VIDA SOSSEGADA

Eu já assisti televisão que não tinha controle remoto. É algo inimaginável para quem hoje tem menos de 40 anos de idade. A realidade antes dos anos 80 é que precisávamos levantar e ir até o painel da dita cuja para mudar o canal ou ajustar o volume. Um estorvo.

Depois de alguns anos, com grande alívio, surgiu a televisão com controle à distância, mas que vinha pendurado num longo e grosso fio que atravessava a sala para chegar ao sofá. O problema era que, depois de muitos tropeços naquele cabo, a gente o deixava enrolado ao lado da televisão, ou seja, era o mesmo estorvo da televisão anterior. Era um controle não remoto…

Agora é tão comum o controle sem fio que a gente nem atribui mais valor a este maravilhoso dispositivo que nos permite conforto digno de um paxá.

É de se notar que hoje a ciência trata de eliminar os fios em tudo. Já podemos carregar a bateria do telefone celular apenas pousando o aparelho num carregador por indução. Podemos ouvir música por horas numa caixa de som autônoma, longe de tomadas elétricas, abrir o automóvel à distância, comandar aparelhos de ar-condicionado e tantas outras conveniências que não param de surgir. Até a energia elétrica poderá ser transmitida sem cabos logo que a tecnologia evolua um pouco mais. Ou seja, em breve tempo, viveremos num mundo sem fios. Ao comprar um produto poderemos dizer: com fio eu não confio!

Talvez apenas dois fios resistam aos avanços tecnológicos e permaneçam entre nós, um de natureza oral e outro de natureza visual.

O primeiro, que tanto benefício trouxe à higiene e conservação de nossos dentes é o fio dental. Desde a introdução deste simples, mas eficiente artefato, minha conta no dentista caiu a níveis mínimos. A este propósito, recordo que recentemente, conversando com um senhor de uns 85 anos em torno de uma mesa de salgadinhos e aperitivos, ele olhou tristemente para um dos recipientes e lamentou:

— O triste de ficar velho é não poder mais comer amendoins…

Aqueles um pouco mais novos que este senhor, como é o meu caso, tiveram a chance de usar o fio dental para remover esta tristeza. Já faço planos de comer amendoim aos 90 anos.

O segundo fio, que tem chance de resistir ao avanço tecnológico, é aquele de mesmo nome que deu origem ao apelido do generoso biquíni que até hoje embeleza praias mundo afora. Este tende a ser eterno. Duvido que algum homem concorde que a tecnologia venha a afetar esta criação tão admirada. Afinal, como se diz no futebol: em time que está ganhando não se mexe!

O fio da meada deste assunto odontológico me veio à mente após ler uma curiosa crônica de meu avô publicada em 1965. Achei divertida e compartilho com meus leitores um trecho dela, que tem por título “Vida Sossegada”:

A procura de moça para casar foi trabalhosa, pois eu queria uma a meu modo, principalmente que tivesse uma boa dentadura e fosse boa para com os pais e irmãos. Assim, buscando pelo Rio (como já lhes disse, fui criado lá), onde permaneci durante 26 anos, embora fosse o chefe de um serviço onde trabalhavam 12 moças, não achei nenhuma que me servisse.

Que coisa difícil era encontrar uma jovem como eu desejava! Pensei algumas vezes: vou ficar solteirão, na certa…

Só pensava em vir para Vitória e arranjar a tal moça, e isso não me saía do pensamento. Aconteceu que, aqui chegando, fui convidado a passar o Natal fora da cidade com 2 amigos que arranjei na embaixada de futebol. A família dos amigos era numerosa — doze irmãos sendo oito homens e quatro mulheres, duas destas casadas, uma noiva; restava desimpedida a caçula, com 17 anos.

Fui muito bem recebido por todos da casa. Os amigos, em segredo, foram dizendo: “Cuidado com esse almofadinha”! Eram assim chamados, ao tempo, os rapazes que andavam bem vestidos e de flor à lapela, como era o meu costume.

