É possível que grande parte dos meus leitores interpretem este título no sentido mais comum da palavra, ou seja, uma ação vil ou malévola. Não sei exatamente o porquê, já que a palavra também pode significar um bando de cachorros. Talvez seja pelo uso mais comum do substantivo, que acabou por soar aos nossos ouvidos sempre com a conotação negativa.
Também acho curioso que, do animal conhecido como o melhor amigo do homem, tenha derivado este sentido tão oposto a algo amigável. Lembro que meu pai, ao se referir a um desafeto, costumava xingar: fulano é um cachorro! Substantivo virando adjetivo.
São particularidades do nosso rico idioma, que a gente muitas vezes nem percebe.
Pois bem, procedido este introito, passo a contar um caso canino e verídico.
No quarto da minha filha, quando pequena, a única janela era protegida por uma tela de segurança. Aquela rede trançada nos proporcionava tranquilidade em relação à criança, mas nos impedia de debruçarmos para ver a paisagem. Desde que ali fui morar, nunca havia observado a vista por aquele ângulo.
Certo dia, muitos anos depois, algo me atraiu e, forçando um pouco a tela, pude ver uma região inacessível pelas outras janelas do apartamento. Há cerca de um quilômetro, havia uma área bonita, com muita vegetação e uma extensa lagoa. Fiquei impressionado com o cenário de natureza em meio à tantos prédios e edificações, um oásis de beleza natural contrastando com a monótona paisagem urbana.
Era uma manhã de sábado e nosso programa habitual consistia em fazer uma caminhada antes do almoço, desfrutando um pouco de sol e atividade física, buscando aproveitar bem o escasso tempo livre da semana. Sugeri uma excursão a pé ao local e minha mulher, sem pensar muito, aprovou a ideia. Via de regra, gostando muito ou pouco, acolhemos as vontades um do outro, o que talvez seja uma das práticas que nos permitiu alcançar mais de 40 anos de uma feliz vida a dois.
Partimos animados para conhecer um lugar tão perto de casa e tão longe dos nossos olhos.
Cruzamos uma grande avenida, contornamos a parte traseira de um shopping e fomos seguindo em busca do alvo. Chegamos a um ponto onde a rua prosseguia, mas à direita, um caminho de roça se abria como um rasgo na vegetação rasteira pontilhada por alguns arbustos. Pegamos a trilha, sumimos da cidade e nos embrenhamos no mato.
Lá na frente, chegamos à uma porteira. Sim, uma porteira típica de fazenda. Achei incrível que em meio a prédios de 20 andares, centros comerciais, grandes avenidas, alto índice de urbanização, havia ali, perdida, fora de contexto, uma singela e milenar porteira de madeira. Do lado de dentro, em contraste, uma horrorosa cabine de fibra de vidro onde um vigia, sem uniforme nem arma, amargava um calor escaldante.
— Bom dia, meu amigo — experimentei.
— Bom dia — respondeu, tão seco quanto a vegetação em volta.
— O que há neste local?
— É propriedade particular!
Minha mulher já apertava minha mão para retornarmos, mas não havia como esperar bom humor de alguém que ficava ali o dia todo, encalorado e abandonado.
Resolvi insistir. A persistência é a mãe das vitórias.
— É que da minha casa vejo uma lagoa aí dentro. Gostaria de chegar na beira dela apenas para apreciar. Pode nos deixar entrar por alguns instantes?
O sujeito vacilou e ficou pensando em como dizer não. Eu queria oferecer-lhe uma cerveja gelada, alegrar o dia dele, mas não era possível. Então apelei:
— Viemos a pé de longa distância só para dar uma espiadinha na lagoa. Não vamos demorar. Se quiser deixo a minha carteira de identidade com você até voltar. É só um passeio rápido.
Meus argumentos funcionaram. Para não se comprometer, meu benfeitor, sem dar uma palavra, abriu um cadeado que prendia a corrente em torno dos palanques centrais e liberou nossa passagem. Para ratificar o descompromisso dele, apenas acenei com a mão, deixei um sorriso na porteira esperando para pegar na volta e entramos em busca do aprazível local até então só visto de longe.
O caminho revelava um ambiente rural, sem nenhuma construção, nem mesmo uma humilde palhoça. Preferimos pegar uma trilha reta, que progredia no rumo da lagoa, embora houvesse alguns desvios e picadas em outras direções. Era mato puro, mas dali era possível ver grandes edifícios há apenas algumas centenas de metros. Um verdadeiro milagre que aquela área tão bem localizada, plana e agradável houvesse resistido intacta e preservada.
