VAGANDO

Combinei de almoçar com um amigo que não via há muito tempo. Na manhã do dia marcado, meu computador, temperamental como todos seus semelhantes, resolveu conspirar contra o encontro e recusou-se a trabalhar. Ora, isto iria subtrair-me o prazer de escrever a crônica da semana e também o desprazer de prosseguir na malfadada declaração do imposto de renda anual. Meus leitores talvez fossem tolerantes, mas a Receita Federal seria impiedosa, como é da natureza dos leões…

Felizmente meu notebook tem uma espécie de plano de saúde. Com urgência levei-o para uma internação em CTI e ficou aos cuidados do Dr. Ricardo, um especialista que recentemente havia tratado com sucesso da minha impressora, acometida de uma fraqueza muscular que a incapacitava de tracionar o papel.

Pois bem, o Dr. Ricardo realizou os exames necessários no paciente e deu o preciso diagnóstico:

— Passei o CHKDSK e o HDDSCAN e os relatórios SMART indicam que o problema é na velocidade de varredura do HD. O ideal é trocarmos por um SSD de um Tera.

Com esta explicação, de uma clareza cristalina, fiz cara de inteligente, concordei, perguntei o preço e, claro, aceitei o reparo. Fico com a impressão de que a evolução tecnológica vai me tornando cada vez mais ignorante. Li em algum lugar uma definição engraçada de especialista e generalista, que parece ser verdadeira: especialista é a pessoa que cada vez sabe mais sobre menos coisas, até que acaba sabendo tudo sobre nada. Já o generalista é aquele que cada vez sabe menos sobre mais coisas, até que acaba por não saber nada sobre tudo…

Saí de lá apressado, pois meu amigo já informava que havia chegado ao restaurante.

Parti logo para o shopping onde marcamos o almoço e lembrei que o local se encontra em obras, com restrições no estacionamento. Praticamente, o percurso está sendo feito em mão única, de tal modo que, se não houver uma vaga na região das lojas e restaurantes, normalmente lotada, a gente tem que seguir em frente e vai ficando cada vez mais longe.

Parece que tudo sempre conspira para que a situação do atrasado piore. Mas procurei manter o otimismo e entrei no shopping procurando de lupa uma vaga próxima ao meu destino. Por sorte, vi um sujeito caminhando pelo estacionamento com as chaves na mão e dei uma breve buzinada. Ele logo entendeu, olhou, sorriu e apontou para onde estava o seu carro. Que beleza! O local era perfeito para mim, muito próximo do restaurante.

Liguei a seta e aguardei, enquanto o meu mais novo amigo manobrava. Fui tomado de grande admiração e afeto por ele, pessoa maravilhosa. Ao sair, ele ainda acenou com a mão se despedindo. Retribuí e tive o ímpeto de convidá-lo para o almoço, que então passaria a ser com dois amigos, mas desisti pois não haveria vaga para ele estacionar por ali…

Com isto, o atraso foi pouco e não chegou a afetar o humor do amigo que me aguardava. Para me desculpar cheguei contando uma história do Chico Anysio sobre a pontualidade do brasileiro. Ele contava que um carioca marcou encontro com um amigo às 14h e chegou 15:30h. Sem ter como se justificar, aparentou surpresa e exclamou: — Ô rapaz, pensei que você não vinha…

A comida estava boa e a conversa ótima. Ficamos no restaurante por umas duas horas e saí dali feliz pelos bons momentos vividos. Realmente a falta de amigos é um deserto e a presença deles um paraíso.

Segui para o estacionamento. Notei um carro de empresa, uma pequena pick-up, com o pisca-alerta ligado, aguardando em fila dupla. Logo imaginei que fosse fazer uma entrega por ali e assim não poderia se distanciar, sob pena de arrastar a carga por uma longa distância. Parei na porta do motorista:

— Está esperando uma vaga, amigo? — indaguei.

— Sim. Tenho que parar por aqui.

— Meu carro está ali atrás e vou sair agora. Se puder recuar até lá, a vaga é sua.

— Opa! Muito obrigado — animou-se ele, já engatando a marcha a ré.

Para evitar algum mal-entendido com outro buscador de vagas, retardei o passo de modo que ele chegasse ao local antes de mim. Assim foi feito e quando entrei no carro ele já piscava a seta alegremente, comemorando a conquista.

Manobrei e, quando saí da vaga, ele botou a cabeça para fora da janela do carro e exclamou:

— Obrigado. Vai com Deus!

Retribuí com um sorriso e o polegar levantado. Um almoço agora já seria com três amigos: um antigo e dois conquistados “vagando” por ali. A satisfação que tive antes e depois do almoço foi muito maior do que aquela que um couvert e uma sobremesa poderiam me proporcionar.

A gentileza tem muito mais força do que parece. É a pessoa embrulhada para presente!

Segui para casa, serpenteando entre as obras do estacionamento e recordando uma frase do poeta Fernando Pessoa:

Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem.

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “VAGANDO”

  1. Já dizia o ditado:
    “Gentileza gera gentileza ”
    Muito bom viver com empatia,sabendo se colocar no lugar do outro! Ótima crônica Cacau pra nos inspirar!
    Quanto à tecnologia nossa geração vai num esforço hercúleo pra acompanhar…ufa!!
    Bom domingo!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Minha irmã,
      Haja fôlego para acompanhar a evolução tecnológica. E ainda evitar os excessos e vícios das telas… Mas não podemos ficar fora do “baile”, então vamos em frente!
      Fico contente que a crônica tenha servido de inspiração.
      Beijos e obrigado por comentar!