Fiquei lá 15 dias e só no último destes foi que tomei coragem para dizer uma gracinha à Menina. Não era muito bonita, mas tinha o que eu desejava. Só para vocês saberem: nunca tinha ido a um dentista, possuía uma dentadura maravilhosa e com que carinho ela tratava os irmãos e pais!

Esqueci-me de dizer a vocês que também não queria moça alta, pois eu sou um pouco alto e desejava ter filhos não muito altos. Ela é um pouco pequena e temos 3 filhos, mas assim mesmo, o filho homem é mais alto do que eu, passou de 1,80 m de altura.

Temos já 34 anos de feliz união. Por isso que ainda estamos na lua de mel. Não passo perto dela sem gracejar, sempre brincando, e, quando acontece um pequeno aborrecimento não vai mais de um dia; já no outro dia a lua de mel é bem melhor.”

Terminei a leitura da crônica com um sorriso nos lábios e pensei:

Até mesmo num cavalo dado, meu avô olharia os dentes…

Antonio Carlos Sarmento

20 comentários em “VIDA SOSSEGADA”

  1. Bom dia meu amigo, ainda não lhe disse que o dom literário do seu avô passou para você, com certeza absoluta. A modernidade tecnológica me assusta um muita, pois para esta modernidade, e ainda por cima na minha idade, precisa muitas vezes ter um capacidade mental aguçada para entender como usá-la. Confesso que tenho muita dificuldade, apesar da minha família, genro, neta e filho terem um desembaraço fantástico para este novas tecnologias e aí me explicam, mas infelizmente se você não pratica, “blau-blau”, esqueço, e aí fico com vergonha de pedir que repitam a aula sobre o assunto. O seu avô era exigente sobre a escolha da futura avó, mas ainda bem que deu certo!! Um grande abraço extensivo a Soninha e fiquem com Deus.

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    1. Meu querido amigo Aylton,
      A tecnologia e seu avanço assustadoramente veloz é um grande desafio para a nossa geração. É fabuloso presenciarmos tanto desenvolvimento, mas por outro lado, nos exige muito. Noto que você está dando conta do recado, apesar de enfrentar as naturais dificuldades.
      Quanto ao meu avô tenho feito maravilhosas descobertas e apreciado os escritos dele.
      Um grande abraço à você e Regínia e obrigado por comentar!

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  2. Seu avô era um sábio e assim sendo, buscou sem controle remoto ou qualquer outra parafernalia que hoje existe e que “amanhã ” já estará superada, a única coisa que nenhuma tecnologia substituirá e de valor inigualável, que é a paz !
    E com a paz, encontrou a plenitude que é o amor e a família.
    E aí, não adianta controle remoto, tem que caminhar e buscar o ” canal ” desejado.
    Linda crônica, e aproveitando, sem “controle ” cada dia melhor!
    Bjs
    Chico

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    1. Chico,
      Meu avô era apaixonado pela família e fazia dela a sua razão de viver.
      Descobria pouco tempo que ele era do século XIX, nasceu em 1899.
      Foi um homem moderno, desenvolto, muito simpático e uma figura deveras interessante.
      Como você disse, encontrou a vida plena no amor e na família!
      Obrigado pelo comentário, meu irmão!
      Bjs e uma ótima semana!

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  3. Seu avô tinha um jeito bem humorado de escrever as crônicas, isso faz bem à quem lê. Você segue seus passos… Que bom! Procurar parceira de vida com esses requisitos achei realmente “sui generis”, felizmente encontrou!
    Pensei em nossa família quando se referiu à altura que deveria ter a namorada. Meus dois filhos têm mais de 1,85m e os netos são enormes: o jogador de vôlei tem1,98m e o professor de Educação Física, 1,88m. Os outros,
    alturas parecidas. Perto deles me sinto uma “tampinha”…
    Quanto aos fios, são o que há de pior com os aparelhos eletrônicos, não deveriam existir. Verdadeiros trambolhos!
    Bendigo os domingos por suas crônicas, me fazem companhia.
    Um bom feriado sem trabalho, só lazer e muita alegria.