A trilha reta terminava no cruzamento com uma outra bem mais larga, já às margens da lagoa. Ficamos encantados com o panorama. Permanecemos ali, lado a lado, arrebatados, desfrutando da cena surpreendente. Uma coisa é ouvir uma música, outra coisa é um show ao vivo. A lagoa era gigantesca e a vegetação parecia um bordado verde em volta dela. Ao fundo, erguiam-se as grandiosas montanhas da Floresta da Tijuca, a Pedra Bonita e a Pedra da Gávea formando um traçado de mestre na linha do horizonte.
Enfim, um quadro vivo maravilhoso, com direito a aromas, brisas, um leve murmurar das árvores, um suave cantar de pássaros, um sutil balançar das águas e a imponência das enormes montanhas a emoldurar a paisagem. Um verdadeiro deleite.
Foi quando algo inusitado ocorreu.
Esta trilha mais larga às margens da lagoa, fazia uma curva fechada para a direita e de lá, surgiu um bando de cachorros que, quando nos viram, dispararam em nossa direção latindo e espumando. Não pude contar, mas com certeza eram mais de 50.
Olhei em volta e não havia sequer um pedaço de pau para me defender. Consolei-me pensando que seria inútil mesmo… Coloquei minha mulher atrás de mim e fiquei imóvel, aguardando o ataque. Lembrei de São Francisco de Assis, padroeiro dos animais, mas não tinha certeza se os cachorros também lembrariam dele…
Os cães nos rodearam. Ficaram salivando, rosnando e mostrando os dentes, bem próximos, como se aguardassem apenas que um atacasse para fazê-lo em massa. Nós permanecemos sem mexer um dedo, sem engolir, sem piscar o olho, mal respirando: o único movimento enérgico era do coração que bumbava sem cessar.
Quando eu já me consolava por ter recentemente assinado a autorização post mortem para cremação, ouvi uns gritos humanos. Saía da curva, montado numa bicicleta, aquele que seria o responsável pelos cães. Para mim, pareceu ser Jesus voltando ao mundo…
Ele gritava os nomes dos animais em sequência, desesperado:
— Fúria, Roxy, Rex, Roger, Maluca, Cumbuca, Samuca, Tapioca, Carioca, Muriçoca, Rubi, Saci, Peri, Davi…
Eu não gostei do primeiro nome! Porém, devo reconhecer que à medida em que ele avançava na lista, os cães não avançavam em nós. Pelo contrário, iam reduzindo o rosnado e, aparentemente, se acalmando. As ovelhas conhecem a voz do pastor, os cães também!
O adjunto de Jesus veio se aproximando, sempre berrando os nomes dos animais e quando chegou junto a nós ainda estava exaltado:
— Estão loucos! Como vocês entraram aqui?
— Pela porta. O rapaz abriu para nós.
— Ele é louco. Olha quantos cachorros eu tenho aqui para passear. É um perigo.
— Foi um perigo. Graças a você está tudo bem.
Ele partiu na bicicleta e foi seguido por aquele bando de lobos, agora vestidos de cordeiros. O Fúria estava tão calmo que tive vontade de chamá-lo de Sereno.
Enfim, foi um grande susto. Permanecemos ali, nos acalmando e procurando ganhar fôlego para o percurso da volta. O local continuava a nos encantar e minha mulher decidiu:
— Se um dia fizerem um prédio aqui, nesta posição, é onde eu gostaria de morar.
Registrei esta vontade dela já predisposto a satisfazê-la. Em pouco tempo percebi que eu desejava o mesmo.
Vou encurtar a história e dizer apenas que, deste dia em diante, passamos a acompanhar tudo que acontecia no local. Na realidade era uma área destinada a empreendimentos residenciais, mas que se encontrava há longos anos pendente de uma decisão judicial devido a questões ambientais.
O tempo passou e uns dois anos depois a área foi liberada, as construções aconteceram e hoje é onde moramos. Ao chegar na varanda, olho para baixo e ali vejo exatamente o local onde o caso ocorreu.
Foi a primeira vez, para mim, que uma cachorrada teve um final feliz!
