ANDANÇAS

Dizia o filósofo Kierkegaard que a raiz da infelicidade humana está na comparação. Não pretendo contradizê-lo, mas vejo certa utilidade em alguns tipos de comparação. Além disso, pelo menos para mim, é algo difícil de evitar como o leitor poderá notar na confissão que se segue.

Tenho vivido os últimos anos parte do tempo na cidade do Rio de Janeiro, onde sempre morei, e parte na cidade do Porto, em Portugal. Perdão Kierkegaard, mas a tentação de comparar as duas é incontrolável. Acontece mesmo que eu não deseje ou me esforce para evitar.

Prefiro pensar que o filósofo estava se referindo principalmente à comparação entre pessoas e não entre cidades. Assim alivio minha culpa por contrariá-lo e evito sentir a infelicidade a qual ele se refere.

Certa tarde, há bem poucos dias, saí sozinho para uma caminhada pelas ruas da cidade do Porto. Segui sem destino, andando devagar, querendo divagar.

Fui me perdendo pelas esquinas, a observar a vida que passa diante dos olhos, as cenas desconexas e sem enredo, as pessoas apressadas e indiferentes, o frenesi do comércio, tudo sob o olhar de quem está sempre de lupa, à procura de conteúdo para escrever uma crônica.

Passo diante do famoso Instituto Português de Oncologia. Só por ostentar este título já me parece um prédio triste. Quanto sofrimento aquelas paredes já viram e continuam a ver todos os dias. É certo que há curas, se Deus quiser muitas, mas não consigo deixar de pensar no martírio daqueles que o frequentam, sejam pacientes ou parentes e amigos.

Ao chegar bem em frente ao portão, me surpreendo em ver na calçada um imenso cinzeiro redondo cheio de areia, onde repousam dezenas de pontas de cigarro espetadas. Pessoas próximas ao local fumegam avidamente. Que cena! Poucas vezes vi o pecado e o castigo tão próximos um do outro. Pecado leve, castigo terrível.

Sigo meu caminho sem me deter, escolhendo pensar sobre coisas menos dramáticas, mais simpáticas. Vem à lembrança o Parque da Cidade, onde estive no dia anterior. Que local maravilhoso, uma combinação belíssima de árvores, lagos e animais. Recordo meu neto Guilherme por ali, saltitando feliz por alimentar patos e gansos. O parque está sempre aberto, sem grades, convidando todos a entrar a qualquer hora para refrescar a alma, tomar um banho de natureza.

Minha cabeça de carioca nota que ali não existem ambulantes nem barraquinhas vendendo água ou qualquer outra coisa, não há moradores de rua, nenhum lixo no chão, nenhuma pichação. Os visitantes alimentam galos e galinhas sem que as aves corram o risco de virar o prato do dia. Nunca vi por ali um guarda ou fiscal tomando conta do lugar; é desnecessário. Ah, meu caro Kierkegaard, não exija de mim o que não posso conseguir. Fico imaginando como estaria este parque se fosse no meu Rio de Janeiro…

Continuo meu passeio. Ao dobrar uma esquina entro em uma rua calma e arborizada, tipicamente residencial. Noto um pequeno veículo dos Correios de Portugal, uma espécie de motocicleta com caçamba, estacionado à margem da calçada. Sem interromper a caminhada, passo ao lado e percebo que não há ninguém dentro. É todo aberto e está cheio de volumes, coisas que podem ter valor, aguardando calmamente o momento de chegarem a seus donos, sem sequer cogitarem a possibilidade de serem subtraídos por outrem. Volto a pensar no Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa…

Retorna à minha memória uma ida ao supermercado com meu genro há dois ou três dias. No estacionamento, as vagas lado a lado são separadas por uma faixa pintada de uns 60 centímetros, o que evita as pancadas de portas na lataria do vizinho e proporciona um caminho livre e seguro para circulação das pessoas. Lembro do meu carro carioca, pobre coitado, todo pipocado nas laterais.

Saímos do mercado e ingressamos numa grande avenida. Percebo uma enorme fila do lado direito, enquanto as pistas da esquerda estão livres. Meu genro esclarece: quem tem destino à direita aguarda em ordem nesta fila e praticamente ninguém vem por fora e entra lá na frente. Muito estranho para mim, Kierkegaard.