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    1. Querida Helena,
      De fato me identifico com meu avô em alguns aspectos da escrita, não obstante a diferença de época, hábitos e costumes. Ele escrevia uns 40 ou 50 anos antes, em outro contexto, claro, mas há traços comuns e sua observação é muito interessante.
      Interessante que você e Nelson são de estatura mediana e tiveram filhos e netos tão altos, Bom mesmo para formar times de volei ou basquete!
      Seus comentários aos domingos também me fazem companhia.
      Uma ótima semana, com saúde e a amorosa vivência em família!
      Beijos

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  4. Kkkkkkk. Fico pensando nessa crônica de seu avô nesses dias tristes de “politicamente correto” seu avô seria talvez processado e com certeza, CANCELADO”.
    Acho muito interessante a história pois ela nos mostra velhos hábitos e coisas aceitas aquela época que hoje, corretamente são repudiadas.
    Não sou saudosista mas adoro história pois nos explica muito. Até baboseiras que escuto hoje como se o passado pudesse ser alterado.
    PS.: verifiquei que seu email caiu na minha caixa de “junkie” e a recuperei de la. Não consigo entender o porque.
    Boa semana e que Deus nos abençoe.

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    1. Amigo Luigi,
      Felizmente resgatou o e-mail e pode acompanhar mais esta crônica. Você é seguidor desde o lançamento do site!
      O registro do tempo passado também me encanta. Só podemos entender o presente à luz do passado e por isso é tão importante esta viagem no tempo.
      Obrigado por comentar, meu amigo.
      Uma ótima semana à você e sua família. Fiquem com Deus!

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  5. Amigo querido só hoje pude ler sua crônica de domingo e fiquei pensando o que seria de mim sem os netos para ajudar com as novas tecnologias. Quanto ao seu avô, certamente não sobreviveria à chatice do politicamente correto de hoje, o que seria uma pena para nós que seríamos privados da escrita fantástica de alguém que “sabia das coisas “. Sua escrita tem a quem puxar. Beijão em todos

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    1. Minha querida amiga Lucia,
      Meu avô com certeza seria cancelado nos dias de hoje… Mas quanta riqueza em conhecermos um pouco do contexto de 50 anos atrás!
      Tenho me divertido e aprendido muito com aquele que me legou o gosto pela escrita.
      Obrigado por comentar e desejo que tenha uma ótima semana!
      Beijos

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  6. Querido primo,
    Depois de dias a fio sem comunicação com o querido escritor- o que não quer dizer que não lia as crônicas- retomo o fio da meada para dizer que o romantismo de seu avô me encantou e me vejo sorrindo, lembrando dos gracejos que me seduziram e da lua de mel vivida por 42 anos.
    Hoje as narrativas são bem diferentes . Infelizmente, as estatísticas comprovam que os relacionamentos não evoluíram na mesma satisfação que a tecnologia.
    Convivemos com pessoas cujo casamento está por um fio: casas cheias de conforto , corações, de egoísmo ; dentaduras perfeitas em semblantes carrancudos.
    Feliz seu avô que, com certeza, recebia belos sorrisos daqueles dentes bonitos que ele tanto procurou.
    Leio seus textos, de fio a pavio, e afirmo que encontro criatividade, bom humor e sutilezas dessa arte divina que é saber viver.
    Beijo.

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    1. Querida prima,
      Que bom a crônica ter reavivado boas lembranças em seu coração e trazido um sorriso em seu rosto.
      De fato, de nada adianta uma dentadura perfeita em um semblante mal humorado e carrancudo.
      Não sei se chegou a conhecer meu avô Clemente: ele levava bem a vida, com arte e alegria.
      Obrigado por comentar, minha prima.
      Uma ótima semana para você e seus amados!

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