      Curtir

  2. Caro Antonio Carlos:

    Nos dias atuais, tornam-se raras as demonstrações de gentileza. Não custa nada praticar atos de generosidade. Faz bem a alma e ao coração . . .

    Sds. do seu leitor,

    Carlos Vieira Reis

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro amigo Carlos,
      Realmente os dias atuais são desafiantes para a nossa geração. Temos que nadar contra a maré da artificialidade das redes sociais, mas sem ficar “por fora”… Vamos seguindo em busca dos caminhos que nos fazem à alma e ao coração, como você bem disse.
      Grande abraço e obrigado por comentar, meu leitor infalivelmente fiel!

      Curtir

  3. Sarmento meu amigo. Cada dia que passa me sinto mais feliz em retribuir gentilezas e ser simpático com os outros. Uma vez passei por uma pessoa no corredor do meu predio e o cumprimentei alegremente e lhe desejei um bom dia. Dias depois tivemos uma daquelas horrorosas reunião de condominio onde ele pediu a palavra pra, do nada, me agradecer aquele cumprimento pois ele estava passando uma angústia imensa e depois do que lhe desejei ele respirou, relaxou e se sentiu melhor. Como dizia aquele “profeta” do Rio, GENTILEZA GERA GENTILEZA!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Caro Luigi,
      O caso que compartilhou é muito interessante. Nunca sabemos o tamanho da dor do outro.
      Às vezes perdemos a oportunidade de sermos mais humanos, quando nos custaria apenas uma palavra ou um sorriso.
      Obrigado por comentar, meu caro amigo!
      Abraços e uma ótima semana.

      Curtir

  4. Essa é uma das grandes certezas : ” A maior alegria que temos é deixar o outro feliz”, a sensação é ótima, é aquele prêmio que o outro ganhou mais quem degusta melhor é você, é o valor do gesto.
    Tanto é que as pessoas mais produtivas são aquelas que tem alinhada a sua missão com a sua meta. É a alegria de servir não importa de qual maneira…

    Valeu Cacau!
    Mais uma crônica para a coleção.
    Bj

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigo Chico,
      A alegria de servir pode ser uma grande descoberta e muitas vezes não custa nada ou muito pouco. É a amabilidade citada pelo poeta…
      Seu comentário me fez pensar que se cada um de nós buscar este propósito, o mundo pode ser em melhor!
      Grande abraço e obrigado por comentar.

      Curtir

  5. Mais um domingo me deliciando com sua crônica. Gentileza faz um bem enorme tanto para quem pratica quanto para quem recebe. O mundo seria bem melhor se as pessoas se lembrassem disso. Beijão

    Curtido por 1 pessoa

  6. Excelente crônica de retorno no pós-Páscoa.
    Desagradável,apenas, por relembrar a desagradável obrigação de fazer a declaração do Imposto de Renda.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigo Galvão,
      Nem me fale no Imposto de Renda. Estou arrependido de ter citado isto numa crônica sobre amabilidade… hahahaha
      Fico contente que tenha apreciado.
      Grato por comentar.
      Abraços e uma ótima semana!

      Curtir

  7. Amigo Sarmento, adorei a sua crônica e percebi como sua gentileza contagiou a todos….. que nunca usemos máscaras para impedir que esse vírus sempre contamine a todos nós!!! Um forte abraço, com saudade e com dó de não te ter mais perto de Maceió!!!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Meu querido amigo Messias,
      Que alegria receber seu comentário. Eu também queria estar aí mais perto de você e desta maravilhosa cidade.
      Que nos contaminemos todos com o vírus da amabilidade.
      Abraços ao amigo, Suzana e Bárbara. Uma ótima semana!

      Curtir

  8. Prezado Amigo Sarmento, muito bom dia. Mais uma vez, parabéns por mais uma linda crônica. A citação que você faz, no parágrafo final, Fernando Pessoa, me fez recordar uma outra de Carlos Bernardo Gonzalez Pecotche, em seu livro Introdução ao Conhecimento Logosófico, pág. 465: Como se sabe, no mundo os seres se encontram ou se desencontram. Para mim, o mundo é como se movesse suas alavancas ao meu redor, e experimento grande alegria quando, ao passar por um lugar ou outro, encontro pessoas que se vinculam à minha vida como se fossem velhos amigos ou velhos conhecidos. Ao estreitar-lhes a mão, jamais penso que lhes direi adeus, adeus para sempre; ao contrário, meu pensamento é mantê-los permanentemente vinculados à minha vida, ao meu afeto e às minhas recordações. Os seres não se encontram no mundo porque sim. Há algo que os aproxima, que os vincula. Nem todos conhecem o porquê desses acercamentos, nem desses encontros; daí que a maioria, ao não dar valor a tais fatos, siga, depois de ter se aproximado, em direções opostas, para não voltar a encontrar-se. Se e quando houver uma oportunidade visite o site da logosofia e baixe, grátis, esse livro. Recomendações à Sônia e aos que estão além-mar.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Amigop JH,
      Muito bom! Obrigado por compartilhar o texto. Você é uma dessas pessoas que se vincularam à minha vida! Que nunca sigamos em direções opostas!!!
      Grande abraço, meu caro amigo!
      Recomendações à Sueli e aos que estão aquém-mar.

      Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s