Seguimos mais alguns minutos e lá na frente, numa avenida de duas pistas, o trânsito para devido a um sinal vermelho. Todos aguardam, quando de repente ouve-se uma sirene de ambulância ao longe. Imediatamente inicia-se uma grande movimentação: os motoristas buscando o canto da rua para abrir um espaço no meio destinado àquele que está sinalizando urgência. Sim, é uma emergência e alguns segundos podem significar a diferença entre a vida e a morte de uma pessoa. Ninguém conhece, ninguém sabe quem é, mas todos agem para ajudar a salvar um ser humano, seja quem for. O valor da vida é incomensurável.

Aberto o corredor, a ambulância passa veloz. A gentileza dos motoristas me causa estranheza. Que aumenta quando percebo que ninguém, nem moto nem carro, seguiu atrás aproveitando a abertura do trânsito. Desculpe-me novamente, Kierkegaard.

Vou terminando a andança e me dou conta de que não tive intenção de comparar, não fiquei propositalmente buscando traços de semelhanças e diferenças. Não desejo, de modo algum, qualificar nem desqualificar.

Foram as lembranças que se reuniram para me convencer de uma simples verdade:

Viver na cidade exige civilidade.

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “ANDANÇAS”

  1. Realmente não há como não comparar meu irmão!!
    Que beleza uma cidade com civilidade e o respeito entre seus moradores!
    Há poucos dias retornei de viagem à Buenos Aires e Bariloche e também tive essa triste sensação/constatação= comparação 😢

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    1. Minha irmã,
      Eu adoro o Rio de Janeiro e tenho a firme esperança de que um dia há de alcançar (ou voltar…) a patamares de convivência, respeito, gentileza e cordialidade para que faça jus ao título de “cidade maravilhosa”!
      Obrigado por comentar!
      Beijos e uma ótima semana!

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  2. A evolução vem essencialmente do desejo e da comparação, mesmo que isso traga uma série de malefícios e sentimentos pouco nobres.
    Impossível não comparar não só cidades como comportamentos, estilos, e tudo mais que é da natureza humana ou não.
    O Brasil, terra onde canta o sabiá, por um destino ainda pouco aceito, ficou inserido no atraso tanto social, educacional e outros mais.
    Precisamos é encontrar o nosso caminho que até hoje parece escondido ou perdido no meio de uma miríade de opções.
    Vamos ter fé e não desistir.
    Abraços primo

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    1. Caro Rômulo,
      Desistir não é uma opção. Talvez ter consciência de onde podemos e queremos chegar, por observação de outras sociedades, seja um ponto positivo nesta busca por uma vida melhor para todos do nosso Brasil.
      Obrigado, mais uma vez, por sempre comentar.
      Um grande abraço e uma ótima semana!

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  3. Bom dia, Cacau !
    Obrigado por mais essa excelente crônica.
    Ainda sobre a cidade do Porto, lembro que o metrô não tem catraca ou portas automáticas, existem pequenos totens enfileirados, que os usuários registram o bilhete por aproximação e vão para os trens, sem nenhuma fiscalização…

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    1. Bem lembrado Serginho!
      É assim mesmo, sem catraca. Você valida o bilhete espontaneamente e entra no trem que abre as portas sem nenhum obstáculo.
      Mas, já por duas vezes, um fiscal que entra em algum ponto da viagem, me pediu para ver o bilhete: ele passa numa máquina portátil e atesta que foi validado.
      Dificilmente vai encontrar alguém que não tenha feito, mas se ocorrer tem uma multa pesada…
      Abraços meu saudoso amigo e uma ótima semana para vocês!

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  4. Caro Amigo Sarmento, muito bom dia. De fato, para alguns de nós, cariocas, é inevitável essas comparações, quando temos a oportunidade de conviver, pelo tempo que for, com cidadãos de outras metrópoles, pelo mundo afora. Mas, para não perder o costume, você sempre muito hábil, não dispensa um chiste – devagar para divagar – deveras sensacional. Eu não me considero um chato, antes de tudo, essas observações que faço são em razão da minha admiração pelo seu talento. Recomendações à Sônia, à Tatiana, ao Guilherme, ao Jean e demais familiares.

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  5. Querido amigo, não dá para comparar mesmo. O Rio de Janeiro é uma cidade decadente e triste há muitos anos. E cada dia pior.
    A sociedade de modo geral no mundo é egoísta, e me parece que no Brasil está pior, principalmente nas Metrópoles.
    Em uma viagem a Portugal, Nuri esqueceu a bolsa em um restaurante de uma cidade e retornamos para o hotel. Quando ela percebeu ficamos preocupados e retornamos ao restaurante. O gerente tinha guardado, pois o garçom percebeu e entregou a gerência, que tinha certeza do nosso retorno.
    É isso meu amigo!
    Bom Domingo de Ramos para você, Sônia e família e ótima Semana Santa!
    Abraços.