Antonio Carlos Sarmento
Querido amigo. História a parte fico impressionado com a beleza da sua escrita dando um toque a mais a descrição dos fatos reais. É difícil não valorizar os seus comentários adicionais quanto as pessoas,, o local do acontecimento além dos desfechos que a vida lhe proporcionou com a história no contexto. É talvez a característica mais marcante da sua escrita. Até Jesus esteve presente. Nem vou comentar o fato em si pois deve ter sido muito difícil superar o momento da chegada dos caninos…
Foi uma cachorrada do porteiro não ter alertado vocês.
Parabéns querido amigo.
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Meu amigo Nei,
Agradeço muito suas palavras. Talvez haja um pouco de bondade, talvez um pouco da nossa amizade, mas sei que você não é de elogios vazios. Fico muito contente que aprecie minha escrita!
Muito obrigado, meu amigo, que nunca me fez uma cachorrada…
Grande abraço, um beijo na Jaciara e que tenham uma semana de paz e alegrias!
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Cachorrada me lembra tio Alfredo e tia Glorinha.
Esta expressão era recorrente em seus discursos pois era muito crítico e gostava de analisar comportamentos que invariavelmente terminavam em uma “cachorrada”.
Já tia Glorinha por fazer o eco desta expressão, sempre em alusão ao tio Alfredo.
São coisas que eu tenho e guardo com muito carinho nas minhas mais tenras lembranças.
Quando vi o tema da crônica até pensei que seria algo de uma das cachorradas do tio Alfredo mas que ficou só na introdução.
Parabéns mais uma vez primo.
Abraços
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Sim, Rômulo,
A expressão era típica de meu pai e por isso lembrei dele na introdução. Mas aqui a cachorrada era no outro sentido…
Obrigado por comentar, primo!
Desejo uma ótima semana para você e toda a família.
Abração!
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Valeu a pena a persistência e o olhar sobre a beleza da natureza. Como prêmio, poder apreciar todos os dias essa vista deslumbrante! Que Deus proteja a natureza, Você e sua querida família! Forte abraço amigo!
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Obrigado, meu amigo Rodolpho!
Também sou amante da natureza e, como você, acho vital preservarmos este presente de Deus.
Grande abraço, meu querido amigo!
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Que bom conhecer, por meio de sua crônica, um pouquinho mais da história da Barra da Tijuca. Aqui moramos desde 1988 e já vi muitas mudanças incríveis e ouvi relatos fantásticos. Este me encantou!
Gosto da beleza com que descreve os acontecimentos e fico feliz por você e Sônia serem um casal que seguem a máxima que ouvi de Padre Juca, no meu casamento:
” A pergunta que devem fazer a si mesmos, todos os dias, daqui pra frente é: como posso fazer o meu amor feliz?”
Linda crônica e belo depoimento. A cachorrada entrou para dar um certo suspense e colocar uma pitadinha de pimenta na vida a dois, que faz o coração bater acelerado…
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Querida Helena,
Achei marcante você lembrar de uma frase do seu casamento, após tantos anos. Realmente você incorporou o conselho, o que permitiu que seu casamento fosse para a vida toda e o Nelson, um felizardo!
Obrigado por tantas palavras generosas.
Desejo uma ótima semana, especialmente na próxima quarta-feira!
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Sarmento, essa eu passo. Não sou dado a passeios no mato. Sou preguiçoso mesmo e com a idade estou cada vez menos empolgado com essas aventuras… mas respeito quem as tem. Grande domingo e boa semana e que Deus abençoe voce e sua família.
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Meu amigo Luigi,
Finalmente encontramos algo que não temos em comum… Já era tempo, não? hahaha
Obrigado por comentar, meu amigo e desejo uma semana de muitas alegrias á você e sua família!
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Querido amigo, não comentei suas duas últimas crônicas, pois andei atrapalhado com o final de uma reforma de apto para a mudança agora em maio.
Li suas crônicas, como faço sempre, e percebi que o dom de escrever e saber colocar muito bem as palavras vem de berço, certamente com o toque do seu avô lá de cima.
A forma como você escreve é fascinante, vide a de hoje, cachorrada.
Parabéns pela determinação e que Deus te ilumine sempre para continuar a nos presentear com suas crônicas.
Abração e uma abençoada semana.
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Opa meu amigo Newton,
Desejo que a mudança ocorra com tranquilidade e seja mais uma realização feliz do casal. Casa nova é sempre empolgante.
Obrigado por ainda encontrar tempo para ler as crônicas e pelo seu generoso comentário.
