamente, que me fez sorrir, lembrei da Adélia Prado nas descrições sobre a vida mineira…

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    1. Helena,
      Seu comentário é uma poesia. Obrigado por tanta generosidade e delicadeza.
      Fico feliz que tenha gostado da crônica. Como você mesma disse, é um prazer para mim partilhar com os amigos meus escritos.
      Beijos!

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      1. Querido cronista,
        Um alento a leitura desse texto: embora o interesse de muitos tenha esfriado, existem pessoas que se importam com o sofrimento alheio.
        Diante das adversidades que nos assediam, manter a indiferença é impensável; sentir pena é inútil .
        Oferecer compaixão é confortante .
        Precisamos de pessoas assim perto de nós: amigos, vizinhos, colegas, desconhecidos…
        Precisamos da mão estendida, do copo d’ água, do ombro amigo, do tempo disponível…
        Um gesto, uma disposição que muda uma história.
        Com certeza , o céu ficou mais bonito com a andorinha festejando sua liberdade…e o coração de Cacau e de Tatiana, mais gratificado .
        Beijo

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      2. Querida prima Gena,
        Fico contente que tenha gostado.
        Apreciei muito seu comentário, em especial: “Manter a indiferença é impensável; sentir pena é inútil; oferecer compaixão é confortante.” Muito bom! Se me permitir vou usar em algum momento em meus textos, tá?
        Beijos e muito obrigado por comentar!

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  10. Prezado Amigo, Muito bom dia, Com um pouco de atraso, trago as minhas considerações sobre a crônica do domingo, próximo passado. A exposição de sua sensibilidade frente à uma situação que, para tantos, teria pouca importância, me faz pensar que, há sim, seres humanos exemplares ao nosso redor, para mim, você é desses seres. Além da sua sensibilidade exposta, você, sempre, acrescenta uma palavra nova em meu vocabulário, desta vez foi “revolutear” da qual, na minha ignorância e insensibilidade, jamais ouvira falar. Mais uma vez, parabéns !!!! Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Jean, ao Guilherme e demais familiares.

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    1. Caro amigo JH,
      Seus comentários sempre me atraem, pois você aponta coisas que lhe chamaram a atenção. Muitas vezes estas mesmas coisas também mexeram comigo. É algo só explicável pela nossa afinidade.
      Obrigado por comentar, meu amigo. O atraso é nada perto do prazer de saber a sua opinião.
      Grande abraço e manda um beijo especial para a rainha Catarina!

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