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    1. Amigo Newton,
      A história da bolsa da Nuri me fez lembrar que certa vez esqueci uma mochila pendurada nas costas da cadeira em um restaurante na França. Nem percebi e fui caminhando para outro destino. Quando estava já um pouco longe, veio um garçom correndo atrás de mim com a mochila na mão para devolver. São coisas que a gente não esquece…
      Nosso Brasil há de melhorar: espero por isso e torço para que não demore muito…
      Obrigado por comentar, meu amigo.
      Uma ótima semana a você e Nuri!

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  6. Amigo querido, infelizmente as comparações são inevitáveis. Eu digo que sou a carioca mais fajuta que conheço pois, sinceramente, não gosto do Rio, não gosto no que se transformou, suja, perigosa e outras mazelardes mais. Aqui em Michigan, onde tenho passado muitos meses, a sensação de segurança é enorme: as bolsas e compras ficam no carro sem que nos preocupemos com roubos. E o caminhar pelas ruas ( quando não está nevando, é verdade) sem preocupação, sem ficar atento aos movimentos dos outros caminhantes. É realmente libertador. Beijo grande em todos.

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    1. Amiga Lucia,
      Realmente a questão da segurança pública é muito sensível. E tem muitos impactos na vida e na economia em geral.
      Lembro o caso de Nova York que também esteve em situação crítica e conseguiu reverter.
      Haveremos de conseguir também, se Deus quiser!
      Beijos e uma ótima semana!

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  7. Sarmento leio sua crônica com um misto de alegria e tristeza. Alegria por sua forma até poética de tratar esse assunto. Triste porque nao visito o Rio de Janeiro desde 2017 e não sinto no cora Nenhuma vontade de rever a nossa, antes cantada, cidade maravilhosa. Boa semana e que Deus nos abençoe

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    1. Amigo Luigi,
      Nossa cidade é realmente maravilhosa, belíssima, mas precisamos resolver algumas mazelas que muito impactam a qualidade de vida.
      Espero que isto aconteça e que você volte a ter vontade de revê-la.
      Um grande abraço e uma ótima semana!

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  8. Como portuguesa…. acho a sua crónica maravilhosa!
    Muito do que refere é verdade, mas creio que ainda estará na fase de “enamoramento” com Portugal…
    Na verdade temos muitos grafittis fora do sitio e a sujarem tudo… ainda há muito lixo nas ruas…temos muitos parques mal cuidados e bem longe do Parque da cidade do Porto que é uma maravilha…muita gente é desonesta…. há muitos que se estão simplesmente lixando para os outros no trânsito e passam à frente de filas, etc, etc, etc.
    Mas eu adoro o meu país, os portugueses e de ser portuguesa…mesmo que ainda estejamos muito longe de ser perfeitos!

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    1. Dulce,
      De fato ainda sinto o impacto de algumas coisas que me causam admiração em Portugal. O passar do tempo provavelmente poderá tornar tudo mais corriqueiro. Porém, quando não estou aí, sinto falta de determinados comportamentos e principalmente da sensação de segurança da cidade.
      Enfim, acho que você tem muitas razões para adorar o seu país!
      Desejo uma ótima semana!

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  9. Respeitando o filósofo e sem comparações, porém com realidade.
    A comparação não é uma crítica, e acredito ser inevitável, inclusive porque muitas vezes ajuda a entender a realidade do que se vive. Poderia afirmar que o Rio é muito mais bonito, mas em termos de organização e civilidade não tem nem comparação com o primeiro mundo, poderia dizer que apesar de não poder comparar, eu opto em ficar aqui porque a paixão é cega.
    E aí poderia de modo racional afirmar: “mas não tem nem comparação” .
    É, a comparação é infeliz, mas depende do sentido ou não? Sei lá!
    O que não tem comparação são suas crônicas do Domingo, aí sim, garanto que são incomparavelmente a melhor escolha.
    Bjs

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    1. Amigo Chico,
      O Rio é maravilhoso mesmo. E há de conquistar níveis melhores de segurança e organização. Torço muito por isso, para o bem de todos nós que amamos esta cidade.
      Obrigado por comentar, meu querido amigo.
      Uma ótima semana para você, Helen e Pedrão!

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