Um afetuoso abraço à você e Nuri.
Fiquem com Deus!
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Que história legal.
No início da sua narrativa fiquei preocupado, eu não sou chegado a ficar em lugares isolados, para mim significa sempre perigo.
Tenho isso desde a infância.
Mas, como nada acontece por acaso, a sua curiosidade tinha uma razão maior escondida por trás desse passeio agradável e com um susto.
Acho que foi um sinal, eu acredito nos sinais, e aí vocês profetizaram o que mais tarde veio a acontecer.
A cachorrada, foi o ponto marcante para você escrever a crônica de hoje, assim como, deixar marcado que nunca duvidemos dos nossos sonhos e que existe realmente uma visão extraordinária de futuro.
Acreditar, para mim, é o verbo que vem do céu para nos enviar a mensagem que tudo é possível.
Parabéns Cacau!
Bjs
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Amigo Chico,
Eu também acredito em sinais e ando por aí tentando ficar atento a eles. São coisas de Deus, mas se estivermos distraídos, podem passar sem percebermos.
Só não sabia que você não gostava de lugares isolados, aliás achava o contrário. Seu comentário foi revelador.
Obrigado por comentar, meu amigo!
Uma ótima semana pra você, Pedrão e Helen!
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Bom dia meu querido amigo aliás, hoje o dia está muito lindo.
Acabei de ler sua excelente e cativante crônica. São palavras gratificantes para os praticantes de entusiasmo e gratidão, muito gostoso de ler, apesar
da cachorrada que, diga-se de passagem com a voz do seu pastor tornaram-se ovelhas obedientes.
Muito bom, parabéns e uma linda e abençoada semana.
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Meu amigo Luiz Carlos,
Muito obrigado pelo comentário. De fato, a cachorrada foi uma surpresa e um grande perigo. Felizmente acabou bem e ficou apenas como uma lembrança, sem sequelas…
Uma maravilhosa semana à você, Rosa e toda a sua amada família!
Abração.
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Amigo querido, mais uma vez leio sua crônica com atraso. Os dias aqui estão ficando cada vez mais corridos com os preparativos para minha volta ao Brasil. Nada fascinante, marcações de consultas médicas, coisas da idade, após tantos meses abusando dos quitutes que fazia para minha filha. Ainda bem que você tem a Sônia para acompanhá-lo nos sonhos e nas caminhadas por trilhas e locais desconhecidos. Não sou de caminhar, de trilhas e morro de medo de cachorro. Beijão em todos.
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Amiga Lucia,
Compartilhamos o medo de cachorro. Mas só dos grandes.
Quanto a caminhar e fazer trilhas é uma verdadeira paixão. Na pandemia eu andava dentro de casa, dando voltas da sala para a cozinha, dali para o quarto e etc… Um circuito dentro de casa por uma hora sem cessar. Coisa de maluco…
Um ótimo retorno para casa e que tudo corra muito bem. Quando chegar, avisa, tá?
Beijos!
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Querido Cacau,
Não é fácil entender porque nossa cultura usa o nome de animais tão simpáticos e amigos, para expressar atitudes desagradáveis:
Que cachorrada!; Sua vaca! Ele a trata como um cavalo…Imagina a ingratidão: a vaca dá até a vida pelo nosso bem- estar!
Deveriam ser elogios…hehehe.
O comentário sobre casamento foi ótimo – embora no final do parágrafo, foi destaque.
Na contramão do politicamente correto, alertou para um detalhe que consolida o companheirismo: validar ( e acompanhar) as vontades do outro.
E isso contribuiu para que hoje vocês aproveitem, juntos, as delícias do lugar. Permanece com a brisa suave, os aromas , o sussurrar das árvores, a beleza da lagoa gigantesca? Ah, meu querido, juntando isso ao carinho que há entre vocês, posso dizer que usufruem de parte do Paraíso aqui na terra.
Beijos
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Querida Gena,
Você lembrou outras expressões com animais que também possuem conotação negativa. É verdade…
O cavalo, que para mim é o mais lindo animal que existe, também tem este sentido de brutalidade, violência. Coisas da nossa língua, talvez criadas por nós mesmos no dia a dia.
Quanto ao casamento, acho que tenho mais a aprender com você que o contrário…
Obrigado pela gentileza do comentário, minha querida prima.
Beijos e que desfrute de uma bela semana cheia de paz e muito amor!
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